Reportagens






 
Como as memórias criam a personalidade

André Frazão Helene e
Gilberto Fernando Xavier

Memórias são fruto de experiências que alteram o funcionamento do sistema nervoso. No ser humano adulto o sistema nervoso é constituído por cerca de 100 bilhões de neurônios (células nervosas). Conectadas aos neurônios, há células especializadas para a recepção de informações (receptores sensoriais) que transformam diferentes formas de energia do ambiente (luz, som, odores etc) em atividade eletro-química, influenciando assim a atividade dos neurônios. Por outro lado, há neurônios que se conectam aos músculos e glândulas possibilitando a produção de respostas dirigidas ao ambiente. Cada célula nervosa emite projeções para milhares de outras células nervosas e recebe, por sua vez, projeções de outros milhares de neurônios. É no sítio de interação entre duas células nervosas, a sinapse, que a informação de uma célula passa para outra célula e que ocorre modulação do processamento de informações (e.g., Figura 1). Calcula-se que existam aproximadamente um quatrilhão de sinapses só no córtex humano. Se considerarmos como essas conexões podem ser combinadas para formar circuitos neurais, o número final é fabulosamente elevado - praticamente infinito - o que já nos dá uma primeira idéia da complexidade da estrutura que arquiva as memórias e origina os processos mentais, inclusive a personalidade.



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A construção do sistema nervoso e da personalidade
Ao longo da ontogênese do sistema nervoso, células dividem-se, migram, emitem processos (prolongamentos), conectam-se (através de sinapses) e morrem. Como o sistema nervoso desenvolve-se de acordo com princípios topobiológicos, cada célula, inicialmente equipotencial, tem um "destino" que depende da sua localização em relação a outras células, dos eventos que se processam nas regiões vizinhas e da estimulação do ambiente, além da atividade de diferentes regiões; ausência de estimulação ambiental em períodos críticos do desenvolvimento podem levar à morte celular. Assim, determinadas transformações só ocorrerão se outras ocorrerem previamente. Essas células constroem uma rede de interconexões (por meio de sinapses) que se altera plasticamente diante da constante estimulação do ambiente; conexões sinápticas pré-existentes podem ser alteradas e outras novas podem ser criadas em decorrência das experiências, gerando circuitos neurais (ou redes neurais) facilitados, o que constitui as memórias, levando a modificações na forma como o sistema processa informações (Figura 2). Estas mudanças interferem nos arranjos funcionais subsequentes e também em como o sistema processará uma nova informação. Isso significa que a percepção do ambiente e a maneira de reagir a ele dependem dessa história de experiências individuais - das memórias.


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Experiências novas geram ativações que contribuem para a formação de novas conexões; estas serão somadas àquelas já existentes, tornando-se assim um novo "nó" de ativação da rede a partir de um nó anterior. Nessas redes, conjuntos de nós representam informações da memória compartilhadas entre diferentes experiências (Figura 3). Essas redes, quando ativadas, levam à recordação; sua ativação pode iniciar-se num nó, por exemplo, devido a um estímulo sensorial relacionado ao original representado no nó; se a atividade deste nó for suficientemente intensa, ela pode espalhar-se para os demais nós da rede levando à recordação da experiência original completa. Por exemplo, quando encontramos um rosto conhecido fora do seu contexto usual, temos a sensação de familiaridade ("conheço essa pessoal de algum lugar...") e, com a insistência em recordar, acabamos por estimular o espalhamento da atividade daquele nó (o rosto da pessoa) para os demais nós relacionados, levando à recordação completa envolvendo aquela pessoa.


