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Os discursos da ciência na ficção

Haenz Gutiérrez Quintana

Cartaz de Artificial intelligence

Artificial intelligence (2001), filme baseado no conto futurista "Supertoys last all summer" (Superbrinquedos duram o verão todo), do escritor britânico Brian Aldiss, idealizado por Stanley Kubrick e produzido, roteirizado e dirigido por Steven Spielberg, trata da possibilidade de codificar emoções em redes neurais implantadas em um robô-criança no contexto de uma civilização onde seres mecânicos são feitos para aliviar o fardo da vida dos humanos. Assim, o professor Hobby (William Hurt) cria a máquina inteligente e sensível capaz de amar e de sonhar que, conseqüentemente, é capaz de pôr em exercício a sua vontade: O meca David, como o boneco de madeira criado por Gepeto, deseja se tornar um menino de verdade.

No site do filme (http://aimovie.warnerbros.com) é a “fada azul” que vincula as propostas do filme com a realidade, através de informações relevantes fornecidas mediante percursos hipertextuais focalizados. Desde antes do lançamento do filme até hoje o site permanece na web ligando questões relacionadas à robótica autônoma e à inteligência artificial. O site se vale de abundante informação para atualizar o mundo da obra de ficção científica arquitetada pelo trio Aldiss, Kubrick e Spielberg. Se o filme trata da possibilidade de criarmos máquinas a nossa imagem e semelhança que, para todos os propósitos, se comportem como seres humanos, o site do filme, fundamentalmente, nos coloca a par dos avanços científicos que potencializam essa idéia e das questões morais decorrentes.

A inteligência[1] dos discursos da ciência na ficção.

A capacidade de antecipar o futuro e de elaborar planos de acordo com essa antecipação no contexto de um ambiente social complexo é uma das propriedades fundamentais do funcionamento do cérebro humano, segundo Damásio (2003:31). A ficção científica enquanto modalidade narrativa e discursiva se aproxima desse funcionamento. A narrativa de ficção científica permite que discursos sobre a ciência e/ou avanços científicos sejam formulados de uma maneira particular, constituindo um tipo específico de interação, podendo ser realizada em um leque de mídias diferentes.

Para Philip K. Dick, o deslocamento conceptual seria a essência da ficção científica[2]. De acordo com o autor, os mundos das obras de ficção científica são mundos que não existem de fato, mas que seriam decorrentes do mundo concreto dos autores de ficção científica. Isto é, o mundo dado serviria como ponto de partida não para antecipar quando chegaremos a outras galáxias, ou para prever contatos imediatos de qualquer tipo com seres extraterrestres ou, menos ainda, para apontar quando desenvolveremos a tecnologia que possibilitará a criação de seres artificiais inteligentes e afetivos, mas para especular sobre porquê o homem deseja fazer essas coisas e sobre como as conseqüências dessa possibilidade poderiam afetar a vida em nosso planeta. Deste modo, o deslocamento conceptual faria com que um novo mundo virtual surgisse enquanto simulacro literário do potencial dos avanços científicos.

Os autores de FC descrevem, então, mundos virtuais sem renunciar à verossimilhança científica. Os avanços científicos servem de apoio para “materializar” e enunciar mundos virtuais. Isto mostra a preocupação dos autores de ficção científica em sintonizar-se com a ciência de seu tempo para logo projetá-la no futuro próximo ou distante enquanto possibilidade, isto é, tomando cuidado para que suas especulações sejam verossímeis e possam servir para que o público reflita sobre seus alcances, visto que a maior parte do contato das pessoas comuns com a ciência se dá através da mediação do cinema ou da literatura. A este respeito o cientista brasileiro Marcelo Gleiser, professor de física do Dartmouth College, em Hanover (EUA) e colunista da Folha-ciência, escreve:

Oitenta anos de ciência em Hollywood contribuíram para a criação de uma percepção pública que oscila entre o venerável e o assustador. A ciência cria e destrói. Novas tecnologias trazem sempre a dupla promessa do bem e do mal. Os filmes, em sua grande maioria, são representações dessa dualidade. (...) Existe uma relação dual entre o imaginário e o real, que é inspiradora não só para os que vão ao cinema, mas para os que fazem ciência e vão ao cinema. Afinal, se a realidade muitas vezes é mais estranha do que a ficção, a ficção também pode motivar a nossa compreensão do real: o impulso criativo também se alimenta de sonhos (...). O desconhecido é tão necessário quanto o conhecido. E o que antes era apenas visão pode, um dia, se tornar realidade.[3]

No site do Departamento de Métodos Matemáticos do Instituto de Matemática da UFRJ encontramos um exemplo das afirmações de Gleiser. Trata-se do trabalho sobre inteligência artificial produzido por uma aluna de pós-graduação movida pelas discussões em sala de aula do curso "Teoria do conhecimento”. Pautado pela interdisciplinaridade o trabalho em questão problematiza, do ponto de vista científico, os assuntos levantados pelo filme de Spielberg acerca da inteligência artificial[4].

