Africanos no Brasil: dubiedade e estereótipos
   
 
Poema
Seminário discute movimentos migratórios
Giralda Seyferth:
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Lená Medeiros:
perspectiva histórica
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Fábio Bertonha: Migrações internacionais e política
Antônio A. Arantes: paisagens paulistanas
Marcílio Sant'ana: circulação de trabalhadores no Mercosul
Rosana Baeninger: Brasil e América Latina
Brasiguaios
Africanos no Brasil
Carlos Vogt & Peter Fry: Cafundó
Ana Paula Poll: novas facetas de uma migração recente
O novo império português
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Americanos no Brasil
Valéria Scudeler: valadarenses nos EUA
Giralda Seyferth: alemães no Brasil
Migração japonesa e o fenômeno dekassegui
Os judeus sefaradi
Ulisses Capozoli: migrações pelo oceano cósmico
 

A situação dos imigrantes africanos no Brasil, desde os antigos escravos até os estudantes universitários atuais, é caracterizada pelo racismo da sociedade brasileira.

Africanos foram trazidos para o Brasil como escravos desde meados do século XVI. O regime escravocrata foi aqui institucionalizado através de uma série de leis, que determinavam quem era escravo e como seriam as punições (que incluíam práticas como torturas e marcas com ferro quente).

A atitude da sociedade nacional com relação aos negros brasileiros caracteriza-se por uma dubiedade, um distanciamento entre as leis disponíveis e a prática social, que pode ser remontada à época da escravatura. O advogado Samuel Santana Vida, em seu texto Africanos no Brasil: uma ameaça ao paraíso racial, enviado ao seminário internacional "Migrações Internacionais - Contribuições para Políticas", da Comissão Nacional de População e Desenvolvimento (CNPD), realizado em Brasília em 6 e 7 de dezembro de 2000 (veja texto nesta edição), aponta o papel do Estado nesse processo – pois não se trata apenas da diferença entre as leis e a realidade; essa dicotomia está embutida na própria legislação. Vida faz um espantoso relato da duplicidade das leis raciais brasileiras desde a primeira metade do século XIX.

Por exemplo, é conhecida a seqüência de decretos e leis que levaram paulatinamente à abolição total da escravatura em 1888 (Lei Áurea), desde a lei Diogo Feijó, de 1831, que pretendeu abolir o tráfico de escravos, até a Lei dos Sexagenários, de 1885, que declarava livre todo escravo com mais de 60 anos. Porém, quando as leis não eram sumariamente ignoradas, seus detalhes faziam com que fossem absolutamente inócuas na prática.

A lei Diogo Feijó proibiu o tráfico de escravos, mas foi ignorada e o tráfico persistiu por mais quase 25 anos. Sua versão de 1853, a Lei Eusébio de Queirós, emancipava os africanos livres que eram trazidos para o Brasil por tráfico ilegal – mas previa que os mesmos seriam forçados a trabalhar 14 anos para pagar as despesas de "reexportação" (repatriação)! O passo seguinte foi a Lei do Ventre Livre, de 1871, que declarava livre toda criança nascida no Brasil – mas estas seriam obrigadas a servirem a seus donos até atingirem a maioridade. Ademais, quando a Lei Áurea foi proclamada, em 1888, nenhuma delas a tinha atingido, ou seja, a lei foi completamente sem efeito. Já a Lei dos Sexagenários de 1885, libertou todos os escravos com mais de 60 anos – mas previa um regime de trabalho gratuito para o ex-proprietário durante 5 anos. Novamente, quando da proclamação da Lei Áurea, não haviam passado ainda cinco anos desde a proclamação da Lei, de forma que na prática ela não chegou a surtir efeito algum.

Logo após a Proclamação da República, em 1889, foi tomada pelo governo uma série de medidas para fomentar a imigração européia. Um dos objetivos era o embranquecimento da população. Esse objetivo era muitas vezes enunciado de maneira espantosamente explícita. Segundo Vida, um decreto do presidente Getúlio Vargas, de 18 de setembro de 1943, afirma: "Atender-se-á na admissão dos imigrantes a necessidade de preservar e desenvolver, na composição étnica da população, as características mais convenientes de sua ascendência européia."

Esse tipo de duplicidade persiste até hoje. Por exemplo, apesar de a Constituição de 1988 garantir que "é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos" (artigo 5º, § VI), a exigência de registro dos templos de candomblé junto às autoridades policiais manteve-se na Bahia até 1976.

Outro exemplo é que apenas em 15 de setembro de 2000 o Ministro da Previdência Waldeck Ornélas reconheceu o direito à aposentadoria para sacerdotes e sacerdotisas do candomblé (os pais e mães-de-santo). Segundo o jornal Folha de S. Paulo (16-9-00), o pai-de-santo Aristides Mascarenhas, presidente da Febacab (Federação Baiana do Culto Afro-Brasileiro), a classe chegou a pedir o reconhecimento do Ministério da Previdência em 1991, mas o direito lhes foi negado sob a alegação de "falta de dogmas candomblé".

Todo esse processo gerou em nossa sociedade um "mito da democracia racial" ou do "paraíso racial", uma espécie de negação dos nossos problemas raciais. O próprio discurso de elogio à mestiçagem disfarça a discriminação aos negros. Essas concepções são desmentidas pelas inúmeras discriminações contra os afro-brasileiros e contra imigrantes africanos, tanto em nível privado quanto público.

