Casamento entre escravos foi uma forma de controle
            
              No dia 5 de julho de 1868, o fazendeiro Camillo Xavier Bueno da 
              Silveira levou cinco casais de escravos para se casarem na igreja 
              Nossa Senhora da Conceição de Campinas. No mesmo dia, 
              seu sogro Américo Ferreira de Camargo levou outros dois casais. 
              Um dos escravos de Américo era irmão de três 
              noivas levadas pelo Capitão Camillo: as cerimônias 
              coletivas de escravos eram uma forma de aproximar parentes separados 
              entre os membros de uma mesma família, de poupar viagens 
              até a igreja e de contentar os cativos com o clima de festa 
              que o casamento coletivo criava. Os senhores de escravos reconheciam, 
              portanto, a importância das relações de parentesco 
              entre os cativos. Esta é uma das conclusões do livro 
              Histórias de famílias escravas, da historiadora 
              Cristiany Miranda Rocha, recém lançado pela Editora 
              da Unicamp.
            O 
              livro é fruto da dissertação de mestrado da 
              autora e acompanha quase um século de existência de 
              algumas famílias de proprietários de escravos na cidade 
              de Campinas. Analisando censos antigos, processos contra crimes, 
              registros paroquiais de batismos e de casamentos, a historiadora 
              mostra como existia vida familiar entre os escravos e que a constituição 
              de famílias era incentivada pelos senhores como forma de 
              organizar, aumentar e controlar a escravidão. Para o historiador 
              Robert Slenes, o livro ajuda a desfazer a idéia de que o 
              escravismo destruiu a família, deixando os afro-brasileiros 
              sem normas comunitárias ou laços de solidariedade.
            A 
              idéia de que a vida familiar nas senzalas era precária 
              ou inexistente faz parte da produção historiográfica 
              que vigorou até 1970. "Os livros didáticos ainda 
              mantém esta visão tradicional que só enfatiza 
              a violência na relação escravo e senhor, deixando 
              de lado outras questões como os casamentos, o compadrio, 
              etc., que também eram um meio de assegurar a sobrevivência 
              da escravidão", explica Rocha.
            	   Os 
              escravos procuravam construir laços de solidariedade tanto 
              com os senhores como com outros escravos. Assim, Fabiano e Carolina 
              escolhem a escrava Sabina para madrinha de seu primeiro filho Porfírio, 
              em 1860. Sabina era uma escrava de confiança, muito próxima 
              da família do capitão Camillo, citado acima. "A 
              escolha destes compadres baseava-se na expectativa de se integrarem 
              em redes de parentescos que pudessem, de um lado, acolhê-los 
              na comunidade de cativos e, de outro, aproximá-los dos benefícios 
              senhoriais". Para alguns pais havia também a preocupação 
              com a manutenção dos laços com o passado. Isso 
              pode ser observado nos casos em que os avós da criança 
              batizada se tornam seus padrinhos. "O que importa aqui, é 
              manter viva a memória das gerações passadas 
              através da homenagem", completa a historiadora.
            Outra 
              interessante conclusão da pesquisa é que os escravos 
              sabiam aproveitar as relações de parentesco e amizade 
              entre seus senhores, para manter contato e proximidade com seus 
              próprios parentes e assim manter a estabilidade familiar, 
              mesmo quando estavam em propriedades diferentes. Para os chamados 
              escravos de ofício, que tinham tarefas especializadas, o 
              contato com escravos de fazendas vizinhas era facilitado pela maior 
              mobilidade. Desses contatos surgiam alguns relacionamentos entre 
              casais, tolerados pelos senhores, ou apadrinhamentos, já 
              que os proprietários eram amigos entre si. "Tudo indica 
              que as cercas entre as fazendas deixavam brechas pelas quais os 
              escravos podiam manter e estender suas redes de amizade e parentesco", 
              conclui Rocha.
            A 
              extinção do tráfico de africanos a partir de1850 
              impôs aos senhores de escravos a busca de alternativas para 
              suprir a necessidade de mão-de-obra nas fazendas de café 
              do Sudeste brasileiro. Uma delas foi o tráfico intra e interprovincial. 
              O tráfico interno procurava homens jovens e sadios que vinham 
              principalmente do Norte e Nordeste. Esses escravos eram vendidos 
              sozinhos, deixando para traz suas famílias e suas comunidades 
              de origem. Eram justamente eles os que fugiam a até matavam 
              por não aceitarem as novas condições do cativeiro. 
              Rocha explica que o parentesco escravo, que antes era fator que 
              pacificava os escravos e colaborava com a manutenção 
              do sistema, passou a ser um dos principais entraves ao funcionamento 
              da dominação escravista.
            Em 
              1873 os escravos Basílio e José, trazidos da Bahia 
              e do Rio de Janeiro, matam um funcionário de seu senhor durante 
              a viagem de volta à fazenda após uma tentativa de 
              fuga. Nos depoimentos dos escravos, registrados no processo criminal 
              que investigou o assassinato, os escravos alegam que fugiram porque 
              queriam pedir ao delegado que forçasse o fazendeiro Cândido 
              José Leite Bueno a vendê-los, alegando maus tratos. 
              "A fuga não tinha como finalidade a negação 
              do cativeiro, ou seja, a vida em liberdade em algum outro lugar. 
              Eles buscam conseguir aquilo que consideravam como justo ou aceitável 
              dentro do cativeiro", diz Rocha. Estudos mostram que, na maior 
              parte dos crimes envolvendo escravos na segunda metade do século 
              XIX, os escravos eram de outras províncias, ou seja, escravos 
              desenraizados.
            A 
              onda de violência fez com que em 1881 fosse aprovada uma lei 
              antitráfico interno, evidenciando o medo da elite diante 
              dos crimes praticados pelo "negro mau vindo do Norte", 
              como eram chamados esses escravos. "O desenraizamento de cativos, 
              ou seja, sua retirada do local de origem, onde viviam seus familiares 
              e amigos (ou mesmo a ameaça dele) trouxe conseqüências 
              funestas tanto para os escravos quanto para os senhores", conclui 
              a historiadora.