Ética e responsabilidade com a inteligência artificial

A Inteligência Artificial é um ramo da ciência da computação dedicado a desenvolver equivalentes computacionais de processos peculiares à cognição humana. No filme Artificial intelligence, Spielberg especula sobre as razões que teria a raça humana para criar andróides inteligentes capazes de sentir e amar e sobre como as conseqüências dessa possibilidade poderiam afetar nossas vidas. O filme propõe, também, uma reflexão sobre o que significa criarmos cópias imortais de nós mesmos. Desta maneira, a proposição que Spielberg formula no filme diz respeito à ética e à responsabilidade científica e social que, de acordo com seus princípios e valores, deveriam orientar a relação do homem com o mundo e com as máquinas:

(...) o que importa é o que nos projetamos num mecanismo, numa máquina. Não se trata da máquina nos amar, mas de quanto amor investimos nela e isso determina o quanto devemos avançar na criação de coisas que nos fazem lembrar de nós mesmos. Acho que devemos ter muito cuidado em como nós, como espécie, usamos nossa genialidade. (...) Eu acho que todos precisamos ter cuidado. Meu filme teve essa preocupação número um. (...) precisamos assumir a responsabilidade pelas coisas que colocamos neste planeta e também pelas coisas que retiramos dele. De certa forma precisamos ter limites para os nossos avanços, limites éticos, morais e limites que nos digam: “ei, não podemos mexer com isso”. Um pouco disso foi discutido em Jurassic Park e muito mais foi discutido por Stanley Kubrick em A I.[5]

Em A. I. Artificial intelligence, andróides tornam-se um elo essencial à estrutura da sociedade após o mundo sofrer as conseqüências catastróficas do aquecimento global. Com os recursos naturais dizimados pela calamidade, muitas pessoas morreram de fome. Os governos foram forçados a restringir a natalidade, medida que tinha por fim economizar os parcos recursos alimentares visando garantir a sobrevivência da espécie. Isto explicaria, na lógica do filme, que seres mecânicos – e não criaturas biotecnológicas ou clones – fossem desenvolvidos para servir a raça humana em todas as tarefas da vida diária.

Sem demora, na primeira cena do filme, Spielberg formula as razões que levaram ao desenvolvimento de seres mecânicos complexos e as questões éticas delas decorrentes. O visionário professor Hobbys, diretor da Cybertronics, propõe a construção de uma criança-robô que, além de ter membros articulados, fala articulada e reações humanas, seja capaz de amar de verdade seus pais programados.

As idéias do cientista inglês Alan Turing sobre uma máquina universal capaz de realizar qualquer tarefa (desde que bem instruída para tal)[6] assim como a hipótese, tomada da neurociência, de que emoções e sentimentos são chaves no funcionamento da consciência e da racionalidade nos seres humanos[7], servem de substrato a proposta de Hobbys. A criança-robô, provida da capacidade de amar, desenvolveria um mundo interior de sonhos, metáforas, intuição e raciocínio próprio. Eis a máquina volitiva sobre a qual se erguerá o edifício da nova sociedade prevista pela robótica “bio-inspirada” de Hobbys. Seguidamente, uma colega do professor (April Grace) alerta para as conseqüências de tal empenho: não se trata apenas de criar um robô que consiga amar. A questão seria: será que um humano conseguiria ama-lo? (...) Se um robô ama verdadeiramente uma pessoa, que responsabilidade essa pessoa tem em relação a esse Meca? A atitude socrática da colega de Hobbys, isto é, o fato dela considerar problemas morais e humanos visando, mediante o diálogo, à definição do bem, é o tema central do filme. Não é por acaso que Sócrates é uma das palavras-chave do código que ativa os sentimentos do robô-criança a favor da pessoa que o profira. Desta maneira, a dupla Spielberg/Kubrick explana o sentido interior de todos os objetivos subordinados do filme.

“Deux ex machina” para uma terra sem males

Em Jurassic Park (1992) no que concerne a questão da verossimilhança, encontramos uma preocupação maior assim como soluções mais complexas. O filme explora, em seu enredo, descobertas da engenharia genética referentes às técnicas de clonagem: “processo de produção assexuada, a partir de uma célula mãe, de um grupo de células (clones) geneticamente idênticas entre si e à célula progenitora”. Ainda, Jurassic Park é estruturado como o relato de um projeto utópico.

