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Resenhas


Água e desenvolvimento sustentável no Nordeste
Organizado por Vicente P.P.B. Vieira

Seca e poder, entrevista com Celso Furtado
Editora Perseu Abramo

 

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Seca e poder, entrevista com Celso Furtado

Editora Perseu Abramo
1998
96 páginas

Por Marta Kanashiro

No Brasil, o tema rios ou águas não pode ser adequadamente explorado se não englobar a questão da seca, parte dessa nossa realidade composta de características opostas, assimetrias, desigualdades. Uma entrevista conduzida por Maria da Conceição Tavares, Manuel Correia de Andrade e Raimundo Rodrigues Pereira, realizada com o economista Celso Furtado no dia 24 de agosto de 1998, foi transformada em livro, nesse mesmo ano, publicado pela Fundação Perseu Abramo. Em Seca e poder, entrevista com Celso Furtado, o intelectual expõe opiniões e propostas, mesclando vivência, conhecimento teórico e prático sobre o assunto e as relações dessa questão com temas tais como mercado, capitalismo e globalização, clientelismo e modernidade, além do movimento dos trabalhadores sem-terra.

O economista paraibano, falecido em 2004, aos 84 anos, é um dos intelectuais brasileiros que mais se aproximou dos problemas do Nordeste. Convidado pelo então presidente da República, Juscelino Kubitschek, Furtado criou e foi superintendente da Superintendência de Desenvolvimento do Nordeste (Sudene) por cinco anos, até ser acusado de subversivo e comunista e ter seus direitos políticos cassados por dez anos, logo após o golpe de 1964. Nesse período dedicou-se à pesquisa e ao ensino, em universidades como as de Yale, nos Estados Unidos, Sorbonne, na França, e Cambridge, na Inglaterra.

Celso Furtado que fez parte da Comissão Econômica para a América Latina (Cepal), tinha familiaridade com os problemas latino-americanos e conhecia bem as características naturais da seca, como a deficiência ou irregularidade de chuvas com evaporação superior à precipitação, que ocorre na zona semi-árida do país, região que possui atualmente cerca de 22 milhões de habitantes e compreende uma área de aproximadamente 900 mil km2. Durante a entrevista, relembrou histórias de família como a de seu avô, que perdeu todo o gado na seca de 1915 e na seca seguinte, de 1919, quando tentou em vão transferir o gado para Campina Grande. A lembrança veio em forma de alerta para o fato de que naquele período a seca era uma calamidade natural mas, desde que passaram a existir mecanismos de informação e previsibilidade dos períodos mais acentuados de seca, a questão tornou-se social e política.

Mesclando o conhecimento adquirido com seus estudos e sua vivência, Furtado faz esse deslocamento da questão natural para a social, defendendo em muitos momentos que a problemática central não é a falta de água, mas sua má utilização.

Como salienta Manuel Correia de Andrade no prefácio do livro, Furtado levantou, já década de 1950, a tese presente, sobretudo, no relatório do Grupo de Trabalho para o Desenvolvimento do Nordeste (GTDN), de que a pobreza no Nordeste não é, como se afirmava então, conseqüência da seca, mas sim do subdesenvolvimento e da exploração da região (da terra, das relações de produção, e do próprio impacto da seca) pelas elites nordestinas e por grupos de outras regiões do país. O intelectual acusava a classe política nordestina de dificultar a formulação de uma política para acabar com a seca.

Celso Furtado acreditava que uma das possibilidades de ação para resolver os problemas do Nordeste estavam contidas na Lei da Irrigação que propôs ao Congresso Nacional. As mesmas linhas de ação estavam presentes no Plano Diretor da Sudene. Nas palavras do economista durante a entrevista: “Uma das maiores batalhas que tive na Sudene, provavelmente a mais completa derrota que tive, foi o projeto de Lei da Irrigação. Já para aprovar no conselho da Sudene foi um sacrifício. O projeto de irrigação dizia, basicamente, o seguinte: o dinheiro posto pelo governo na irrigação tem de ser de interesse social, não é para reforçar o que existe na estrutura agrária. Portanto, tinha de haver desapropriação de terras antes que elas se valorizassem”.

Assim, a irrigação proposta por Furtado, que considerava um contexto maior para procurar evitar a concentração de renda, encontrou forte reação das elites nordestinas que se beneficiavam da indústria da seca. Para fazer a irrigação, ele propunha o controle do uso do solo, que permitiria a divisão de renda. Outra sugestão era que essas ações também fossem realizadas de forma a criar alternativas de emprego para a população do semi-árido em outras áreas, não subutilizando, por exemplo, as zonas úmidas do Nordeste. Essa emigração para áreas subpovoadas seria também uma forma de democratizar o acesso à terra. As propostas de Furtado que abarcavam a desapropriação das terras a serem beneficiadas pelo programa, a orientação das culturas e o controle da produção, com a fixação do agricultor à terra, não agradaram alguns setores da elite da região.

Apesar de defender a irrigação como uma forma de solucionar as questões da seca, Furtado pensava que ela não poderia funcionar sem essa sua consideração de um contexto mais amplo. Esse posicionamento o levou a afirmar, durante a entrevista, que nunca se interessou pelo projeto de transposição de águas do Rio São Francisco, vendo-o sempre com cautela. Um dos argumentos levantados por Furtado e também por Manuel Correia de Andrade, foi a necessidade de se ter mais estudos para evitar a salinização do solo que pode ser ocasionada pela irrigação. Além disso, na entrevista ele questiona quais seriam os beneficiados com a transposição: “Sempre perguntei: a quanto chega o investimento? Nunca ninguém conseguiu me dizer quanto custaria. Em segundo lugar, quem vai ser beneficiado com isso? São os proprietários de terra? Então terão novos açudes para evaporar? Portanto, o problema não está em ter mais água, mas em usar bem a água que existe. O Jaguaribe é um rio muito importante, com muita água que vai para o mar. Mas não quero excluir a hipótese. Pode ser que eu esteja equivocado e que seja uma grande vantagem. Porém, é preciso provar. Que não resolvam vender o projeto ao governo para ser iniciado e depois ficar 30 anos cavando buraco sem poder terminar”, diz Furtado no livro.

No final de novembro de 2004, o atual presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, anunciou que o canal norte da integração do Rio São Francisco com as bacias dos rios intermitentes do Nordeste vai se chamar Celso Furtado. O desenrolar do projeto dirá se a homenagem incorpora as medidas de cautela e a amplitude da compreensão de Furtado, ou se acabará se tornando uma ironia trágica.

Sobre o tema “seca”, veja também: Vida e morte no sertão:
história das secas no Nordeste nos séculos XIX e XX

Fonte: o semi-árido ocupa 841.261km2 de área no Nordeste e outros 54.670km2 em Minas Gerais: dados da Agência Nacional de Águas do Ministério do Meio Ambiente,
Fonte: dados sobre área e habitantes do semi-árido disponíveis no site da Embrapa

Atualizado em 10/02/2005

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