A importância do jornalismo especializado como prática interdisciplinar

Por Liniane Haag Brum

Em uma época em que as repartições públicas recém começavam ser informatizadas, Marcelo Soares foi trabalhar como estagiário em uma Delegacia do Consumidor da cidade de Porto Alegre. Sua atividade? Cadastrar no sistema as ocorrências datilografadas pelos policiais. Não demorou para que ele percebesse um fato curioso: a todos os registros de ocorrências era atribuído um mesmo código de identificação. Ainda que estivessem disponíveis códigos diferentes para cada crime específico. O jovem passou a identificar cada ocorrência com o devido código. Resultado: a indexação fidedigna dos crimes. “Eu fiquei fascinado. Depois, como jornalista, várias vezes percebi como o registro de uma situação muda a compreensão dela”. Passados trinta anos, o jornalista e professor, um dos pioneiros do jornalismo de dados no Brasil, reconhece nessa experiência a semente daquilo que marcaria a sua trajetória profissional: o reconhecimento do dado como fonte.

Em 2020, Soares começou a cursar o mestrado em divulgação científica e cultural no Labjor (Unicamp), ao mesmo tempo em que realizava aquele que é considerado o primeiro monitoramento diário da covid por município do Brasil.  O estudo acadêmico gerou a dissertação “Subnotificação a subnotificação: o uso declaratório de dados quantitativos sobre mortes de covid-19 no noticiário do jornal Folha de S. Paulo”. “Naquele ano, a imprensa inteira foi levada a fazer jornalismo científico aos solavancos, em quase todas as editorias. Era preciso explicar a covid e seus impactos”.

Soares assume que lida, na sua prática jornalística, com a ambivalência do jornalismo de dados, que, segundo ele, tanto pode ser uma modalidade do jornalismo especializado, quanto uma linguagem, ou até mesmo uma técnica.

A professora de jornalismo da Universidade Federal do Tocantins e presidenta da Associação Brasileira de Ensino de Jornalismo Marluce Zacariotti sublinha que o termo jornalismo de dados gera divergências teóricas. “Se o entendemos em sua complexidade, que vai além da atividade rotineira do jornalismo de levantar e divulgar dados, temos que é algo que segue as características gerais do jornalismo especializado: aprofundamento, análise, interpretação, ampliação de fontes e/ou dados primários, uso de recursos como infográficos, além de exigir maior tempo e rigor investigativo.” 

“A meu ver, o jornalismo especializado é, em si, uma prática interdisciplinar porque, em geral, uma área temática do jornalismo está imbrincada em outras áreas. O jornalismo político, por exemplo, está diretamente relacionado à economia. E o campo da ciência é multidisciplinar. Ainda que se opte por uma segmentação, muitas questões são transversais, a exemplo de políticas públicas. Portanto, o jornalismo especializado, que vai além da tematização (o que, em geral ocorre na divisão editorial de veículos de massa), ganha valor, complexidade, profundidade na contextualização que se dá a partir de correlações com outras áreas”, completa.

Profusão de dados

Mas como lidar com dados em um contexto mundial hiper virtualizado, em que a profusão de informações e a dependência das chamadas Big Techs – e mais recentemente o advento da Inteligência Artificial Generativa – atravessam a produção da notícia?

Wilson da Costa Bueno, jornalista e professor sênior da USP, autor da primeira tese de doutorado do Brasil sobre jornalismo científico e referência quando o assunto é divulgação da ciência, sustenta que: “Não se trata nem de demonizar as ferramentas de IA generativa, nem de imaginar que elas não podem incorporar riscos (as chamadas “alucinações”) à prática do jornalismo especializado. A IA generativa não se confunde com o jornalismo especializado, mas pode ser utilizada na sua prática para gerar e cruzar dados e informações e até para contribuir para tornar a divulgação científica mais acessível ao cidadão comum. Há estudos e pesquisas que têm como foco favorecer a aplicação dos princípios de acessibilidade à comunicação científica e isso é fundamental para promover a diversidade e a inclusão.”

Marluce assinala que quando as diretrizes curriculares nacionais dos cursos de jornalismo foram regulamentadas, ainda não havia a atual centralidade das tecnologias digitais, da plataformização e das redes sociais.  “Estamos falando de 2013. Ao longo desses 12 anos, vivemos uma transformação na comunicação, com impactos no mundo do trabalho, nos modos como a sociedade se relaciona e consome informações. Então, torna-se necessário discutir atualizações que deem conta desta nova realidade, especialmente em relação à inteligência artificial. Eu acredito que o maior desafio é ético”.

Interesse público

Marluce Zacariotti enfatiza que o exercício jornalístico é inseparável de uma prática comprometida com o interesse público. No entanto, o caminho para que de fato seja produzido conhecimento jornalístico envolve muitas etapas e subprocessos. Além de decodificar o conteúdo científico, buscar fontes que tragam diferentes perspectivas para o debate, utilizar exemplos e infográficos e trabalhar, cada vez mais, com multimidialidade: porque é preciso entender o novo modo como as pessoas consomem informações, as possibilidades de uso de redes sociais para oportunizar a divulgação científica e a informação sobre ciência”.

Costa Bueno afirma que em termos de jornalismo especializado, seja científico, ambiental ou em saúde, o importante é a incorporação do que ele denomina ativismo cívico. O professor chama a atenção para o cenário atual, em que os mais vultuosos investimentos em ciência e tecnologia são destinados à indústria da guerra e à produção de artefatos que ameaçam a vida, tais como produtos agroquímicos e armas biológicas. Para ele, nesse contexto a capacitação do jornalista científico não pode se limitar ao domínio técnico da produção de notícias e reportagens de qualidade. “O jornalista deve estar atento aos interesses de corporações que atuam na área e que sobrepõem os seus interesses ao interesse público. A neutralidade geralmente valida as injustiças, não enxerga os interesses espúrios que rondam a produção e a divulgação científica”, destaca.

Liniane Haag Brum é doutora em teoria e crítica literária (Unicamp). Bolsista Mídia Ciência (Fapesp) pelo qual desenvolve o projeto de divulgação “Tempo e documento: Ugo Giorgetti em quatro médias-metragens”.