Além do racismo comum, Vida distingue também o que alguns intelectuais franceses ligados ao periódico Le Monde Diplomatique chamaram de "afropessimismo". Trata-se da identificação das causas do subdesenvolvimento africano com uma "barbárie intrínseca" às sociedades daquele continente. Vida encontra na imprensa nacional um forte viés afropessimista, mostrando que as notícias veiculadas sobre a África em geral tratam de catástrofes humanitárias, epidemias virulentas e guerras tribais bárbaras, consolidando um estereótipo. A própria identificação de "africanos" e "África" para um continente formado por mais de 50 países diferentes exemplifica esse estereótipo (enquanto estrangeiros europeus, asiáticos e americanos são especificados de acordo com seu país de procedência).

Imigrantes africanos: no seio do preconceito

A situação dos imigrantes africanos atuais sofre os reflexos do racismo a que são expostos na sociedade brasileira. Entre essas pessoas podemos identificar dois grupos principais: estudantes universitários e refugiados políticos.

Os refugiados mais recentes vieram em grande parte por causa da fase extremamente violenta da guerra civil em Angola em 1992 e 1993, período no qual estima-se 500 mil mortes. Segundo informações do Consulado de Angola, há cerca de 15 mil imigrantes angolanos no Brasil (dados de 1996), mas o Consulado ressalta que "a maioria dos angolanos que chegam de forma ilegal não se aproximam do Consulado; portanto há no Brasil um número muito grande de angolanos que jamais farão parte de qualquer estimativa."

O texto de Samuel Vida mostra algumas conclusões derivadas das queixas ouvidas durante suas pesquisas junto à comunidade negra principalmente de Salvador. A principal queixa refere-se à desconfiança das autoridades responsáveis pelo controle de imigração, desconfiança que se justifica, segundo essas autoridades, dado o envolvimento de africanos com o tráfico de drogas. No dia-a-dia, enfrentam abordagens desrespeitosas pela Polícia Militar, casos de discriminação praticados por funcionários de bancos e em outras atividades econômicas e empresariais.

Sobre esse assunto, principalmente com relação aos estudantes, estende-se uma outra contribuição ao seminário do CPND, do senegalês Alain Pascal Kaly, doutorando em Estudos Internacionais Comparados do Curso de Pós-graduação em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade (CPDA) da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, UFRRJ (Príncipes/princesas, os sobreviventes da fome da África: os estudantes africanos no Brasil).

Segundo Kaly, o primeiro grupo de estudantes africanos veio na década de 1960 e era constituído de 16 pessoas do Senegal, Gana, Camarões e Cabo Verde, mediante bolsas pagas no Brasil. Hoje há estudantes vindos de países cujas línguas oficiais são o francês, o inglês, o português e o espanhol (Guiné Equatorial). A grande maioria vem com bolsa paga pelo países de origem ou por organismos internacionais – ou, no caso de países cuja língua oficial seja o português (Angola, Moçambique, Guiné-Biassau, Cabo Verde e São Tomé e Príncipe), pelo Brasil. Os estudantes senegaleses e marfinenses (Costa do Marfim) são financiados pela própria família.

As discriminações apontadas por Vida reproduzem-se nos relatos de Kaly: estrangeiros africanos são tratados como africanos enquanto estrangeiros europeus são tratados com o gentílico de seu país de origem. Os proprietários de apartamentos muitas vezes exigem que o estudante tenha um fiador, mesmo que este tenha condições de pagar o aluguel. O dinheiro brasileiro parece ter valor diferente quando vem da mão de um imigrante africano: Kaly conta que "as estudantes africanas sofrem menos com a polícia e muito mais nas lojas dos shopping centers freqüentados pela classe média alta". Os imigrantes são confundidos várias vezes com porteiros de edifícios e outros empregos de renda mais baixa.

Foi notório o recente caso da intervenção da Polícia Militar no Complexo da Maré, nas favelas do Rio de Janeiro, descrito por Vida como um dos maiores escândalos racistas do final do século. A intervenção foi causada pela suspeita do envolvimento de guerrilheiros angolanos no tráfico de drogas e no assassinato de seis pessoas na favela Nova Holanda no início de 2000. Foram presos vários angolanos, sob a alegação de serem mercenários. Houve protestos da Embaixada de Angola, seguida da pressão do Itamaraty e do pedido de desculpas das autoridades cariocas.

Essas atitudes refletem-se no comportamento dos estudantes. Os que conseguem morar em bairros "chiques" tendem inconscientemente a mostrar o tempo todo que têm condições financeiras compatíveis com aquele ambiente, através de roupas bem alinhadas. Pior, vários deles cansam-se das humilhações e preferem ficar em casa nos horários livres.

Kaly relata um desdobramento do racismo brasileiro, o racismo entre os próprios imigrantes. Por exemplo, muitos estudantes cabo-verdianos não se reconhecem e não se aceitam como africanos. Muitos cabo-verdianos são "morenos-claros" ou "pardos", e tendem a se misturar com os brasileiros para evitar serem tratados como africanos.

Com relação aos relacionamentos, segundo Kaly, há preconceitos de ambas as partes: brasileiros e imigrantes. Muitos estudantes africanos não vêem com bons olhos uma colega namorando com um brasileiro, principalmente se este for branco. O autor reproduz em seu texto o relato de uma estudante segundo o qual um fenômeno semelhante acontece na própria África: "se não sou do mesmo grupo étnico que o meu namorado, você acha que não posso ser rejeitada também[?]".

 

   
           
     

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Atualizado em 10/12/2000

   
     

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