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No nascimento, o sistema nervoso humano traz algumas dessas redes já formadas. Elas foram constituídas ao longo da evolução da espécie e representam memórias filogenéticas da espécie. Um exemplo interessante desse tipo de memória é o comportamento de mamar dos bebês; por exemplo, um comportamento extremamente complexo, que envolve a utilização de grande número de músculos de forma sincronizada e que é evocado por estimulação específica. Embora esse comportamento esteja "pronto" no nascimento, ele aprimora-se com a experiência, pela adição de novos nós à rede previamente estabelecida.
Em seu processo histórico de interação com o ambiente, o sistema nervoso reage não apenas a estímulos, mas também às contingências espaciais e temporais entre os estímulos, e também destes com suas respostas. Com o acúmulo desses registros sobre ocorrências anteriores, o sistema passa a identificar regularidades na ocorrência desses eventos, a partir das quais passa a gerar previsões (probabilísticas) sobre o ambiente. Desta forma, passa a agir antecipadamente. Uma das conseqüências desse processo é o desenvolvimento de intencionalidade; ou seja, como resultados almejados podem ser previstos com base nos registros sobre regularidades passadas, o sistema pode gerar ações que levem aos resultados desejados. Se essas ações não produzem os resultados esperados, há substancial alteração do comportamento.

Por exemplo, Ivan Petrovitch Pavlov, cientista russo criador do teste de condicionamento clássico, condicionava cachorros a salivarem frente à apresentação de um círculo (eixos 9:9) (Figura 4) previamente associado à apresentação de alimento, mas não à apresentação de uma elipse. Então, Pavlov aproximava lentamente a forma da elipse à do círculo (Figura 4). Os animais eram capazes de distinguir os dois até um limite em que a elipse era composta pelos eixos 7:8. Porém, a partir do momento em que os eixos da elipse passavam a ser 8:9, os animais não eram mais capazes de distinguir os dois estímulos (Figura 4). Esta exigência era demasiada para a capacidade de discriminação do animal. A saliva punha-se a correr inicialmente diante da elipse, depois diante do círculo e, finalmente, diante de qualquer um deles ou mesmo de ambos, sem distinção. O cão punha-se a ganir e latir ferozmente para a tela de apresentação dos estímulos, tentava saltar da mesa e cortar as amarras com os dentes. Daí por diante o animal passou a reagir estranhamente. Salivava ao ver o experimentador, a sala de experimentos ou ainda qualquer outro estímulo não pareado com alimento. Aparentemente, a capacidade de discriminação do animal sofrera um colapso.


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É difícil saber o quanto processos similares ocorrem em seres humanos; não seria ético testar seres humanos dessa forma. Porém, é sabido que o desenvolvimento em ambiente familiar que oferece poucas oportunidades para a pessoa identificar o que é e o que não é apropriado em seu próprio comportamento (não há regularidades claras e definidas) pode levar à depressão e à ansiedade.

É praticamente impossível que dois organismos sejam expostos exatamente às mesmas sequências de eventos e estímulos do ambiente, pois eles ocupam posições diferentes do espaço. Assim, suas histórias de interação com o ambiente são diferentes, o que resulta em sistemas nervosos anatômica e fisiologicamente distintos, ainda que os patrimônios genéticos sejam os mesmos; isso permite explicar a diferença de personalidade usualmente observada entre as pessoas, inclusive gêmeos idênticos, porque um dos gêmeos pode desenvolver esquizofrenia e o outro ser completamente normal, e permite também afirmar que um clone de alguém jamais seria esse alguém. Esses processos conferem individualidade cognitiva e afetiva a cada pessoa. Assim, cada ser humano, por ser único no seu patrimônio genético e particularmente no seu patrimônio histórico, é singular na sua essência e criatividade, devendo ser respeitado e valorizado. Por outro lado, cada ser humano é capaz de absorver cultura (formar memórias a partir da interação com outros seres humanos). Assim, a melhor maneira de garantir o respeito e a valorização humana é por meio da própria história de desenvolvimento de cada um; por exemplo, por meio de uma educação familiar saudável e da educação escolar formal.

Módulos da memória humana
O estudo dos processos de memória vem se beneficiando do conceito de modularidade de funções, isto é, da noção de que memória compreende um conjunto de habilidades mediadas por diferentes módulos do sistema nervoso, que funcionam de forma independente, porém cooperativa. O processamento de informações nesses módulos dar-se-ia de forma paralela e distribuída, permitindo que um grande número de unidades de processamento influencie outras em qualquer momento no tempo, e que grande quantidade de informações seja processada concomitantemente (Figuras 2 e 3).

