Imigração no Brasil: os preceitos de exclusão

   
 
Poema
Seminário discute movimentos migratórios
Giralda Seyferth:
imigração no Brasil
Lená Medeiros:
perspectiva histórica
Memorial do Imigrante
Fábio Bertonha: Migrações internacionais e política
Antônio A. Arantes: paisagens paulistanas
Marcílio Sant'ana: circulação de trabalhadores no Mercosul
Rosana Baeninger: Brasil e América Latina
Brasiguaios
Africanos no Brasil
Carlos Vogt & Peter Fry: Cafundó
Ana Paula Poll: novas facetas de uma migração recente
O novo império português
Conexão Brasil-EUA
Americanos no Brasil
Valéria Scudeler: valadarenses nos EUA
Giralda Seyferth: alemães no Brasil
Migração japonesa e o fenômeno dekassegui
Os judeus sefaradi
Ulisses Capozoli: migrações pelo oceano cósmico
 

Giralda Seyferth

Os primeiros imigrantes destinados à colonização aportaram no Rio de Janeiro em 1819, cumprindo um acordo do governo português com o agenciador Nicolas Gachet, representante do governo do Cantão de Friburgo, Suíça. Nesse caso, um grupo de cerca de mil e setecentos indivíduos, compondo unidade familiares, fundaram a colônia de Nova Friburgo (RJ), dando início à implantação de uma forma de exploração agrícola diversa da grande propriedade escravista. Havia outros estrangeiros estabelecidos no Brasil desde 1808, sobretudo no Rio de Janeiro, dedicados a atividades comerciais, mas interessa registrar o caso dos suíços porque é revelador dos princípios que nortearam as políticas imigratórias implementadas pelo governo brasileiro, inclusive no período da grande imigração. Nesse sentido, o Tratado assinado por D.João VI refere-se à imigração como fator civilizatório, estabeleceu a preferência por agricultores e artífices e estipulou as condições de prestação do serviço militar objetivando reforçar o contingente de milicianos brancos. Esses poucos dados apontam para os principais critérios de seleção de imigrantes: deviam ser europeus e brancos, algo imprescindível mas não suficiente porque "promover e dilatar a civilização do vasto Reino do Brasil", conforme consta do decreto de 16.05.1818 que autorizou a vinda dos suíços, significava trazer colonos para povoar o território, produzir alimentos e desenvolver as artes e ofícios - mais precisamente, nos termos dos discursos imigrantistas desde essa época, gente "afeita" ao trabalho. Não há menção direta à escravidão ou aos negros nesses documentos, mas a idéia de civilização como corolário da imigração traz consigo pressupostos de exclusão, melhor evidenciados na composição das milícias onde o uso da categoria brancos mostra que as distinções fenotípicas já eram relevantes muito antes do conceito de raça surgir no Brasil.

Devem ser destacados, ainda, dois elementos fundamentais das práticas relativas à imigração: os subsídios e a localização na condição de colonos. No caso dos suíços o governo português pagou as despesas de viagem e concedeu auxílio financeiro para assegurar a subsistência das famílias nos primeiros meses; o agenciador recebeu pagamento por imigrante agenciado. O governo estabeleceu a colônia de Nova Friburgo numa sesmaria adquirida para tal fim e situada no distrito de Cantagalo, em área montanhosa e imprópria para o cultivo do café. Os imigrantes, portanto, foram localizados na periferia das grandes propriedades escravistas, iniciando um processo de ocupação que, após a independência, seria deslocado para o extremo sul, onde a colonização aparece como sinônimo de povoamento. Isto é, a imigração subsidiada devia atender ao princípio geopolítico de consolidação do território, mais nitidamente delineado a partir da fundação da colônia de São Leopoldo, no Rio Grande do Sul, em 1824, e de três outras colônias em Santa Catarina e no Paraná, estabelecidas em 1829 em caminhos de cargueiros que ligavam o litoral ao planalto e este à província de São Paulo.

A imigração iniciada em 1819 teve certa continuidade até 1830, quando uma lei proibiu gastos com a vinda de estrangeiros e sua localização em áreas coloniais. Nesse período houve predomínio de imigrantes alemães no âmbito da colonização, mantido após a retomada do processo imigratório em 1845, e só superado por outros grupos na década de 1870. A opção pelos alemães não tem relação com o insucesso e dispersão dos colonos em Nova Friburgo (Nicoulin, 1981). A aparente "preferência" indica uma seletividade diversa - a presença de alemães na corte (como naturalistas, viajantes, artistas, etc.) e no exército brasileiro e a gestão do principal agenciador até 1829, o Major Schaeffer, oficial do corpo de guardas do Imperador. Por outro lado, na primeira metade do século XIX muitos estados germânicos (sobretudo a Prússia) eram países de emigração, e o governo brasileirio, através de ações diplomáticas (como a missão do Visconde de Abrantes em Berlim em meados da década de 1840), dos agenciadores e dos subsídios e promessas de naturalização, pretendia desviar para o Brasil uma parcela dos emigrantes, preferencialmente de origem rural. Tal preferência tornou-se mais evidente a partir da promulgação da Lei de Terras em 1850, e sua regulamentação em 1854, que facilitou o acesso à propriedade de terras devolutas aos estrangeiros, regulamentou a colonização abrindo espaço para atuação de empresas particulares e para a ação individualizada dos governos provinciais nos assuntos de imigração.

