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A Língua Portuguesa corre perigo?!

John Robert Schmitz

Quando li o artigo, fiquei aflito. Um lingüista americano anunciou recentemente numa revista de circulação nacional que o português vai acabar. Faz trinta anos que moro e trabalho no Brasil, desde 1970 para ser exato. Tornei-me brasileiro naturalizado há quase dez anos. E logo agora que falo, leio e até escrevo em português com certa facilidade, vamos ficar sem idioma. Já nos bastam os sem-terra, sem-teto e sem-emprego! Agora, essa! Sem-idioma!

Depois dei uma olhada melhor no texto e percebi que o idioma nacional não vai acabar tão já. De acordo com o lingüista estrangeiro, daqui a 500 anos estaremos todos falando portunhol. Não sabia que lingüista era dado à futurologia. Parece-me que é uma ousadia afirmar o que vai acontecer com um determinado idioma ou um determinado país num espaço de 500 anos.

Quem pode prever (melhor, quem se atreve a prever) o que vai acontecer no futuro? Para dizer a verdade, o futuro distante não me interessa. Com 65 anos de idade, faço planos para os próximos seis meses e olhe lá. Sempre achei difícil planejar as coisas com muita antecedência. Alguns colegas nos EUA têm mania de agendar encontros daqui a oito meses. Como vou saber o que vou estar fazendo no dia 4 de julho de 2005! Quem teria adivinhado na década de 60 as mudanças ocorridas na última década? É só olhar para um mapa de Europa publicado vinte anos atrás e comparar com um atual. Quantas mudanças! Não faz tanto tempo que um país chamado Tchecoslováquia virou duas nações: a Eslováquia e a República Checa. E a União Soviética se desmantelou, voltando a ser chamada Rússia! Quem diria!

Acredito que todos os cidadãos estão torcendo para mais 500 anos de Brasil. Para ser mais realista (no meu caso), preocupam-me muito mais os próximos dois anos. Quem vai ser o novo Presidente da República? Quantos candidatos vão concorrer? Será que o Brasil hospedará a Copa do Mundo em 2010? Dizem que Deus é brasileiro mas não sei se Ele sabe o que vai acontecer com a Seleção ou com a Copa. Qual será o destino da Previdência Social nos próximos quatro anos?

Considero-me um cidadão bem informado. Faço questão de ler todos os dias pelo menos um jornal. Quando dá tempo, leio até dois, especialmente nas férias. Aos domingos, sempre leio, até com prazer, aquela revista que publicou o artigo do futurólogo (ops, lingüista). Que susto levei!

Nos últimos nove meses acompanho as notícias de um projeto de lei da autoria do deputado Aldo Rebelo (PC do B) a ser votado no Congresso Nacional, que visa a defender a língua portuguesa. Quando se usa o verbo "defender", a gente sempre pensa num inimigo. Quem seriam os inimigos do idioma nacional? Os próprios brasileiros? A classe alta ou média? Os pobres? Os estrangeiros? Capitalistas ou socialistas? A globalização?

Os que vivem viajando para Miami à procura de produtos estrangeiros são meio suspeitos, pois comenta-se que eles espalham por aí expressões inconvenientes como sale e off. O patriotismo dos especialistas em diversos campos que usam vocábulos como holding, franchising ou site é questionado. Até os felizes torcedores de esportes, de todas as classes sociais, não escapam das críticas, por repetirem nas conversas termos como play off, tie break, ranking e set.

Voltei a ler o projeto de lei com mais cuidado para descobrir quem ou o quê é o vilão da história. Para minha surpresa, são as próprias palavras, especialmente as palavras de origem estrangeira! De acordo com o autor do projeto, existe uma gama de palavras que estão contribuindo para uma "desnacionalização lingüística". Para mim, desnacionalização tem a ver com a venda de empresas nacionais a grupos estrangeiros ou o privilégio dado a companhias estrangeiras em detrimento de firmas nacionais. Faz 30 anos que sou cliente do Banespa. Não quero ver o banco na mão de estrangeiros. Existe gente competente formada nas universidades brasileiras que pode mudar a situação do referido banco.

Se as palavras pudessem falar, o que diriam? As de origem francesa como dossiê, turnê e réveillon, premier, première na certa perguntariam: "É conosco?". E a resposta: "Não, vocês não incomodam". E os vocábulos de origem japonesa como karatê e karaokê diriam: "Fizemos alguma coisa de errado?" E a resposta: " Vocês são muito legais, mas seria bom caprichar na aparência, pois a letra k é coisa de estrangeiro. É melhor vestir a camisa da letra c: caraté e caraoquê." A briga neste caso não é com as palavras de origem francesa, espanhola, japonesa, russa ou hebraica em princípio, mas com a grafia ou "roupagem" delas. Mas quanto às palavras de origem anglo-americana os adversários diriam: "Sim, são vocês as culpadas".

O verdadeiro problema não é com os vocábulos em si. O pano de fundo é o poderio econômico e político dos Estados Unidos como ameaça, na opinião de alguns, à soberania do Brasil. A realidade é que entre países não há amizades, senão interesses. É a verdade nua e crua.

De todo modo, os verdadeiros réus realmente são as palavras de origem inglesa como self-service, por exemplo. A danada dessa palavra aparece em tudo quanto é lado. Atrás dela há uma mudança culinária, pois agora a gente pode escolher as iguarias. Trata-se de uma revolução gastronômica. Está ameaçado o PF, isto é, o "prato feito". Sem dúvida, os falantes poderiam dizer "auto-serviço" ou quem sabe, "serve-serve". Só que self-service pegou! E quando as palavras pegam, não arredam pé.

