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Modelo econômico impede melhoria das políticas públicas
Luiz Gonzaga Belluzzo

Avaliação das políticas públicas é objeto de pesquisa
Marta Arretche

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Modelo econômico impede melhoria das políticas públicas

Para o economista Luiz Gonzaga Belluzzo, ex-secretário de política econômica do Ministério da Fazenda, professor titular do Instituto de Economia da Unicamp e editor da revista Carta Capital, estamos vivendo um fenômeno de decomposição do capitalismo, uma crise da atual forma de articulação da economia mundial, e uma recuperação crítica dos pontos centrais que construíram o Estado de Bem Estar e a sua relação com o crescimento econômico. Belluzzo argumenta que a atual configuração do capitalismo não permite melhorar a qualidade das políticas sociais públicas, principalmente nos países em desenvolvimento que vivem a competição "perversa" de implantar condições de proteção social menos efetivas para atrair capitais. O economista afirma a necessidade de revalorização do âmbito público e da compreensão de que sem isso a economia de mercado não funciona. Luiz Gonzaga Belluzzo abordou esses pontos na entrevista que concedeu à ComCiência.

 

"O efeito da operação da economia em baixo crescimento gerou mais pobreza do que o aumento dos gastos era capaz de absorver"

ComCiência - Que impactos o atual quadro sócio-político, caracterizado pela globalização, reestruturação produtiva e neoliberalismo, tem sobre as políticas sociais públicas?
Luiz Gonzaga Belluzzo -
A mudança, que ocorreu nos anos 80, na organização da economia mundial depois das crises do petróleo e da subida das taxas de juros dos Estados Unidos, deram o golpe final no consenso que prevaleceu no pós guerra. Esse consenso apontava para formas de proteger as economias nacionais das turbulências externas, para a adoção de controles sobre o movimento de capitais. Mesmo que essas ações tenham sido inferiores àquilo que era desejado na reforma de Breton Woods, em 1944, tudo isso caminhou na direção da flexibilização do mercado, na fluidificação dos movimentos dos capitais e na subordinação das políticas nacionais aos ricos e aos rumores do capital financeiro. Isso colocou muitas restrições fiscais e à execução de políticas mais autônomas, com efeitos sobre a capacidade de utilização de instrumentos tradicionais de promoção do crescimento por parte dos países desenvolvidos. E causou uma retração às políticas do Estado de Bem Estar Social e, além disso, produziu uma redução nas taxas médias de crescimento. A exceção foi a explosão do crescimento americano nos anos 90, que terminou de uma forma melancólica com uma série de escândalos financeiros e desequilíbrios graves nos balanços das empresas, com o sobreendividamento das famílias.

No caso das políticas públicas dos países em desenvolvimento, apesar da retórica em favor da redução da pobreza, e até do aumento de gastos sociais, o efeito da operação da economia em baixo crescimento gerou mais pobreza do que o aumento dos gastos era capaz de absorver.

Nós estamos vivendo, nesse momento, uma crise desse modelo e dessa forma de articulação da economia mundial. A outra conseqüência é que o crescimento mundial ficou muito dependente do que acontece com os Estados Unidos. Há, hoje, uma economia americanocêntrica, com as fontes de crescimento excessivamente concentradas nos Estados Unidos. Quando a economia entra numa fase recessiva é óbvio que o resto dos países, com essa articulação, com essa forma de organização da economia mundial que aí está, não consegue restabelecer formas de organização que superem alguns obstáculos e que: primeiro, imponham restrições ao movimento de capitais - que perturba as políticas econômicas -; segundo, que redistribuam o poder econômico de modo o ultrapassar essa limitação imposta pela concentração nos Estados Unidos e; terceiro, superem a incapacidade crescente dos Estados nacionais de executarem suas políticas.

ComCiência - As teses neoliberais questionam o excesso de proteção social do modelo de Estado de Bem Estar social. Qual sua opinião sobre essa idéia? A proteção é um obstáculo para o crescimento econômico e para a criação de empregos?
Belluzzo -
A criação de um sistema de proteção social é um dos fatores importantes de estabilidade para os países que têm sistemas mais aperfeiçoados, que são os países europeus. O volume de transferências executado pela via fiscal impõe um limite automático à retração econômica quando a economia privada flutua. São os chamados estabilizadores automáticos, que ainda funcionam. O que acontece é um conflito entre essa concepção da economia, que estava muito ligada a predominância das políticas nacionais e a globalização financeira, e o movimento das empresas transnacionais, que querem buscar sempre, no seu processo de internacionalização, os custos menores e as condições de produção que lhe são mais favoráveis. Isso fez com que os países em desenvolvimento entrassem numa competição perversa para atrair esses capitais e oferecer as condições de proteção social menos efetivas. Houve até a tentativa, há algum tempo atrás, de ligar a abertura comercial à adoção de critérios de proteção social mais rigorosos pelos países em desenvolvimento - programas de bem estar mais rigorosos, sobretudo de proteção aos trabalhadores, tipo seguro-desemprego etc. Essa tese não prosperou, até porque não era de interesse das empresas e dos países que estavam competindo para atrai-las. O problema é que a aceitação da flexibilização do mercado de trabalho e da precarização dependia muito de um crescimento razoável da economia. Quando isso se reduziu observou-se, no mundo inteiro - na Inglaterra e sobretudo na Itália e na França - uma resistência muito grande à redução dos benefícios.

