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Ciência e religião: qual a idade do universo?

José Luiz Goldfarb

Interessa o diálogo ciência e religião? Para muitos a questão é simples e nem requer muita reflexão: ciência lida com o mundo objetivo, utiliza a razão e a experimentação; religião lida com o mundo espiritual, utiliza a fé e a ritualística. Ponto final. Distintas formas de ação do ser humano com características próprias e independentes. As fronteiras são claras, não há em verdade a necessidade de disputas pois os domínios da ciência e da religião não se encontram nem se desencontram: simplesmente não se comunicam.

Sem dúvida a imagem do parágrafo anterior pode ser considerada o paradigma de nosso tempo. Depois de séculos de disputas, encontros e desencontros, quando presenciamos a violência (até física) de variadas formas de inquisições religiosas (cristãs, judaicas, islâmicas) opondo-se à livre especulação e observação da natureza da ciência, seguida do contra-ataque iluminista que marcando o despontar da modernidade, quis eliminar toda a metafísica, para consolidar o domínio da ciência; nasce afinal um pacto de convivência pacífica entre as duas mais poderosas formas de expressão que a humanidade já experimentou. A ciência e a religião deixam de confrontar-se pois não há mais o diálogo. Cada qual cuida de sua área de influência. Em linhas gerais, este pode ser indicado como o quadro da questão nos dias de hoje.

No entanto, os estudos que desde a segunda metade do século passado vem sendo desenvolvidos na área da história da ciência demonstram que apesar das tensões já mencionadas, a origem da modernidade foi marcada simultaneamente por um intenso diálogo e intercâmbio entre ciência e religião. Um caso exemplar é o pensamento de Isaac Newton que investigado em profundidade a partir da leitura de centenas de manuscritos e de correspondências, mostrou-se uma interessante síntese da nova ciência nascente, e correntes herméticas como a alquimia e a cabala, além de diversas influências do pensamento teológico. Através de muitos outros estudos enfocando centenas de outros precursores da modernidade, a história da ciência indicou que as origens da ciência moderna dependem muito menos de um rompimento entre ciência e religião, como o paradigma da modernidade quis ensinar, do que um intenso e profícuo diálogo que moldou os caminhos da modernidade.

Dentro dos marcos das descobertas da história da ciência é possível pensar novas formas de diálogo entre o pensamento religioso e o pensamento científico na atualidade, especificamente na questão da idade do universo, que é sem dúvida um dos desdobramentos do debate criacionismo x evolucionismo, tema desta edição da ComCiência. Veremos que se abrindo o diálogo, surpreendentes possibilidades aparecem.

Qual a idade de nosso universo? Nos últimos anos as revistas de divulgação científica apresentam resultados indicando que a cifra inicialmente anunciada, 15 bilhões de anos, talvez seja demasiada alta, e que o universo, desde o big-bang até nossos dias, não teria mais que 12 bilhões de anos. De qualquer maneira, não há dúvida de que os números da ciência apontam para uma cifra bastante grande, muito difícil de se imaginar. Nossa mente está habituada com dezenas de anos, séculos e no máximo milênios. Bilhões de anos é algo muito estranho para nosso raciocínio mais imediato. Mas isto não é um aspecto isolado no conhecimento científico: muita coisa na ciência foge à nossa compreensão mais imediata das coisas. Para tomar uma ilustração diametralmente oposta pensamos na ciência dos átomos e seus núcleos que descrevem processos hiper-rápidos, como isótopos de certos elementos químicos que têm uma vida média de 10 a menos nove segundos, é dizer, 0,000000001 segundos. Dá para imaginar um tempo tão pequeno? Pois os físicos e químicos não só imaginam esses tempos superpequenos como estudam em detalhes esses elementos e seus processos nucleares.

Em verdade, o conhecimento científico é bem menos óbvio do que queremos crer. A ciência, como conhecimento humano da natureza e do universo, faz uso de esquemas mentais e arranjos experimentais bastante complexos, que exigem um envolvimento e treinamento muito profundo e demorado por parte do cientista para que um bom nível de compreensão e prática seja atingido. Quando pensamos na idade do universo em termos científicos somos levados a essas surpreendentes cifras. E se confrontamos essas cifras com os conhecimentos extraídos da Bíblia somos inicialmente levados a perceber um tremendo desencontro. Pelo relato bíblico, poderíamos afirmar que o universo não possui nem 6000 anos de existência. A ciência e a religião estariam, nesta questão específica, em completo desacordo.

Muitos acreditam nas conclusões acima esboçadas e desconsideraram o conhecimento científico, validando a religião, ou pelo contrário, re-afirmando o conhecimento bíblico, relativizam ou mesmo desprezam o conhecimento científico. Inspirados nas reflexões iniciais deste ensaio talvez a própria questão possa ser desprezada, afinal como se quer fazer crer, ciência e religião não se comunicam!

