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Resenhas

Na senzala, uma flor: esperanças e recordações da família escrava
Robert Slennes

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Na senzala, uma flor: esperanças e recordações da família escrava - Brasil, Sudeste, século XIX .

Robert Slennes. Rio de Janeiro, Ed. Nova Fronteira, 2000.

Por Daniel Ferraz Chiozzini

Vida e resistência nas senzalas
A história do Brasil é profundamente marcada por algumas generalizações herdadas dos bancos escolares. A compreensão do período colonial e imperial ainda se dá a partir de uma visão superficial de uma de suas principais marcas: o sistema plantation, usualmente definido pelas palavras-chave "latifúndio, monocultura, escravidão". Nesse sistema, grandes latifúndios eram destinados ao cultivo de um único produto, utilizando mão-de-obra escrava. O escravo, considerado "coisa" que era comprada e vendida, tinha a única e imediata opção de fugir ou revoltar-se, reagindo à opressão e à violência da classe senhorial.

Os recentes debates sobre ações afirmativas de combate ao racismo talvez sejam um ponto de partida interessante para desmitificarmos alguns períodos e conceitos relacionados à história do Brasil. Hoje já é bastante aceita a idéia de que a discriminação racial encontra diferentes configurações e muitas vezes encontra mecanismos mais sutis de excluir o negro, bastante distintos da opção jurídica que vigorou até a segunda metade do século passado na África do Sul e nos EUA. Muitos historiadores, quando chamados a opinar sobre os caminhos trilhados no combate ao racismo, procuram apontar para a necessidade de observância dessas particularidades, em conjunto com as medidas jurídicas de caráter genérico, já bastante defendidas. O olhar desses historiadores talvez seja pautado por uma tendência relativamente recente no campo historiográfico que, grosso modo, consiste em admitir que as relações entre opressão, dominação e exclusão nunca podem ser olhadas de maneira simplista e uniforme, inclusive quando falamos de escravidão. Mesmo o escravo sendo juridicamente reduzido a um produto de compra e venda e a violência ser um artifício legítimo e declarado de manutenção da ordem, a resistência do negro extrapolou os limites desse conceito de revoltas e insurreições contra o senhor.

A obra do historiador Robert Slennes é, indubitavelmente, uma das grandes referências para entendermos como a escravidão foi um dos fundamentos de um sistema produtivo durante aproximadamente 300 anos e, mais ainda, como o negro resistiu à opressão que sofreu durante esse período. O título, Na senzala, uma flor: esperanças e recordações da família escrava - Brasil, Sudeste, século XIX, é uma contraposição ao relato de um viajante francês, que visitou o Brasil em 1859, Charles Ribeyrolles e que afirmou serem os escravos indivíduos imersos em um universo de dor, promiscuidade sexual e "bestialidade". Desprovidos de condições mínimas que levassem à constituição de famílias, viviam como "ninhadas" e, deste modo, ele concluiu que não havia entre eles nenhuma perspectiva de passado e de futuro: "Nos cubículos dos negros, jamais vi uma flor: é que lá não existem esperanças nem recordações."

A permanência de visões parciais e limitadas sobre as condições de vida dos escravos, inauguradas por viajantes estrangeiros como Ribeyrolles, vigoraram no meio acadêmico até o final da década de 70, sob diferentes perspectivas. Segundo Slennes, essas interpretações foram influenciadas por uma produção historiográfica norte-americana, mas também estão ligadas a teorias sociológicas que tiveram entre seus representantes Roger Bastide e Florestan Fernandes. Este último chegou a afirmar que os escravos viviam em estado de completa anomia social, "perdidos uns para os outros", sob a ausência de nexos e normas sociais. Isto justifica a afirmação de que o negro não teria tido um papel relevante na abolição da escravatura e na revolução burguesa no Brasil (discussão que, diga-se de passagem, norteou parte significativa da produção intelectual daquela década).

No primeiro capítulo Robert Slennes apresenta a evolução destas idéias e teorias, de maneira bastante intelegível para o público leigo, passando por autores clássicos como Gilberto Freyre e Caio Prado Junior, além de intelectuais estrangeiros. No segundo capítulo, ele inicia efetivamente um contra-ataque. Uma cuidadosa análise demográfica comprova que a família escrava não apenas existiu formalmente, como manteve-se ao longo de um período significativo. A análise de fontes primárias, como registro de batismos e casamentos, matrículas de escravos e inventários post-mortem, apontam a existência de uniões estáveis por mais de 10 anos, envolvendo parte significativa da população escrava, considerando a desproporção entre homens e mulheres e a alta taxa de mortalidade. Em 1872, 61,8% das mulheres cativas com mais de 15 anos eram casadas ou viúvas. Tal situação é bastante representativa das regiões de plantation do sudeste, onde o caso de Campinas é comparado com o de outras cidades das quais existem dados disponíveis. As famílias eram constituídas e se mantinham , em sua maioria, onde havia "posses" médias ou grandes, com mais de 10 ou mais de 50 escravos.