A noção de que a memória não é uma entidade única é antiga e ganhou grande destaque após a descrição do quadro amnésico apresentado por H.M. Este paciente sofria de epilepsia intratável; os focos de origem da epilepsia estavam localizados nas porções mediais do lobo temporal (Figura 5). Visando aliviar a epilepsia, o paciente foi submetido a uma neurocirurgia para extirpação dos focos epilépticos, o que envolveu a remoção bilateral de parte do seu córtex temporal medial, amígdala e os 2/3 anteriores do hipocampo (Figura 5). Após a neurocirurgia, o paciente H.M. apresentou um quadro de amnésia anterógrada (não era capaz de formar novas memórias) e de amnésia retrógrada temporalmente graduada (não se lembrava de nada do que ocorrera imediatamente antes da cirurgia, mas a medida que se retrocedia no tempo até 2-3 anos, lembrava-se cada vez mais do seu passado; em relação ao período anterior a 2-3 anos antes da cirurgia, lembrava-se do seu passado como qualquer pessoa normal lembraria).


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Embora não conseguisse adquirir novas memórias, o paciente H.M. era capaz de adquirir novas habilidades motoras, perceptuais e cognitivas, ainda que não fosse capaz de perceber que essa sua capacidade estava preservada. Por exemplo, se esse paciente fosse treinado numa tarefa de leitura invertida em espelho ou numa tarefa motora como datilografar, exibia melhora de desempenho similar ao de uma pessoa normal e era capaz de reter essa habilidade por meses ou até mesmo anos. Porém, quando perguntado sobre essa sua capacidade, dizia que nunca tinha sido treinado nessa tarefa; mesmo assim, se colocado na situação original de leitura invertiva ou de datilografia, lia e datilografava prontamente, mostrando que tinha arquivado informações sobre os procedimentos envolvidos na tarefa. Portanto, o paciente sabia COMO realizar a tarefa, mas não sabia QUE era capaz de fazê-lo. Além disso, sua memória de curta duração estava intacta (Figura 6).


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Esse tipo de resultado, confirmado em experimentos envolvendo outros pacientes amnésicos, levou à subdivisão da memória de longa duração e à proposta de envolvimento de diferentes regiões nervosas em cada uma delas (Figura 7).


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A memória de longa duração se refere à retenção de informações por prolongado período de tempo. Ela pode ser dividida em dois tipos (ou módulos) diferentes (Figura 8). A primeira, chamada de declarativa (explícita ou "saber que"), se refere à habilidade de armazenar e recordar fatos e eventos de maneira consciente e passível de descrição verbal. Esta é tipicamente descrita pelo relato verbal (de onde deriva o nome "declarativa") mas também pode se dar através de reconhecimento ou de uma imagem. No exemplo do caso H.M. é exatamente esta modalidade de memória que foi perdida, fazendo com que o paciente não se lembre. Assim, esta modalidade de memória poderia ser descrita como um "saber que" (Figura 7). Diferentemente, a memória implícita ("de procedimentos" ou "saber como"), se refere à capacidade de aprender novas habilidades motoras, perceptuais ou cognitivas. Essas tarefas demandam treino longo e repetitivo e que muito dificilmente podem ser adquiridas de outra forma que não pela execução em si da tarefa em questão. Exemplos típicos desse tipo de memória incluem as habilidades percepto-motoras envolvidas em andar de bicicleta, datilografar e tocar piano ou violão; a sequência de movimentos envolvida em cada uma dessas habilidades depende de treinamento repetitivo, sendo difícil relatar como ela é acionada. Por exemplo, ao fazer uma curva o ciclista deve produzir uma inclinação do próprio corpo num ângulo que depende da velocidade da bicicleta e do ângulo da curva. É difícil relatar como essa inclinação é "calculada"; o fato é que após treinamento repetitivo a ação é realizada sem esforço. Assim, o conhecimento contido nesse tipo de memória manifesta-se pela execução habilidosa da tarefa, podendo ser descrito pela expressão "saber como". É exatamente essa habilidade que está preservada em pacientes amnésicos, tal como o caso paciente H.M. (Figura 7).

