Editorial:

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Carlos Vogt

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Trabalho, pobreza e trabalho intelectual
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O Bolsão ou A Vida
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A Edificação do Ódio
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As penas alternativas e a dignidade humana

A violência não é um fenômeno novo na sociedade brasileira e os crimes, à medida que não são resolvidos, vão se acumulando nos poros da história, comprometendo o Estado de direito, em sua dimensão pública e privada. Os horrores se sucedem no dia-a-dia, mas a violência não é somente aquela que produz cadáveres, que mutila corpos e que destrói a materialidade, ela é também aterradora, quando se reveste de desrespeito à dignidade humana.

Nesse universo, inúmeras violações aos direitos dos seres humanos mais fundamentais são cometidas no cumprimento das penas, maculando o entorno cultural da nossa sociedade contemporânea, sobretudo em razão de suas desigualdades, uma vez que, dentre outros indicadores, o grau de civilização de um país é medido pelo respeito dispensado aos seres humanos, livres e presos.

Vivemos um dos piores momentos de nossa história com a deflagração das mais variadas crises, seja de mercado ou de mercadoria humana, onde impera uma totalidade de problemas que passa pelo desemprego, decadência das instituições responsáveis pela educação, saúde e moradia, corrupção generalizada, descrédito nas ideologias, desrespeito ao meio ambiente e crime organizado, apenas para citar alguns.

Isso tudo gera o aumento da criminalidade, que se não for tratada de maneira adequada, volta-se contra a própria sociedade, que passa a viver sob o signo do medo e da insegurança. Na busca desesperada de uma suposta tranqüilidade social, advoga-se por medidas repressivas de extrema severidade e a sanção penal passou a ser considerada como indispensável para a solução dos conflitos sociais.

Segundo o consagrado criminalista, Damásio de Jesus, esse movimento "neocriminalizador", separa a sociedade em dois grupos: o primeiro, composto de homens de bem, merecedores de proteção legal; o segundo, de homens maus, aos quais se endereça toda a rudeza da lei penal. No afã de combater o delito, novas leis são incessantemente editadas, porque os partidários da "lei e da ordem" pressionam os congressistas à elaboração de leis penais cada vez mais duras e iníquas, fazendo com que o direito penal perca a sua forma e caráter preventivo.

O que está acontecendo no Brasil, continua o jurista, é que cristalizou-se a idéia de que a punição generalizada virou "remédio para todos os males" que afligem os homens bons. Para chegarmos a esse ponto, os meios de comunicação tiveram grande influência, pois como a violência atrai público, vendendo jornais e audiência, deu-se enorme publicidade aos delitos de maior gravidade, como assaltos, seqüestros, homicídios, estupros, etc. A insistência do noticiário desses crimes criou a síndrome da vitimização. A população passou a crer que a qualquer momento pode ser vítima de um ataque criminoso, então criou-se a falsa crença generalizada que a agravação das penas (como a pena de morte por exemplo), é o que vai resolver o problema e garantir tranqüilidade, não se fazendo distinção entre a criminalidade de alta reprovação e a criminalidade pequena ou média.

Antonio Garcia de Molina, em seus estudos penais e criminológicos, diz que está desacreditada a idéia de que o delito é uma atitude anormal do homem e, por isso, deve ser combatido com princípios rígidos da "lei e ordem". Hoje, considera-se o crime como um comportamento "normal", atingindo a humanidade de forma integral no tempo e no espaço, no plano horizontal e no vertical. O delito sempre existiu e sempre existirá. Ocorre em todos os países, em todas as civilizações, sejam quais forem os seus costumes. Alargam-se no campo horizontal e têm o dom da ubiqüidade. No vertical, praticado por homens bons e maus, atinge todas as camadas sociais, do mais humilde agrupamento humano ao mais socialmente desenvolvido. É impossível extingui-lo, não quer dizer que o aceitamos, pode-se, entretanto, reduzi-lo a níveis razoáveis e toleráveis.

Para os estudiosos, o direito penal brasileiro mostra-se ausente de rumo e está colhendo o fracasso de seus contraditórios. A inexistência de uma política criminal única estabelecida pelos poderes executivo e legislativo, além de não conseguir baixar a criminalidade, gera a consciência popular da impunidade, aumenta a morosidade da Justiça criminal e agrava o problema penitenciário.

As lamentáveis condições de vida em nossas prisões, não são segredo para ninguém. O sistema carcerário brasileiro não tem cumprido seu principal objetivo, que é reintegrar o condenado ao convívio social, de modo que não volte a delinqüir. A origem etimológica da palavra "pena", do latim poena, significa castigo, suplício, mas isso não significa que os infratores devam ser desumanamente supliciados. O propósito da pena privativa de liberdade é recuperar o infrator e não torná-lo pior, sobretudo, se constatarmos que ela é uma evolução em relação ao sistema antigo de execução penal, que punia com o açoite, a mutilação e a própria morte.

Em outro plano, a imposição da pena privativa de liberdade sem um sistema penitenciário adequado gera a superpopulação carcerária, de gravíssimas conseqüências, como temos visto nas sucessivas rebeliões de presos. Sem falar, que ainda estamos longe das condições necessárias para o pleno florescimento legal dos direitos humanos.