Hammond e o Mosquito ambárico

Hammond e
o Mosquito ambárico

No filme de Spielberg, o empresário megalômano John Hammond (Richard Attenborough), empenhado em construir a disneylândia do passado, numa ilha do Caribe, por meio de uma equipe de cientistas consegue obter clones de dinossauros a partir do DNA extraído do sangue achado no estômago de mosquitos pré-históricos que, após terem picado diversos espécimes jurássicos, ficaram presos no âmbar de certo vegetal lenhoso.

As três personagens chaves do filme (Hammond, Grant e Malcolm) podem ser relacionadas com as duas formas de trabalhar com o conceito de ordem no caos apontadas por Marcondes (1997:25) e com a mecânica newtoniana de espaço e tempo absolutos. Hammond entende os sistemas como estruturas rígidas e repetitivas. Ele acredita no controle, na previsibilidade e na reversibilidade dos processos; Grant encontra uma ordem interior no caos enquanto o Dr. Ian Malcolm (alter ego de Spielberg) vê os sistemas como complexos, irreversíveis e com capacidade de dar respostas a novas situações. Estas oposições são sistematicamente frisadas no decorrer do filme e, como se sabe, no desfecho, a tese de Malcolm acaba se impondo.

Nublar: a "terra sem males" dos dinossauros

Nublar: a "terra sem males"
dos dinossauros

O projeto utópico de Hammond consiste na (re) fundação do Éden. “Já que perdemos o estado virgem da infância do mundo, só nos resta reinventá-lo” (Sfez, p. 111). A engenharia genética e a informática são o Deux ex Machina que possibilita a Hammond erguer sua “terra sem males” para os dinossauros e para os visitantes do parque. Na ilha “Nublar” tudo estaria sob seu controle: a procriação das criaturas, as visitas teleguiadas, o sistema de segurança... enfim, o acaso não teria vez. Porém, Hammond não contava com o comportamento errático e aleatório de seus sistemas, não contava com os atratores estranhos: tormenta no Caribe, empregados corruptos, dinossauros recombinados (à seqüência incompleta de DNA dos dinossauros foi incorporada outra seqüência de DNA de um ranídeo capaz de transmutação sexual, eis o “erro lógico” do sistema de Jurassic Park). O efeito borboleta era iminente.

Vemos então que, no interior do filme de Spielberg, os distintos desdobramentos do conceito de ordem no caos assumem o papel de intertextos. Hammond representa o “demônio de Laplace”, o paleontólogo Alan Grant (Sam Neill), pode figurar como o cientista que encontra uma ordem interior no caos aparente e o matemático Ian Malcolm, repetimos, leva à cena o modelo aberto da teoria do caos. Spielberg faz questão de pormenorizar as conexões que seu filme tem com os temas dominantes da cultura e da ciência na atualidade. Contudo, o recurso ao mosquito ambárico (pedra fundamental do enredo) não se sustenta. O biólogo inglês Jeremy Austin, depois de dois anos de pesquisa com insetos conservados em resinas, concluiu que é impossível ressuscitar dinossauros ou qualquer outro bicho partindo de fósseis, pois o material genético danifica-se após a morte. Sabe-se, o congelamento é, até agora, a única técnica capaz de conservar material genético.

Haenz Gutiérrez Quintana é pesquisador associado do Mediatec – Unicamp, e docente da Universidade Anhembi-Morumbi e do Centro Universitário Anhanguera.


Bibliografia

ATLAN, Henri (1992), Entre o cristal e a fumaça. Rio de Janeiro: Zahar.

DAMÁSIO, Antonio (2003).O erro de Descartes. São Paulo: Cia. Das Letras.

MARCONDES, C., F., (1997), Super ciber - A civilização místico-tecnológica do século 21, São Paulo: Ática.

SADOUL, Georges, (1987), História del cine mundial. Mexico: Siglo XXI.

SFEZ, Lucien, (1996), A saúde perfeita. São Paulo: Loyola.

SUTIN, (1995) The shifting realities of Philip K. Dick. NY: Pantheon.



[1] No sentido da maneira de entender ou interpretar.

[2] Cf., Sutin, (1995:99)

[3] Cf., artigo intitulado “Ciência e Hollywood” disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/fsp/ciencia/fe1008200302.htm

[5] Cf., Depoimento no DVD I.A. Título 15, Capítulo 1, Encerrando: Steven Spielberg: nossa responsabilidade com Inteligência Artificial.

[6] Em 1950 Turing escreveu um artigo intitulado “Máquinas Computacionais e Inteligência” (“Computing Machinery and Intelligence”), Veja o texto em http://www.dmm.im.ufrj.br/~risk/Site_AI/

[7] Cf., Damásio (2003:12ss).

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Atualizado em 10/10/2004

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