Mas qual seria o significado da formação e "durabilidade" dessas famílias? Essa questão permite o diálogo direto de Slennes com outros historiadores que admitem a formação da família escrava, porém com sentidos distintos. Para Manolo Florentino e José Roberto Góes, a família seria um dos pilares do escravismo, criando condições para o domínio senhorial, uma vez que a permissão para sua constituição funcionava como um "pacto de paz" entre senhores e escravos. Já Hebe Mattos identifica no casamento e na formação de laços familiares uma aproximação de parte dos cativos com o "mundo dos livres", acentuando rivalidades internas entre os próprios escravos. Já Slennes admite que, a curto prazo, a formação das famílias poderia ser favorável aos senhores. Uma análise mais ampla, considerando um maior espaço temporal, permite que seja identificada a construção de uma identidade própria dos escravos, antagônica aos interesses senhoriais, a partir da valorização das tradições africanas.

A defesa desse argumento aparece principalmente no terceiro e quarto capítulos, nos quais o autor escreve uma "história cultural", fortemente influenciada pela obra do historiador inglês E.P. Thompson. Como ele ironiza no prefácio do livro, é necessário compreender que os escravos não eram " 'noruegueses', mas africanos de determinadas etnias e filhos de africanos". Isso faz deles sujeitos históricos, pertencentes e herdeiros de tradições culturais que enfrentaram embates e conflitos para se impor diante da política de domínio senhorial. Na metade do século XIX, 80% dos escravos da região eram africanos, sobretudo trazidos da região oeste, da etnia bantu. Segundo suas tradições, linhagens familiares estruturavam-se a partir de um ancestral comum, não estando diretamente subordinadas ao lugar de origem. Apesar de possuírem religiões diferentes, estas traziam valores comuns. No ano de 1872, quando Campinas tinha uma população de aproximadamente 14.000 escravos (a maior do estado de São Paulo), é possível afirmar que a maioria dos escravos estava a três ou quatro gerações dos homens e mulheres que trouxeram essas tradições do continente africano. Robert Slennes se propõe, portanto, a compreender a família escrava a partir desses traços culturais e da vida material dos cativos.

Considerando esses pressupostos, o autor demostra que o casamento assegurava ao casal um espaço separado na senzala, muito próximo aos padrões das aldeias africanas, nas dimensões e características arquitetônicas. A ausência de janelas, que até então era apontada como instrumento de controle de fugas, são interpretadas como heranças africanas, a ponto dos próprios escravos construírem cômodos assim para si quando adquiriam a permissão do senhor.

A existência do "fogo doméstico", mantido dentro da habitação, também ganha novos sentidos, de acordo com os hábitos africanos. Além de servir para iluminar, afastar insetos e aumentar a durabilidade da cobertura de colmo, estava associado ao culto dos ancestrais, simbolizando a continuidade do grupo. Também estava relacionado a uma série de rituais e crenças cuja descrição, além de fundamentar o argumento do autor, tornam a leitura da obra extremamente reveladora e instigante. O fogo proporcionava - entre outras coisas - o preparo do alimento e ficar livre do sal, visto na tradição africana como uma ofensa ao espírito e o paladar.

O sentido dessas práticas deve ser analisado, mais uma vez, com a referência a E.P. Thompson. A resistência escrava pode ser identificada na medida em que eram construídas redes de solidariedade e de identidade entre escravos, amplamente associadas a suas tradições e cultura. Movimentos ou revoltas devem ser vistos, em última instância, como resultado desse processo, uma vez que nunca são meramente "reativos" ou inconseqüentes, movidos apenas pela fome ou pela opressão. São resultado de uma reflexão e interpretação sobre sua condição, o que esteve presente no sudeste do Brasil e, com outras configurações, nas demais regiões onde existia escravidão.

Por último, deve ser ressaltado que Robert Slennes partilha com o leitor, ao longo do texto, o estabelecimento de hipotéses e os caminhos trilhados na investigação e na consolidação de sua tese. É possível ter uma visão da historicidade de seu raciocínio, desde os dados coletados durante seu doutorado (1976) e na colaboração com Carlos Vogt e Peter Fry na obra Cafundó - a África no Brasil (1996) - até a conclusão do trabalho de pesquisa mais recente. Sendo assim, o autor proporciona ao público mais amplo, um contato com questões teóricas e metodológicas que envolvem o trabalho do historiador. Nos textos acadêmicos, em geral, isso costuma ficar nas entrelinhas. A grandeza da obra também está, deste modo, na sua narrativa.

Atualizado em 10/11/03

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2003
SBPC/Labjor

Brasil