Neste ensaio vamos tomar uma direção bastante diferente. Vamos mostrar que os ensinamentos bíblicos também são eles bastante complexos e que a partir de interpretações de alguns pensadores do passado podemos solucionar os problemas acima apontados concluindo que os conhecimentos científicos podem ser usados para validar afirmações de pensadores que viveram há mais de 700 anos, estudando a Bíblia.

Em nossa argumentação vamos utilizar as idéias de Aryeh Kaplan (autor de muitas obras já lançadas no Brasil) em seu artigo "A idade do universo". Como sábio tradicional do judaísmo, Kaplan busca na literatura rabínica clássica afirmações relevantes sobre o tema, a idade do universo, um tema que ele considera aberto à discussão. Significativamente, ele encontra um conceito muito importante, embora não muito conhecido discutido no Sefer ha-Temunah, um antigo trabalho cabalístico atribuído ao Rabino Nehunya ben ha-Kanah, do primeiro século da era comum. Esse trabalho discute a forma das letras hebraicas e é uma fonte freqüentemente utilizada em assuntos da literatura da halakha (área tradicional da cultura judaica que estuda os costumes a aplicação das leis da Bíblia). Assim, Kaplan nos mostra que o Sefer ha-Temunahnão é um trabalho obscuro e sem importância, mas, pelo contrário ele é um ponto de apoio da maioria das autoridades em questões de halakha ao longo dos séculos. O Sefer ha-Temunah menciona os Ciclos Sabáticos (shemitot). Esta noção está baseada no ensinamento segundo o qual "o mundo existirá por 6000 anos, e no ano 7000, ele será destruído". Sefer ha-Temunah afirma que esse ciclo de 7000 anos é apenas um ciclo sabático. Entretanto, como existem sete ciclos sabáticos no jubileu, o mundo está destinado a existir por 49000 anos. Kaplan afirma também que existem muitos cabalistas que mantiveram o conceito de ciclo sabático. Seguindo então sua argumentação, Kaplan expõe muitas citações da literatura rabínica concluindo que o universo tinha 42000 quando Adão foi criado. Kaplan introduz, nesse ponto de sua argumentação, a interpretação sobre a idade do universo elaborada pelo Rabino Isaac de Akko (1250-1350) no manuscrito Ozar ha-Hayyim cujos argumentos - que se referem basicamente à diferença entre anos terrestres e anos celestes - nos permitem concluir que o universo teria 42000x365250 anos. Fazendo a multiplicação obtemos 15.340.500.000 anos, uma cifra muito significante. Estamos falando, segundo Isaac de Akko, de 15 bilhões de anos, uma cifra bastante semelhante àquela oferecida pela ciência e a teoria do big-bang. Aqui nós temos a mesma cifra aparecendo numa fonte de estudos da Bíblia escrita há mais de 700 anos atrás, na Idade Média!

O próximo passo de Kaplan é explicar como um resultado tão surpreendente pode ser explicado no contexto da criação bíblica, incluindo os sete dias da criação. Mas essas discussões fogem ao escopo desta comunicação. Queremos apenas indicar que, ao contrário do que comumente se acredita, ciência e religião tiveram no passado uma interação muito produtiva e que é possível ainda desenvolver essa relação como no caso específico da idade do universo. Aqui os resultados da ciência re-afirmam os argumentos de Isaac de Akko. Se muitos meios religiosos receberam as descobertas científicas relativas à evolução e à idade do universo como um confronto à Bíblia, os argumentos aqui apresentados permitem uma atitude bastante diferente. Assim, desde o século XIX encontramos estudiosos da tradição judaica que afirmam que as descobertas científicas não eram contra a Bíblia mas que, em verdade, confirmavam os pensamentos tradicionais. Tais pensadores citaram, então, descobertas como mamutes encontradas perto de Baltimore nos Estados Unidos, assim como dinossauros. Como essas criaturas não mais existem, elas representam evidências de seres que viveram em prévios ciclos sabáticos; posteriormente à teoria do Big Bang seria, segundo esses pensadores, em perfeito acordo com os cálculos medievais.

O estudo da história da ciência abre-nos novas perspectivas para entendermos as relações entre a ciência e a religião no passado, além de indicar-nos caminhos inusitados para tratarmos os dilemas do presente.

José Luiz Goldfarb é professor de história da ciência na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.


Bibliografia

Aryeh Kaplan, Sefer Ietsirá, o livro da Criação. Editora Sefer, São Paulo.

Aryeh Kaplan, Imortalidade, Ressurreição e idade do universo: uma visão cabalística. Editora Sefer, São Paulo.

Isaac Newton, Textos, antecedentes, comentários. Escolhidos e organizados por Bernard Cohen e Richard Westfall. Editora Contraponto e Editora da Universidade Estadual do Rio de Janeiro.

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Atualizado em 10/07/2004

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