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Física Quântica no Brasil
Amélia Hamburger

Física Quântica e Holística
Ubiratan D'Ambrósio

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Física Quântica no Brasil

A física Amélia Império Hamburger é pesquisadora da Universidade de São Paulo (USP) na área da História da Ciência. Sua experiência com a organização dos arquivos históricos do Instituto de Física da USP e as experiências pessoais no contato com figuras importantes nos primórdios das pesquisas em Física Moderna no Brasil, como o brasileiro Mário Schönberg (1914 - 1990), o italiano Giuseppe Occhialini (1907-1993) e o norte-americano David Bohm (1917-1992), colocaram-a num referencial privilegiado para observar de perto uma fase importante do desenvolvimento da pesquisa em física no Brasil. Schenberg e Occhialini deram importantes contribuições à física, respectivamente na parte teórica e experimental. Mário Schenberg é hoje um dos físicos brasileiros mais respeitados no exterior (há entrevistas com vários desses personagens no livro "Cientistas do Brasil", publicado pela SBPC em 1998).

David Bohm ficou famoso principalmente por sua teoria causal da mecânica quântica - a mais bem-sucedida tentativa de recuperar o determinismo na Física Moderna - e por suas posteriores concepções holísticas da mecânica quântica, publicadas em 1980 no seu livro A totalidade e a ordem implicada (publicada no Brasil pela editora Cultrix). Estas últimas influenciaram decisivamente várias correntes holísticas da atualidade (veja entrevista com o prof. Ubiratan d'Ambrosio). Fugindo das perseguições anti-comunistas do período macarthista nos Estados Unidos, na década de 1950, Bohm passou pouco mais de três anos no Brasil (1951-1955) e chegou a obter a cidadania brasileira em 1954 (Olival Freire Jr., "David Bohm e as controvérsias do mundo dos quanta", Ciência Hoje No. 169, pág. 34). Foi durante a sua estadia aqui que publicou os trabalhos pioneiros de sua teoria causal da mecânica quântica (1952).

Nesta entrevista dada à revista Com Ciência, Amélia Hamburger fala sobre a entrada da física quântica no Brasil, as primeiras pesquisas na área, e sobre a influência da estadia de David Bohm no Brasil.

Com Ciência - A Física Quântica foi desenvolvida principalmente entre 1900 e 1927. Como esse conhecimento entrou no Brasil?
Hamburger -
Creio que esse tema - como a Mecânica Quântica começou a fazer parte da cultura científica brasileira - merece uma pesquisa histórica verdadeira. Eu vou responder a suas perguntas com algum conhecimento que tenho dos arquivos históricos que ajudei a organizar no Instituto de Física da Universidade de São Paulo e pelas experiências pessoais no contato com David Bohm, Mario Schenberg, Giuseppe Occhialini, e outros, como professores e como amigos. A Física Moderna, que em nossos currículos introduz a física quântica, desenvolvida no fim do século XIX e comêço do século XX, foi a física do descontínuo, como chamou Paul Langevin. Esse físico francês, que deu contribuições importantes à teoria do magnetismo e também à teoria da relatividade, escreveu um livro, para mim fundamental, de divulgação das novas idéias na física do começo do século: "La Physique Depuis Vingt Ans", publicado em 1923. Esse livro imediatamente passou a fazer parte das bibliotecas de Luiz de Barros Freire e de Luiz Cintra do Prado, que foram professores de física das Escolas de Engenharia da Universidade de Pernambuco e da Universidade de São Paulo, a Politécnica. Temos uma parte do Arquivo pessoal de Luiz Freire, no IFUSP, onde consta a lista de livros de sua biblioteca, hoje na UFPe. Na biblioteca do IFUSP temos o exemplar de Cintra do Prado. Cintra do Prado fez, mais tarde, em 1937,38, experiências de radioatividade junto ao grupo de [Gleb] Wataghin. Luiz Freire ensinava a seus alunos, fora das aulas regulares, incentivando-os seguirem carreiras científicas. Mário Schenberg, José Leite Lopes, Hervásio de Carvalho, Ricardo Palmeira, Fernando de Souza Barros, e vários outros pernambucanos vieram para São Paulo e Rio e se tornaram pesquisadores, é claro, nas teorias contemporâneas. Existe uma carta de Schenberg a Luiz Freire, de 1935, quando aluno da Politécnica de São Paulo, em que narra ao "mestre", com senso crítico, sua interação com o professor Theodoro Ramos, considerado um especialista na teoria quântica, discutindo essa teoria em simpáticas discussões aos domingos na casa do professor. Creio, então, que alguns professores de física das escolas de engenharia introduziram, para seus alunos, o conhecimento da teoria quântica no Brasil. Certamente no Rio de Janeiro também aconteceu o mesmo.

Com Ciência - A partir de quando a quântica passou a fazer parte do currículo dos cursos de graduação em física?
Hamburger -
Os primeiros currículos de graduação em física foram dos cursos das Faculdades de Filosofia, Ciências e Letras, que foram fundadas em 1934, 1935, em São Paulo e Rio, respectivamente. Wataghin, vindo da Universidade de Turim, introduziu em São Paulo currículo inspirado em sua experiência italiana, além dos cursos básicos, comuns com as escolas de engenharia, cursos de "Física Teórica e História da Física" e "Física Superior" onde estavam os fundamentos da física quântica. Mas certamente Schenberg, Sala, Lattes estudaram mecânica quântica, e eram tão poucos alunos por classe que não havia quase aulas, compensadas por seminários frequentes. Como disse Lattes em depoimento, estudavam mais sozinhos e conversavam muito, e Sala disse: "Aprendi com Schenberg, Abrahão de Moraes, Damy, Sonia Ashauer..." Talvez Marcello Damy e o Professor Gross [que mora em São Carlos] também, possam dar informações interessantes. Não fiz um rastreamento das modificações de currículo. Em 1953 Bohm deu um curso seguindo seu livro Quantum Theory, de 1952. O professor Walter Schultzer dava aulas de exercícios. Havia seminários de discussão com Jean Meyer e Schenberg sobre outros enfoques, de Blokhinzev e Fock.

