Reportagens






 
Terapia celular em cardiologia

Luís Henrique Wolff Gowdak

No processo de reparação tecidual, como o que ocorre após o infarto agudo do miocárdio, diferentes tipos celulares (macrófagos/monócitos, fibroblastos, neutrófilos e células endoteliais) relacionados à cicatrização e remodelação tecidual são normalmente recrutados para a região afetada por mecanismos específicos envolvendo citocinas, alterações na matriz extracelular e proteínas de adesão. O transplante celular, técnica desenvolvida exeprimentalmente em passado recente e já testada clinicamente, pode vir a ser uma opção terapêutica visando limitar a perda miocitária pós-isquêmica e assim reduzir, ou até prevenir o aparecimento de insuficiência cardíaca.

Transplante de mioblastos
Miócitos adultos mantidos em cultura não se multiplicam, sugerindo que nessas células diferenciadas há uma resistência ao reinício do ciclo celular, o que limita a aplicação clínica desse tipo de estratégia. O potencial terapêutico de outro tipo celular, a célula muscular esquelética precursora (mioblasto) autóloga vem sendo explorado clinicamente.

Isto porque, diferentemente das células miocárdicas adultas e à semelhança dos fibroblastos cardíacos, as células musculares esqueléticas se dividem e são capazes de regeneração. Dorfman e colaboradores observaram que mioblastos implantados em miocárdio isquêmico de ratos podem sofrer um processo de diferenciação celular, transformando-se em fibras musculares estriadas.

Experimentalmente, Chiu e colaboradores transplantaram mioblastos em modelo de infarto do miocárdico por crioinjúria em cães. A análise histológica revelou a presença, nos sítios de implante, de tecido muscular semelhante ao cardíaco, incluindo a visualização de discos intercalares. Em outro modelo de infarto por ligação da artéria coronária em ratos, Scorsin e colaboradores estudaram o efeito do transplante de mioblastos esqueléticos. Ainda que no seguimento a função ventricular tenha melhorado, não foram detectadas gap junctions nas membranas das células esqueléticas, indicando prejuízo no acoplamento eletromecânico.

Clinicamente, o transplante de mioblastos teve início com o grupo de Menasché e colaboradores após o implante bem sucedido em um paciente de 72 anos, portador de insuficiência cardíaca avançada. Previamente ao transplante, a cicatriz miocárdica foi caracterizada como irreversivelmente acinética na ausência de viabilidade. Cerca de 5 meses após o transplante celular, a parede acinética tornou-se contrátil e metabolicamente ativa, do que resultou aumento na fração de ejeção do ventrículo esquerdo e melhora na classe funcional do paciente.

Uma das maiores limitações ao transplante de mioblastos é o seu grande potencial arritmogênico. Isto decorre pois a aparente inabilidade dessas células de transdiferenciação em cardiomiócitos e de formação de um sincício cardíaco com as células vizinhas nativas pode criar um substrato para arritmias ventriculares por reentrada.

Recentemente, o reconhecimento de células tronco com capacidade de diferenciação e neoformação tecidual levou à inclusão dessas células como participantes no complexo processo de reparação/regeneração tecidual e abriu perspectivas de seu uso terapêutico.

Células-tronco e progenitoras hematopoéticas
Há pelo menos 50 anos, as células tronco hematopoéticas são as que estão melhor caracterizadas entre as células tronco estudadas, o que levou a sua utilização terapêutica, associada às células progenitoras, no transplante de medula óssea.

A plasticidade dessas células em adquirir características de outras linhagens celulares diferentes das células hematopoéticas foi descrita recentemente e sua potencial utilização terapêutica para a reconstrução tecidual está sendo amplamente investigada. As principais características que distinguem essas células de outros tipos celulares são a capacidade de auto-regeneração e diferenciação em várias células especializadas, a possibilidade de mobilização a partir da medula óssea para a circulação e a capacidade de evoluir para a morte celular programada em circunstâncias específicas.

Orlic e colaboradores, em modelo de infarto agudo do miocárdio experimental, injetaram na área perilesional 2x105 células tronco hematopoéticas. A análise imunohistoquímica da região infartada identificou 53% de cardiomiócitos, 44% de células endoteliais e 49% de células musculares lisas como provenientes das células-tronco injetadas. A avaliação da função ventricular revelou um ganho médio de 30% em relação aos animais controle.

Autores como Isner, Asahara e Kocher igualmente mostraram que células endoteliais progenitoras (CEP) humanas mobilizadas com GSCF (granulocyte stimulating colony factor) ou cultivadas, quando injetadas na veia caudal de ratos atímicos (1x106 a 2x106 células) após a ligadura da artéria coronária esquerda acarretavam em diminuição da área de necrose em cerca de 30%, além de aumento da vascularização e conseqüente preservação da função ventricular.

Modelos animais de isquemia miocárdica já demonstraram que células de origem medular têm a capacidade de implantação local na área lesada e se diferenciam em células musculares cardíacas e em células endoteliais formando novos vasos sangüíneos (neoangiogênese).

Evidência adicional da potencial aplicabilidade da terapia celular em doenças do coração vem da observação por Kocher e colaboradores de que, em modelo experimental de infarto por ligadura da artéria coronária, células-tronco hematopoéticas de adulto (humanas) retiradas da medula óssea são capazes de dar origem a células endoteliais vasculares quando transplantadas em ratos. A angiogênese resultante do transplante celular levou à prevenção da apoptose de cardiomiócitos, redução de remodelamento ventricular e melhoria da função cardíaca.