Nessa linha, René Dotti, ao estabelecer as bases e alternativas para o sistema de penas, preconizou que urge que a prisão seja imposta somente em relação aos crimes graves e delinqüentes de intensa periculosidade. Nos outros casos, deve ser substituída pelas medidas e penas alternativas e restritivas de direitos, como a multa, a prestação de serviço à comunidade, limitação de fins de semana, interdições temporárias de direitos, proibição de freqüentar determinados lugares, exílio local, realização de tarefas em hospitais, casas de caridade, prestação de auxílio a vítimas de trânsito, etc.

Esta é também a posição das Nações Unidas, que no IX Congresso da ONU sobre Prevenção do Crime e Tratamento do Delinqüente, realizado no Cairo em 1995, recomendou a utilização da pena detentiva em último caso e somente nas hipóteses de crimes graves e de condenados de intensa periculosidade. Para outros delitos e criminosos de menor intensidade delinqüencial, foram recomendadas medidas e penas alternativas.

Muitas idéias e inovações penais, tais como a descriminação das contravenções, o sistema unitário de penas, a transformação da ação penal pública para privada, estão sendo discutidas e sendo implementadas com sucesso por inúmeros países. No Brasil, algumas penas alternativas como o "sursis" e o livramento condicional já são aplicadas há algum tempo e também há uma preocupação em descriminalizar determinadas condutas humanas, como a sedução e o adultério, por serem condutas aceitáveis pela sociedade nos dias atuais.

Vantagens e desvantagens das penas alternativas

De acordo com vários juristas e estudiosos da matéria, as principais vantagens seriam:
a) a diminuição do custo do sistema repressivo;
b) a adequação da pena à gravidade objetiva do fato e às condições pessoais do condenado, onde ele não precisaria deixar sua família, a comunidade ou perder seu emprego;
c) o não encarceramento do condenado nas infrações penais de menor potencial ofensivo, afastando-o do convívio com outros delinqüentes.

E as desvantagens, são que:
a) estas não reduzem o número de encarcerados;
b) elas não tem conteúdo intimidativo, parecendo mais uma medida disciplinadora; e
c) trazem o risco da implantação de medidas não-privativas de liberdade que impõem formas de controle social mais intensas.

O que ficou comprovado ao longo do tempo é que somente com a punição do encarceramento, não há recuperação do infrator, explica o professor Tailson Pires da Costa, porque a pena de prisão não deve servir apenas como um mero instrumento de proteção às camadas sociais, através do castigo imposto pelo Estado que priva o infrator de sua liberdade. O mais grave, é que as etapas seguintes, como a reeducação e a ressocialização também não acontecem, pois o Estado trata com enorme descaso a vida humana que está sob sua tutela. Cabe ao Estado viabilizar caminhos alternativos para que esses objetivos sejam alcançados. Porém a realidade encontrada nos dias de hoje dentro do sistema carcerário está muito distante da finalidade teórica da pena.

A impressão que nos dá, opina Tailson, é que a realidade carcerária brasileira tem por objetivo proporcionar medo ao condenado detento ou recluso, para que este, uma vez intimidado, não deseje mais voltar ao sistema penitenciário e evitando, assim, que ele volte à delinqüência, mas não porque este mesmo condenado descobriu, durante o período que cumpriu a pena, que os valores sociais estão ao seu alcance, longe do sistema carcerário.

O consenso é que há necessidade de evolução na teoria e na prática penal brasileira e as penas alternativas são uma boa opção porque apontam à consciência dos homens o conceito de sociedade solidária e não a estulta idéia de que a violência se combate com violência.

Desde o primeiro diploma penal elaborado no Brasil, que foi o Código Criminal do Império, em 1830, já havia uma preocupação com a dignidade da pessoa que tinha sua liberdade cerceada. Sucederam-no diversos diplomas legais gestados no período republicano e no Estado Novo, mas foi em 1940, que o Projeto de Alcântara Machado deu origem ao atual código penal. A partir daí surgiu uma legislação especial esparsa, como a Lei das Contravenções Penais, Lei de Imprensa, etc.

Somente em 1996, o então Ministro da Justiça, Nélson Jobim, encaminhou à Câmara dos Deputados o Projeto de Lei 2.684, que resultou de amplos estudos e discussões por parte do Conselho Nacional de Política Criminal, alterando o Código Penal. Na exposição de motivos ele diz, "se infelizmente não temos, ainda, condições de suprimir por inteiro a pena privativa de liberdade, caminhamos a passos cada vez mais largos para o entendimento de que a prisão deve ser reservada para os agentes de crimes graves e cuja periculosidade recomende seu isolamento do seio social. Para os crimes de menor gravidade, a melhor solução consiste em impor restrições aos direitos do condenado, mas sem retirá-lo do convívio social. Sua conduta criminosa não ficará impune, cumprindo, assim, os desígnios da prevenção especial e da prevenção geral. Mas a execução da pena não o estigmatizará de forma tão brutal como a prisão, antes permitirá, de forma bem mais rápida e efetiva, sua integração social. Nessa linha de pensamento é que se propõe a ampliação das alternativas à pena de prisão". Este projeto foi transformado na Lei 9.714 de 1998, que ampliou o rol de penas alternativas vigentes no sistema penal brasileiro.

(MP)

Atualizado em 10/11/2001

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