PorJuliana Vicentini
O Curupira é conhecido como o protetor do meio ambiente. Ele defende a mata e os animais daqueles que invadem, desmatam, caçam ou exploram a natureza sem necessidade. É uma figura que adverte as pessoas sobre a importância do respeito aos limites ambientais e pune aqueles que os desrespeitam. As narrativas sobre esse personagem do folclore brasileiro são encontradas em linguagens direcionadas para o público infantil e adulto. Isso demonstra que seus ensinamentos de preservação da natureza são multigeracionais, conclui a pesquisa liderada por Letícia Chini de Castro.
A descrição física do Curupira não é homogênea. É majoritariamente conhecido por ser masculino, ter cabelos cor de fogo e os pés virados para trás. “O único consenso que encontrei nas pesquisas é a questão dos pés. Em algumas regiões ele aparece como um menino de corpo peludo, só com um olho no meio da testa e nariz pontudo. Em outros lugares, ele não possui nenhum buraco no corpo e tem os dentes verdes. Em algumas regiões ele é careca e, em outras, tem uma cabeleira vermelha”, descreve a escritora e mestre em comunicação social Januária Cristina Alves, especialista em tradições orais brasileiras.
Essas diferentes caracterizações do Curupira se devem ao fato de que “uma figura folclórica nunca é a mesma para diferentes povos, diferentes regiões. O material que temos são as narrativas orais, que mudam. Então, elas mudam de região para região, de época para época. Para alguns povos indígenas ele é uma figura religiosa, é o guardião das matas. Tem a característica de cuidar da natureza. Na tradição folclórica brasileira ele é um ente, como o Saci ou a Iara, por exemplo”, completa Januária Cristina Alves.
A personalidade do Curupira depende do contexto. Ele é “o gênio tutelar da floresta que se torna benéfico ou maléfico segundo circunstâncias e o comportamento dos próprios frequentadores”, detalha o livro Geografia dos mitos brasileiros, de Luís da Câmara Cascudo. Segundo Januária Alves, “os seres do folclore não são dicotômicos, eles têm características boas e outras nem tanto. E o Curupira tem lá os seus métodos para proteger a natureza. Se um caçador mata uma fêmea – coisa que ele não admite – ele mata, simples assim”.
Para proteger a floresta daqueles que a querem destruir, o Curupira faz uso de diversos poderes. Dentre os mais conhecidos, destacam-se sua agilidade, permitindo estar em diversos locais na mata muito rapidamente; a emissão de sons, utilizada para desorientar invasores; os rastros deixados por seus pés virados, um artifício poderoso para confundir sobre sua direção. O Curupira não circula por áreas povoadas, “ele gosta da mata virgem e densa, longe das cidades, das áreas devastadas ou capoeiras”, registram Florêncio Vaz Filho e Luciana de Carvalho no livro Isso tudo é encantado.
De demônio para guardião da floresta
O primeiro registro sobre o Curupira data de maio de 1560, em carta redigida por José de Anchieta, esclarece Luís da Câmara Cascudo no Dicionário do folclore brasileiro. Januária Alves conta que é uma carta conhecida como Descrição das coisas naturais da capitania de São Vicente. Diz a carta: “é coisa sabida e pela boca de todos corre, que há certos demônios, a que os Brasis chamam de Curupira, que acometem aos índios muitas vezes no mato, dão-lhes açoites, machuca-os e matam-os. São testemunhas disto os nossos irmãos, que viram algumas vezes os mortos por eles. Por isso, costumam os índios deixar de certo caminho, que por ásperas brenhas vai ter ao interior das terras, no cume da mais alta montanha, quando por cá passam, penas de aves, abanadores, flechas e outras coisas semelhantes, como uma espécie de oblação, rogando fervorosamente aos Curupiras que não lhes façam mal”.
Para Januária, “a primeira descrição era a mais próxima dos indígenas. O Deus que merecia oferendas que eles deixavam no caminho para que o Curupira não lhe fizesse mal. Porém, ele fazia mal para aqueles que agrediam a natureza”. Na perspectiva de Gracineia dos Santos Araújo, docente da Universidade Federal do Pará (UFPA), “com a chegada do colonizador europeu a história dos mitos foi marcada pela demonização. Seres encantados como Curupira e muitos outros foram relegados à condição de demônio. Letrados e cronistas da época também descreveram Curupira como um ser temível, um ser meramente do mal”.
A representação negativa do Curupira é resultado do colonialismo cultural. “O principal objetivo da empresa colonizadora foi o de explorar matérias-primas e impor ao colonizado seu modo de vida. Com a chegada do europeu, não apenas mitos como Curupira sofreram tentativa de apagamento, mas muitos povos e culturas. Apesar de tudo, muitos seres encantados da floresta conseguem sobreviver. Curupira é um ser que faz parte dos povos originários e se manteve vivo pelo papel que representa como pai ou mãe do mato”, detalha a professora Gracineia.
“Dos bichos da floresta, o Curupira é seguramente o mais conhecido, principalmente pelos caçadores e quem anda na mata”, afirmam os autores do livro Isso tudo é encantado. Essa popularidade, somada aos desafios ecológicos que a sociedade enfrenta, fez com que o Curupira ganhasse protagonismo e tenha sido resgatado como o guardião da floresta em poemas, livros, séries e filmes. Há, inclusive, um material didático peruano que o denomina como “Deus ecológico da Amazônia”, pontua a pesquisa realizada por Eraldo Medeiros Costa Neto e colaboradores.
O Dia do Curupira é celebrado em 17 de julho, data em que se comemora também o Dia Nacional de Proteção às Florestas. A figura é tão emblemática que há uma lei de 1970, promulgada em São Paulo, que “institui o Curupira como símbolo estadual do guardião das florestas e dos animais que nela vivem”.
Mascote da 30ª Conferência das Nações Unidas sobre mudanças climáticas (COP30)
O Curupira foi escolhido como símbolo da cúpula mundial sobre clima da Organização das Nações Unidas (ONU), que será realizada em Belém do Pará, em novembro. “Dar protagonismo a um ser mítico ancestral, próprio das culturas nativas em um evento como a COP30 é uma forma muito acertada de reconhecimento e reparação histórico-cultural”, destaca Gracineia dos Santos Araújo, da UFPA.
“Colocar o Curupira como figura representativa da COP30 deve transcender o folclórico, mercadológico, e avançar no que realmente importa, que é a proteção da floresta e o fim da depredação à qual ela está submetida. Se não for assim, é certo, será um não avançar, um insulto ao modo de vida indígena e a sua relação com a natureza em uma perspectiva coletiva que transcende o mundo indígena”, ressalta Araújo.
Juliana Vicentini é doutora em ciências (ecologia aplicada) pela USP e especialista em jornalismo científico (Labjor/Unicamp).