Outra palavra que parece ofender é o vocábulo site. Por causa dessa palavra, a Informática toda é vista por alguns como responsável pelo declínio e pela "corrupção" da língua portuguesa. Os que implicam com o vocábulo sugerem uma roupagem mais aportuguesada--- "saite" ou possivelmente "sítio". Alguns críticos argumentam que em espanhol se diz sitio (sem acento naquele idioma). Fica um pouco complicado em português, pois muita gente tem um sítio no campo e ainda outros são "sitiantes". Pode dar confusão!

Parece que as palavras são rebeldes e têm vida própria. O falante começa a falar e, de repente, solta um vocábulo que ouviu numa conversa ou que leu num texto. E pronto! O usuário contribuiu para dar mais vida a uma determinada palavra. A realidade é que o falante usa as palavras como ganchos para expressar as suas idéias. Ele ou ela pode ser um cidadão patriótico, crítico das intenções de governos estrangeiros e desconfiado das entidades como o FMI e contra o imperialismo ou posturas colonialistas. Independentemente de suas idéias políticas, o falante quer estruturar os seus pensamentos e, dependendo do assunto, lança mão dos recursos ao seu alcance. Por isso, ele recupera da memória o que ele viu ou ouviu anteriormente, e escolhe conforme o caso: clubber, stripper, rapper, gay, pole position, grid ou ranking. Parece-me que seria uma perda de dinheiro público pagar pessoas para cunhar vocábulos "equivalentes" em português ou para julgar os infratores. Não há nenhuma garantia de que os falantes empregariam docilmente as palavras recomendadas por um determinado painel de especialistas.

Se interpreto bem o espírito da legislação em tela, mesmo as palavras de origem russa, aramaica, ou alemã não escapam incólumes à crítica. Uma palavra de origem russa como tchermoziom (terra vegetal negra fértil), outra de origem alemã como Lebensraum (espaço vital) ou ainda outra de origem aramaica como kadish (oração, prece) são vistas como exemplos de uma desfiguração do português, duma falta de estética e de bom gosto.

Se o projeto de lei for mesmo aprovado, espero que não levem tudo às últimas conseqüências e comecem a cassar palavras (disse "cassar" e não caçar palavras), isto é, tirá-las dos dicionários, pois gastei um bom dinheiro no Novo Aurélio Século XXI. Recorro aos dicionários para saber definições de termos que desconheço tais como clip art, factoring e quark.

Alguns anos atrás alguém implicou com topless, isto é, com o vocábulo topless e recomendou maminhas ao léu. Não sei se vai agradar a todos a recomendação. Observo que topless não está registrada no Aurélio, embora conste top-spin, definição que me ajudou a apreciar melhor os feitos de Gustavo Kuerten. Se algum dia o tênis, esporte praticado no Brasil por um grupo restrito de pessoas, chegar a competir com o futebol, é bem provável que aquela modalidade desenvolva espontaneamente termos "nacionalizados" como escanteio e zagueiro.

Tenho pena de dois grupos de profissionais: os economistas, que precisam usar termos especializados e a quem muitos acusam de corromper o idioma com noções alienígenas. E os jornalistas? Se escrevem nas suas reportagens hackers, estão comprometendo o idioma. Se escrevem piratas, dizem que não estão sendo claros, pois existem piratas do mar (também da terra e do céu!), além dos que vivem copiando coisas sem pagar (oba!) royalties.

Com respeito à linguagem, existem muitos casos de exagero. Há falantes que usam demais a gíria ao passo que outros carregam nos palavrões. Outros nos aborrecem com hesitações como viu?, entendeu?, tá!, né?, quer dizer, sabe? ou, pior ainda, OK?!! Alguns parlamentares enfeitam os seus discursos com adjetivos como ilustre, nobre, eminente e distinto quando nem todos são ilustres ou nobres. Há gente que não sabe nada de uma determinada língua estrangeira, mas adora esnobar e fingir. Nenhuma legislação vai impedir eventuais exageros no uso do idioma por parte de seus usuários.

Na minha opinião a língua portuguesa está se enriquecendo no contato com outros idiomas. O idioma está em pleno vigor, graças ao número significativo de usuários, de autores e escritores que se expressam muito bem, e que produzem textos originais e criativos. A língua não corre perigo. O volume de artigos e trabalhos científicos, assim como o número de livros publicados em português no Brasil (sem mencionar os outros países de língua portuguesa) é impressionante. Medidas para tornar um determinado idioma "puro" não funcionam. É bom lembrar que as noções de "identidade" e "raça" são sempre construídas. Tristes exemplos de crimes cometidos em nome de "pureza" racial e religiosa são a Inquisição e o Holocausto, entre outros.

Quem precisa ser defendido e protegido é o professor de língua portuguesa, aliás todos os professores, trabalhadores e cidadãos que sofrem das conseqüências de atos verdadeiramente impatrióticos cometidos por alguns indivíduos: estelionato, desvio de verbas, lavagem de dinheiro, sonegação e outras falcatruas.

John Robert Schmitz é professor do Instituto de Estudos da Linguagem (IEL) da Unicamp

 

 

 

Atualizado em 10/08/00

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