A melhor compreensão da importância fisiológica das células-tronco do adulto nos processos de reparação tecidual permitiu que se estudasse eventuais relações entre fatores de risco cardiovascular e/ou terapias mediamentosas e células-tronco. Neste sentido, Vasa e colaboradores mostraram que, em 15 pacientes com doença arterial coronária (DAC) documentada, o tratamento com 40 mg/dia de atorvastatina por 4 semanas levou a um aumento de cerca de 3 vezes no número de células progenitoras endoteliais ao final do período de observação. A importância clínica deste achado ainda está para ser determinada. A relevância das células progenitoras endoteliais para o aparecimento de doença cardiovascular (DCV) começou a ser questionada recentemente, quando Hill e colaboradores estudando 45 homens sem história de DCV mas com diferentes fatores de risco, demonstraram uma forte correlação negativa entre o número de células progenitoras endoteliais circulantes e o escore de risco combinado de Framingham. Especulam os autores que a lesão endotelial (secundária à presença dos fatores de risco) na ausência de número suficiente e adequado de células progenitoras endoteliais circulantes possa favorecer a progressão da doença cardiovascular.

Apenas muito recentemente, os primeiros relatos de terapia celular em pacientes portadores de DAC começaram a ser publicados. Assmus e colaboradores transplantaram, por infusão intracoronária, células progenitoras derivadas de medula óssea (n=9) ou de sangue periférico (n=11) a pacientes vítimas de infarto agudo pós-reperfusão, dentro de 4,3+/-1,5 dias após o IAM. Durante o seguimento de 4 meses, os pacientes tratados apresentaram aumento da fração de ejeção de VE, melhor motilidade regional na zona do infarto, diminuição do volume sistólico final e aumento da reserva de fluxo coronário na artéria relacionada ao IAM. Não foram observados eventos adversos.

O uso de células derivadas da medula óssea do adulto para o tratamento de doença isquêmica grave do coração associada à insuficiência cardíaca foi proposto por Perin e colaboradores em trabalho conduzido em 14 pacientes. Os pacientes foram submetidos à injeção transendocárdica guiada por mapeamento eletromecânico em áreas viáveis, porém isquêmicas. Os autores mostraram que, em seguimento de 4 meses, houve melhora da classe funcional, redução significativa nos defeitos perfusionais avaliados por medicina nuclear e aumento da fração de ejeção de 20% para 29%.

Stamm e colaboradores propuseram a utilização combinada de injeções intramiocárdicas de células-tronco derivadas da medula óssea com potencial de indução de angiogênese à cirurgia de revascularização miocárdica em 6 pacientes pós-IAM. Cerca de 1,5x106 células foram injetadas em cada paciente na borda da zona de infarto durante a cirurgia de RM. Após 3 a 9 meses de seguimento, todos os pacientes se encontravam vivos; aumento na motilidade global (em 4 dos 6 pacientes) e da perfusão da área de infarto (em 5 dos 6 pacientes) pôde ser documentada.

No Instituto do Coração (InCor) do Hospital das Clínicas, em São Paulo, Gowdak e colaboradores adotaram estratégia semelhante para o tratamento de pacientes com DAC grave e difusa, refratários ao tratamento clínico e não passíveis de revascularização cirúrgica completa pela extensão da doença. Em 10 pacientes, 13x107 células-tronco e progenitoras hematopoéticas autólogas foram injetadas, durante a cirurgia de revascularização, naquelas áreas de miocárdio previamente identificadas como viáveis e isquêmicas. Não houve eventos adversos relacionados ao procedimento. A análise da perfusão miocárdica nos segmentos injetados e não revascularizados apontou para a reversão da isquemia nesses segmentos e melhora contrátil. Ainda que não se possa excluir a contribuição dos enxertos realizados à distância para a melhora observada nos segmentos injetados, pode-se especular que o implante de células tenha contribuído via indução de angiogênese para a melhora perfusional e contrátil nessas áreas.

Considerações sobre o uso de células-tronco do adulto
A aplicação do uso de células-tronco do adulto suscita diversas questões ainda em investigação. A seguir, listamos algumas considerações que acreditamos deverão ser respondidas com o avanço das pesquisas de remodelação e regeneração tecidual:
os mecanismos intrínseco, molecular e tecidual de manutenção do estado de quiescência e pluripotência das células-tronco do adulto não são conhecidos.
uma vez obtidas as células-tronco do adulto, discute-se como manter uma célula-tronco em seu estado quiescente e proliferativo por um período prolongado de tempo sem a influência de citocinas que transformem estas células.
utilizar um conjunto de células que dariam suporte à proliferação e manutenção das células-tronco poderia ser mais vantajoso do que o uso de um único tipo de célula como as mesenquimais ou as células progenitoras.
uso de células-tronco em sistemas biomiméticos pode possibilitar seu emprego em diferentes áreas na cardiologia: vasos biocompatíveis com maior viabilidade, bioengenharia muscular, etc.
aspectos como a identificação de qual tipo celular é o mais adequado para o efeito terapêutico desejado, a sobrevida das células transplantadas, vias ótimas de acesso ao miocárdio (endovascular ou cirúrgica) para o transplante celular e a definição do comportamento das células transplantadas em relação ao tecido nativo (acoplamento eletromecânico, contribuição funcional, alteração do remodelamento ventricular) são de capital relevância e devem ser considerados antes que a terapia celular possa ser rotineiramente empregada.

Luís Henrique Wolff Gowdak é ex-fellow Gene Therapy Unit, Laboratory of Cardiovascular Science, National Institutes of Health, Estados Unidos - Doutor em Cardiologia pela Faculdade de Medicina da USP - Médico-Assistente do Laboratório de Genética e Cardiologia Molecular e da Unidade Clínica de Coronariopatias Crônicas do Instituto do Coração (InCor) do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP.


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Atualizado em 10/02/2004
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