O colapso da bolsa mostrou que o modelo americano dos fundos de pensão é inviável como, na verdade, a quebra de 1929 já tinha mostrado. O sistema ideal é o de repartição simples e não o de capitalização. Isso já é uma coisa decretada, ainda que no Brasil, por incrível que pareça, tenha gente atrasada em relação a isso.

O que se tem, de fato, é um fenômeno de decomposição desse capitalismo destrambelhado, uma recuperação crítica dos pontos centrais que construíram o Estado de Bem Estar e a sua relação com o crescimento econômico. É isso o que estamos observando nesse momento.

ComCiência - Que tipo de política de proteção social é viável a partir da transição que vivemos, essa nova concepção de Estado?
Belluzzo -
Os estudos recentes, tanto feitos pelos economistas de formação neoclássica, liberal e conservadora, quanto pelos mais progressistas, estão mostrando que esse capitalismo não tem como melhorar e incrementar a qualidade das políticas sociais. Ele não é compatível com a melhoria das políticas sociais. A idéia de um fim das políticas universais de proteção não é possível numa sociedade moderna e complexa como a nossa.

É claro que tivemos distorções na execução da idéia do Estado de Bem Estar, tivemos um desequilíbrio em que até os setores sociais mais poderosos tiveram uma cobertura melhor. Mas há algumas questões que já são definitivamente resolvidas, como por exemplo o caráter universal das políticas de saúde e educação. No caso do Brasil, essa idéia não vingou ainda. As políticas de educação são deficientes porque caíram os gastos, caiu a participação no orçamento de setores como saúde e educação. Houve uma falta de sincronia nos movimentos. O desemprego e o baixo crescimento aumentaram a demanda por esses serviços. Mas a oferta cresceu muito lentamente.

A idéia neoliberal é a de focalização das políticas para determinados setores da sociedade e, na minha opinião, isso é impossível em um país como o nosso. Acontece que, com a focalização das políticas nos pobres você dessolidariza uma parte da população. No caso, a classe média brasileira é absolutamente indiferente, pelo menos era até pouco tempo atrás, ao destino das políticas públicas porque conseguia se resolver com o lado privado. Mas isso já não é mais possível. A classe média depende cada vez mais das políticas públicas.

Essa é uma transição que tem dois níveis, um é o nível da execução, da melhoria das políticas. Outro é um nível subjetivo: as pessoas precisam revalorizar o setor público e entender que, sem um âmbito público importante, a economia de mercado não funciona.

ComCiência - Como o senhor avalia os programas como o de Renda Mínima ou Bolsa Escola e programas que oferecem renda àqueles que prestam serviços sociais? Em um país como o Brasil, programas como esses devem ter caráter emergencial ou permanente? Pode-se dizer que esses programas promovem a inclusão social de fato?
Belluzzo -
Se o tempo livre que é criado pelo capitalismo fosse bem utilizado, essa sobra de gente que aí está poderia ser integrada sob a ótica da prestação de serviços à comunidade. Enfim, usar inteligentemente a inclinação, a solidariedade e o espaço de renda que se tem, para que isso possa ser executado.Eu acho que esses programas devem ser usados em caráter emergencial. E são importantes. Mas, ainda que se fale no fim do trabalho e na atribuição de direitos às pessoas independentemente de sua condição no mercado de trabalho, acho que não se pode tomar isso ao pé da letra. Estamos falando da existência do trabalho na sua forma relacionada com esse tipo de capitalismo vigente. É possível vincular remuneração à atividade socialmente bemfazeja. E nós já temos, na sociedade, a formação dessas organizações espontâneas, organizações que o Estado tinha dificuldade em supervisionar e financiar para que se pudesse melhorar a qualidade dos serviços sociais. O emprego na prestação de serviços da comunidade, na prestação de serviços coletivos, há oportunidades de emprego inúmeras e, se a situação financeira dos Estados nacionais melhora, temos que trabalhar por aí. É preciso usar o Bolsa Escola e o Renda Mínima como uma forma de transição, mas acho que as pessoas têm que ser valorizadas na sua atividade, como pessoas ativas. O problema é, com isso, aumentar a participação nesse setor não lucrativo, o que só pode ser feito numa economia que tenha alta produtividade, como a economia capitalista moderna e com a transferência de recursos do setor lucrativo para o não lucrativo. Neste setor, não lucrativo, deve-se ter o cuidado com o idoso, com as creches para as crianças, criar um ambiente de integração social ao longo da vida, porque a conclusão principal dos estudos sociais que nós temos hoje, sobretudo no Brasil, é o fato de que privação econômica leva ao desamparo, à rebelião contra a injustiça da sociedade, à sensação de exclusão.

Atualizado em 10/10/02

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