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Depois da queda

Carlos Vogt

Quando Freud apresentou, em uma de suas Palestras Introdutórias – a décima oitava –, a psicanálise como “o terceiro golpe a atingir a soberba ingênua e o amor-próprio do Homem”, completava-se, assim, a tríade dos grandes abalos que o conhecimento foi produzindo ao longo dos séculos no entendimento, na compreensão, na vivência das relações com o cosmos (o cisma cosmológico da revolução coperniciana), com a sua centralidade na criação, entre as espécies (o cisma do evolucionismo biológico pela obra de Darwin), consigo próprio na descoberta das forças do inconsciente que o alienam de sua própria casa (o cisma psicanalítico anunciado por Freud).

Um quarto abalo, também fundamental, poderia ser acrescentado, passando a configurar um como que “quadrado lógico” da síndrome das grandes perdas da história vertiginosa do mundo ocidental e das apresentações de suas representações no espetáculo do conhecimento: o do cisma ontológico provocado pela filosofia cartesiana e pela definitiva alienação entre o eu e o mundo por ele captada e, epistemologicamente, provocada como paradigma de abordagem e de produção científicas do conhecimento.

O conjunto desses cismas provoca, por sua vez, no mundo contemporâneo, em particular a partir da filosofia de Kant no século XVIII e de Nietzsche, no século XIX (Nietzsche que dizia não haver nenhum fato, mas apenas interpretações) um quinto abalo que passa a funcionar como uma espécie de epicentro dos grandes tremores do pensamento ocidental na atualidade: um cisma epistemológico de proporções geológicas e planetárias que nos leva até mesmo a identificar as suas características não pelo conjunto positivo de predicados que agrega, mas pela multiplicidade de atributos que concorrem para sua desagregação desconstrutora. Ao Moderno que o “quadrado císmico” configurava, segue-se, no epicentro da ruptura epistemológica, o Pós-moderno, que na falta de uma designação positiva, nega, pelo prefixo, o que sucede e afirma, pelo nome, o que nega. Dialética da separação, de que nos fala Emile Bréhier em seu Transformation de la philosophie française, de 1950?

O fato é que este cisma epistemológico vem enviando sinais de abalo há muito tempo. Pelo menos desde as linhas de tensa convivência entre o racionalismo e o subjetivismo romântico gerados, como gêmeos em conflito, pelo Iluminismo e que estabeleceram, nos últimos três séculos, paradigmas de exclusão entre a ciência e a religião, a ciência e a arte e mesmo entre a ciência e a filosofia.

Uma das conseqüências dessa eclosão epistemológica é a busca de pontos de urdidura para descoser as distâncias e os distanciamentos dessas atitutes e dos domínios do conhecimento por elas desenhados, de modo que possa produzir-se, em sua plenitude, a aspiração maior de Goethe ao buscar a união entre a ciência e a poesia numa visão da Natureza fortemente carregada de uma profunda sensualidade religiosa e, ao mesmo tempo, de uma sensível religiosidade sensual.

É das relações entre ciência e religião que se ocupa este número da revista ComCiência, suas diferenças teóricas, conceituais, metodológicas, suas divergências, os pontos de possíveis aproximações, tendo como cenário de perda, de abandono, de alienação, a cósmica indiferença do universo diante da trágica, dramática e progressivamente cômica surpresa do Homem exposto à sua própria solidão.

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Atualizado em 10/05/2005

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