Com Ciência - Em que áreas foram feitas as primeiras pesquisas envolvendo a física quântica no Brasil?
Hamburger -
Diria que certamente foram os raios cósmicos. Tanto no grupo de Wataghin em São Paulo como o professor B. Gross no Rio. Creio que o professor Wataghin e sua compreensão, eu diria profundamente quântica, da interação dos raios cósmicos com as partículas da alta atmosfera fazia-o prever o decaimento em chuveiros extensos. Wataghin intuía a existência de um cumprimento mínimo de interação, que, no princípio de incerteza de Heisenberg correspondia a um feixe de partículas emergentes, em forma de chuveiro. Essa idéia clara de Wataghin ao vir para o Brasil orientou as primeiras pesquisas experimentais em raios cósmicos. Em 1940, os resultados das medidas feitas em São Paulo por Wataghin, Marcello Damy e Paulus Pompéia, alcançavam reconhecimento internacional com suas publicações no Physical Review. As interações de Wataghin e também de Occhialini, trazido por Wataghin e muito ligado a Schenberg e Lattes, com os físicos ingleses que nos anos trinta faziam descobertas fundamentais em física nuclear, o positron, o neutron, que juntavam as experiências com uma visão teórica de vanguarda, já desde Rutherford, Dirac, Powell, Blackett, em constante interação com os físicos de Copenhagen, sobretudo Bohr, Pauli, e outros, foram as influências mais profundas na formação da visão dos físicos brasileiros daquela geração pioneira, dos anos quarenta, em São Paulo.

Com Ciência - O físico norte-americano David Bohm, conhecido principalmente pela sua teoria causal da mecânica quântica, passou mais de três anos no Brasil. Qual a sua importância no desenvolvimento da física brasileira?
Hamburger -
David Bohm teve influência na minha geração. Creio que seus cursos e sua passagem pelo Brasil abriram horizontes sobre questões filosóficas que envolvem os fundamentos das teorias físicas. Dava seminários extra cursos sobre determinismo e indeterminismo, a questão da realidade objetiva e a verdade das teorias, muito difíceis, mas instigantes. Publicou trabalho importante com Walter Schutzer sobre teoria de probabilidades, inspirou trabalho de doutoramento em fundamentos da mecânica quântica de Klaus Tausk, discutiu a formação dos alunos brasileiros, que achava que deveria ser mais sólida em termos de habilidades práticas e resolução de problemas. Creio que ficamos muito influenciados, acostumados a pensar que as teorias podem ter seus limites de validade determinados por novas teorias com alcance fenomenológico e conceitual maior.

Com Ciência - Bohm publicou sua teoria causal da mecânica quântica em 1952, quando já estava no Brasil. Houve alguma interação com cientistas brasileiros com relação a essa teoria? Como a comunidade científica brasileira encarou essa nova teoria?
Hamburger -
Em 1952 houve um Congresso no Rio de Janeiro e em São Paulo, que deve ser estudado em termos da física feita naquela época para se ter idéia do que seria a nossa "comunidade" de físicos. Como já disse acima, a formação dos físicos de São Paulo era fortemente pela descontinuidade, pela física de partículas de Dirac. Wataghin e Schenberg seguiam o caminho de Bohr e Heisenberg, Dirac, Pauli. Mas havia intensa interação e discussões estimulantes.

Com Ciência - Bohm chegou a dar aulas no Brasil. Sua visão bem particular da física quântica influenciava na sua maneira de dar aulas e no conteúdo das aulas? Terá influenciado na formação de físicos brasileiros?
Hamburger -
O curso normal seguia o livro recém- escrito, que é muito bom, que esclarece uma formulação básica na visão da Escola de Bohr, isto é, a interpretação de Copenhagen, não a de Bohm. Foi escrito com essa intenção. A partir desse livro é que Bohm se voltou para o problema de formular uma teoria que descrevesse um nível mais fundamental que o das probabilidades quânticas - a um nível mais profundo os acontecimentos estariam determinados. Mais tarde desenvolveu o conceito de ordem implícita que desembocou no potencial quântico de longo alcance. Fizemos um Simpósio em sua homenagem há alguns anos, no Instituto de Física, e é interessante ver vários pesquisadores que não o conheceram pessoalmente trabalhando com suas teorias ou muito próximo. [Fundamentos da Física 1 - Simpósio David Bohm - Osvaldo Pessoa Jr. (org.) Editora Livraria da Física USP, S.P. 2000] Entretanto podemos dizer que não há evidência de influência direta de sua estadia. Talvez seja mais uma mentalidade de liberdade e imaginação que foi passada na física desenvolvida em São Paulo, e daí creio que não dá para minimizar o papel de Wataghin, Occhialini, Mario Schenberg, e os primeiros colaboradores. Nos fundamentos da Mecânica Quântica Schenberg tem produção importante e um estudo comparativo de seu enfoque conceitual enraizado nas mais modernas teorias matemáticas, com sínteses claras, poderia ser muito interessante, com o raciocínio analítico de David Bohm, também claro e detalhado. O curso de física teórica de Bohm, onde discorreu com precisão incomum sobre a teoria das probabilidades, ainda merece ser publicado.

Atualizado em 10/05/01

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