Reportagens






 
Arqueologias

Carlos Vogt


Refazer, a partir de indícios materiais, as condições em que se deu um crime cometido e do qual não há testemunhas, a não ser os objetos mudos de uma desarrumação, cuja lógica de relacionamento social e cultural seria necessário deduzir passo a passo, ponto a ponto até reordenar os fatos e as circunstâncias históricas e existenciais que cercaram o acontecimento é bem o desafio que, em geral, caracteriza os mistérios dos romances policiais.

Quanto mais antigo o crime e o mistério que o cerca, mais difícil juntar os cacos de seu estilhaçamento no tempo e recompor-lhes o sentido de seu desvendamento.

Quem não se lembra, se o leu, do romance O cão de terracota, de Andréa Camilleri, no qual o comissário Salvo Montalbano ao descobrir um grande contrabando de armas escondido numa caverna perto da costa, na cidade ficcional de Vigàta, na Sicília, descobre também, em um salão escondido, os corpos entrelaçados de um casal de amantes mortos há 50 anos, durante a segunda guerra, guardados na gruta por um cão de terracota.

Montalbano mergulha, então, no desvendamento desse mistério e se dedica a investigar a memória dos habitantes da cidade buscando descobrir a identidade do casal e também a do assassino que os teria matado.

Tarefa árdua, cheia de exigentes disciplinas, imaginação e argúcia. E são 50 anos a medir as dificuldades que cercam o esclarecimento do caso.

Imagine-se, agora, que se buscasse o entendimento e a compreensão para o que teria ocorrido com os nossos primeiros ancestrais que povoaram a América do Sul e o Brasil há cerca de 12 mil anos atrás, ou mesmo mais, como querem alguns estudiosos. Imagine-se ainda que além de procurar fazer uma tipologia dos artefatos encontrados nos lugares de investigação - os chamados sítios arqueológicos - procurando, assim, estabelecer as formas de seu desenvolvimento no tempo, o que se buscasse fosse um pouco mais complexo e envolvesse as explicações necessárias para a compreensão das antigas culturas na sua totalidade.

Imagine-se que todo esse trabalho e esse esforço de pesquisa estivessem também voltados para as questões teóricas fundamentais que envolvem o povoamento da América do Sul, envolvendo polêmicas e disputas quanto à data pré-histórica de sua chegada por essas paragens.

Luzia, a nossa Lucy, de Lagoa Santa, em Minas Gerais, cujo crânio, reconstituído por técnicas especiais e por tecnologias modernas e completado pela criatividade artística do escultor que lhe deu traços anatômicos não preservados, trouxe para a cena, com fortes evidências a suportá-la, a rediscussão do modelo de ocupação do continente americano.

De comum às diferentes teorias e hipóteses há o fato, considerado incontestável pelos estudiosos do assunto, de que o homem moderno surgiu na África entre 120 e 200 mil anos atrás e que foi a partir daí que se deu sua dispersão subseqüente em levas migratórias que foram povoando os demais continentes.

A teoria clássica considera que essa dispersão se deu em três movimentos: o primeiro que levou o homem, assim que surgiu, até o oriente médio; o segundo, há cerca de 50 a 60 mil anos o levou, tomando a direção do oriente, à Arábia, ao sudeste da Ásia e, depois, à Oceania e à Austrália; em terceiro lugar, dando seqüência a esses movimentos, novas levas migratórias partiram da África, já dominando as tecnologias do paleolítico superior datado de cerca de 35 mil anos atrás, chegando inclusive ao continente americano, espalhando-se por ele e nele vivendo como caçadores-coletores. Nessa altura, a dispersão do homem moderno pelo planeta seria quase que total.

Novas ondas migratórias originárias, agora da Ásia, teriam se dado entre 12 mil e 10 mil anos atrás, principalmente através do Estreito de Bering, trazendo populações com características ósseas parecidas com as dos povos orientais e cujos esqueletos encontrados em sítios arqueológicos da América do Sul e do Brasil, em geral com menos de 7 mil anos de datação, guardam fortes semelhanças com os nossos indígenas atuais.