Concretamente, a legislação imigratória estava subordinada à questão da colonização, inclusive na Primeira República e no Estado Novo - o colono representado como imigrante ideal, embora não houvesse impedimento real para imigrantes de inserção urbana.

O Brasil recebeu perto de cinco milhões de imigrantes entre 1819 e fins da década de 1940. Os três principais contingentes - italianos, portugueses e espanhóis - somaram mais de 2/3 do total, seguidos pelos alemães e japoneses. Outros grupos foram numericamente menos expressivos - caso dos russos, austríacos, sírio-libaneses e poloneses (Seyferth, 1990). Até meados da década de 1880 a maior parte dos imigrantes dirigiu-se, sob os auspícios do governo imperial, para o sul, situação que se modificou durante a "grande imigração", quando São Paulo passou a ser o destino da maioria dos estrangeiros entrados no país. Essa mudança na direção do fluxo, contudo, não alterou muito os preceitos imigrantistas de exclusão, visto que a passagem do trabalho escravo para o trabalho livre consistia na substituição do escravo pelo trabalhador imigrante; e os negros não tiveram acesso ao sistema de colonização.

A consolidação do Estado-Nação, desde a independência, estava subordinada, entre outras coisas, à incorporação de imigrantes brancos. Ao iniciar-se a imigração européia as exclusões de natureza racial ou cultural tinham importância secundária. Isso não significa tolerância quanto ao perfil do imigrante ideal. A existência da imigração coincindindo com o regime escravista e o discurso sobre "trabalho livre", por princípio, excluía os negros - desqualificados, sobretudo após a proibição do tráfico, em 1850, por sua suposta inferioridade racial e cultural, considerados incompatíveis com a civilização e incapazes de produzir desenvolvimento econômico. Antes e depois da abolição, dizia-se que cogitar uma corrente imigratória da África para o Brasil seria equivalente ao indireto reestabelecimento do tráfico (Seyferth, 1991).

O postulado do controle dos fluxos imigratórios estava, pois, diretamente associado à imagens do imigrante ideal construída desde 1819. Nessa representação, o Brasil precisava de trabalhadores brancos e sadios, agricultores exemplares oriundos do meio rural europeu, com todas as "boas qualidades" do camponês e do artífice, obedientes à lei, dóceis e morigerados, de moral ilibada, etc. Por outro lado, ser europeu não bastava: os "piores elementos colonizadores" segundo diretores de colônia, eram comunistas, condenados, ex-soldados e a "escória das cidades" que os governos europeus "expeliam" e que o Brasil devia mandar de volta. Refugiados, deficientes físicos, ciganos, ativistas políticos, velhos, etc., também estavam arrolados, inclusive na legislação, como "indesejáveis".

Finalmente, o maior volume de entradas de estrangeiros após a abolição reavivou o debate sobre assimilação dos imigrantes (presente desde meados do século XIX), no contexto de afirmação da tese do "branqueamento", e que, na prática, culminou com a campanha de nacionalização no Estado Novo. O postulado assimilacionista tinha dois aspectos: por um lado, a tese do branqueamento da população vislumbrava os europeus como parte de um processo de caldeamento racial e, por outro lado, estes europeus deviam integrar-se ao "melting-pot" também na forma de abrasileiramento cultural (o que significava a condenação das etnicidades produzidas pelo processo imigratório). O imaginário nacionalista obcessivamente apegado a um sentido étnico de formação nacional ajudou a criar não só outras formas de exclusão por graus de assimilabilidade (privilegiando imigrantes de comprovada latinidade) como reafirmou os preceitos racialistas de desqualificação dos "nativos da Ásia e da África" que, no início da república, estavam consignados em lei, depois revogada. A construção simbólica da individualidade nacional, portanto, ajudou a produzir os preceitos de exclusão que marcaram a política imigratória no Brasil.

Referências:

NICOULIN, M. 1981. La Genèse de Nova Friburgo. Friburgo, Éditions Univerisitaires, 4a. edição.

SEYFERTH, G. 1990. Imigração e Cultura no Brasil. Brasília, Editora da Universidade de Brasília.

________ 1991. "Os paradoxos da miscigenação". In: Estudos Afro-Asiáticos, 20.

Giralda Seyferth é Pesquisadora do departamento de Antropologia do Museu Nacional - UFRJ

   
           
     

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Atualizado em 10/12/2000

   
     

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