Memória operacional (inicialmente descrita como "de curta duração") é um conceito hipotético que refere-se ao arquivamento temporário da informação para o desempenho de uma diversidade de tarefas cognitivas, como manter uma conversa, fazer uma conta, planejar compras, entre outras. Diferentes tipos de evidência sugerem que ela é constituída de múltiplos componentes. Haveria um sistema atencional supervisor (SAS ou central executiva), cuja capacidade é limitada, que controla a manutenção de informações em sistemas de apoio (alça visuo-espacial e alça fonológica) enquanto essas informações são úteis (daí a natureza transitória da retenção) (Figura 8). Se uma determinada informação é considerada relevante, ela é arquivada temporariamente no retentor episódico e depois permanentemente na memória de longa duração (Figura 8). A central executiva estaria relacionada ao funcionamento dos lobos frontais, a alça visuo-espacial aos córtices occipital e parietal e a alça fonológica nos giros supra-marginal e angular do hemisfério esquerdo, estando relacionada à aquisição de linguagem. O cerebelo também parece estar envolvido no processamento da memória operacional.


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Em seres humanos normais esses módulos de memória funcionam de modo cooperativo e integrado, produzindo assim a sensação subjetiva de que a memória é um bloco monolítico. Mesmo assim, como vimos, eles dependem do funcionamento de diferentes regiões nervosas.

Preservando a memória... "mens sanae in corporae sanae" (mente sã em corpo são)
O encéfalo humano adulto pesa ao redor de 1,5 Kg numa pessoa de cerca de 70 Kg. Assim, mesmo correspondendo a apenas 2% do peso corpóreo, o encéfalo humano consome entre 20 e 25% de toda a energia disponível em nosso organismo. Parte dessa energia é utilizada na manutenção da atividade eletrofisiológica do sistema nervoso; a outra parte é utilizada na sua constante reconstrução estrutural, o que inclui a formação de sinapses e dos elementos necessários ao seu funcionamento. Tanto as substâncias químicas necessárias para essa constante reconstrução, como a energia (sob a forma de glicose e ácidos cetônicos) chegam ao sistema nervoso pela corrente sanguínea. Na presença de oxigênio (que também chega ao sistema nervoso pela corrente sanguínea), há produção de ATP, que é a fonte imediata de energia para as atividades celulares. Assim, além de uma alimentação diversificada capaz de fornecer todos os nutrientes que o sistema nervoso precisa, é importante que os sistemas circulatório e respiratório, além do excretor, funcionem satisfatoriamente; seu funcionamento deficiente prejudica o sistema nervoso e as funções de memória.

Assim, o primeiro passo para um bom funcionamento da memória é manter um "corpo são". Isto é, manter-se fisicamente ativo de modo que oxigênio e glicose cheguem ao sistema nervoso em quantidades suficientes para a manutenção de sua intensa atividade. O segundo passo é manter a "mente sã". Ou seja, manter-se intelectualmente ativo pois essa atividade é tão importante para o sistema nervoso como o treinamento físico é para o músculo. Atividades que envolvem o planejamento (por exemplo, do trajeto a ser realizado no supermercado ou na feira livre, visando o máximo de eficiência no trajeto das compras), raciocínio, aprendizagem de coisas novas, enfim, todas as tarefas que envolvem esforço intelectual trazem benefícios para o funcionamento da memória. Também o "ensaio" com informações consideradas relevantes facilitam seu arquivamento. Por exemplo, criar "estórias lógicas" sobre a sequência de números de um telefone ou uma senha de cartão de crédito, ou escrever um resumo sobre a matéria da escola que se está estudando, faz com que a pessoa mantenha essa informação ativa por mais tempo na memória operacional, o que facilita seu arquivamento na memória declarativa. E também a realização de esforço constante para resgatar informações pouco utilizadas da memória pois isso facilita a evocação de outras informações que não fizeram parte do treinamento.

A melhor forma de manter as capacidades intelectuais, inclusive a memória, é utilizá-las.

Gilberto Fernando Xavier é professor do Departamento de Fisiologia, Instituto de Biociências da Universidade de São Paulo e André Frazão Helene é aluno de doutorado do mesmo departamento

 
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Atualizado em 10/03/2004
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