O crânio de Luzia, datado de 11.500 anos atrás, com as características negróides-australóides verificadas nas suas formas e também na de outros indivíduos encontrados em Lagoa Santa, inclusive os 16 crânios levados para o museu de Zoologia de Copenhague por Peter Lung no século XIX, trouxe à baila a forte probabilidade de que o homem pudesse ter chegado à América do Sul e ao Brasil ao menos há cerca de 15 mil anos atrás, levando-se em conta que por volta de 12 mil anos atrás haveria populações por aqui já estabelecidas.

Isso significa que os nossos ancestrais americanos pré-históricos teriam por aqui chegado como parte do movimento migratório que levou o homem primeiro para a Ásia e da Ásia para a Austrália, mas também, da Ásia Central, em direção ao Norte, através do Estreito de Bering, ou de outras formas de transposição via navegação costeira, inclusive, para todo o continente americano, incluindo a América do Sul e o Brasil, há cerca de 15 mil anos atrás, ou mesmo ainda há mais tempo. E é isso que tem servido como suporte para a hipótese de um outro modelo de ocupação da América, com a postulação da possibilidade de mais uma leva de migrações além das três já reconhecidas nos meios científicos internacionais.

O fato é que a descoberta do esqueleto de Luzia nos anos 1970 e, mais recentemente, a reconstituição de seu provável rosto, com sua datação de quase 12 mil anos constituem, também simbolicamente, para a arqueologia brasileira um ícone expressivo dos avanços e das conquistas científicas dessa área do conhecimento entre nós.

A polêmica em torno das hipóteses de ocupação do continente americano envolve, hoje, muitos atores nacionais e internacionais, o que mostra também o respeito de que são merecedores os trabalhos de nossos pesquisadores. Nomes como o de Walter Neves, de Renato Kipnis, de Niède Guidon, de André Prous, de Pedro Paulo Funari, de Maria da Conceição Coutinho Beltrão, Tânia Andrade Lima, Gilson Rambelli, além de nomes de referência fundadora como Pedro Ignácio Schmitz, ou Ulpiano Bezerra de Meneses, entre muitos outros, não necessariamente alinhados nas mesmas hipóteses e teorias, nem atuando nas mesmas e diversas sub-áreas da arqueologia, dão medida do processo de formação e de multiplicação de competências no Brasil, evidenciado ainda mais pela qualidade e pela quantidade de publicações nacionais e internacionais de que estes pesquisadores têm ativamente participado.

O arqueólogo André Prous, no livro Pré-história da terra brasilis, organizado por Maria Cristina Tenório e publicado em 1999 pela Editora da UFRJ, utiliza a metáfora da investigação detetivesca, com que abrimos este artigo, para falar do fazer do arqueólogo. A imagem é sugestiva. Mas não apenas pelo que, positivamente, ela associa das duas atividades, mas sobretudo porque, ao associá-las no objetivo de perscrutar as circunstâncias de eventos passados, exibe, em qualidade e em quantidade, as enormes diferenças que as cercam, até mesmo no sentido da curiosidade que as motiva: uma tem a fatalidade moral da ordem estabelecida no mundo e se esforça para recompô-la a cada ameaça de abalo e transgressão; a outra é feita do esforço para transgredir o estabelecido e, na dinâmica sem causalidade moral do conhecimento, reordenar crítica e simbolicamente as apresentações e as representações que uns dos outros nos fazemos, pessoas e mundo, na sociedade, para a sociedade, pela sociedade.

Trata-se, então, do homem na percepção de si mesmo, do outro, da natureza, de sua história, do passado de seu passado, do imaginário de tudo isso, de sua vida na Terra, dos fragmentos de outras vidas estratificadas em pistas materiais e culturais de suas origens, das formas de organização social que se desenharam no processo de mudanças e transformação que pelas suas errâncias no planeta nos trouxe ao destino em que nos encontramos hoje, no presente, indicadores de rota, sinalização de caminhos, sentidos futuros: arqueologias.

 
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Atualizado em 10/09/2003
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