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                             Nada 
    mais próximo do tema da infância do que o fenômeno da aquisição 
    de linguagem. A palavra “infância” vem do latim infantìa,ae 
    que significa tanto ainda não falar como infância, o que é 
    novo, novidade; do latim infans,ántis, que não fala, 
    criança. A aquisição da linguagem é, portanto, 
    a passagem do infans, aquele que não fala, para sujeito falante. 
  Somos 
    testemunhas dessa mudança e nos admiramos a cada vez que temos o privilégio 
    de acompanhar de perto as primeiras vocalizações do bebê, 
    seus balbucios e fragmentos de enunciados nos quais reconhecemos partes da 
    nossa própria fala. Não deixamos de atribuir sentido à 
    fala infantil, de interpretá-la apesar de toda a diferença que 
    apresenta quando comparada à do adulto. A língua está 
    entre nós, ela antecede o infans na cultura e determina seu 
    percurso na aquisição de linguagem; o destino de toda criança, 
    salvo certos avatares, é se tornar falante. Em poucas palavras, podemos 
    dizer que a aquisição de linguagem é um fenômeno 
    que se repete em cada ser e, de certo modo, é tema de todo mundo: os 
    leigos a vêem como natural, apostando nesse vir-a-ser falante e, por 
    outro lado, investigadores de diversas áreas se perguntam como pode 
    uma criança vir a falar. Tanto a filosofia, quanto a psicologia, a 
    psicanálise e a lingüística formularam e formulam hipóteses 
    sobre a aquisição e a fala da criança. 
  Ao 
    longo dos séculos se encontram relatos que se referem às primeiras 
    palavras da criança, como também às indagações 
    sobre as condições necessárias para falar. Conta-se, 
    por exemplo, que o rei Psamético do Egito, no século VII A.C, 
    determinou o confinamento de duas crianças desde o nascimento até 
    a idade de dois anos sem qualquer convívio com outras pessoas, para 
    que se observasse como falariam ou se falariam ou ainda que língua 
    falariam no contexto de privação social. Além da crueldade 
    envolvendo o episódio é preciso notar que a hipótese 
    sustentada pelo rei era que, se essas crianças crescessem sem exposição 
    à fala humana e viessem a falar, a primeira palavra emitida espontaneamente 
    pertenceria à língua mais antiga do mundo. Passados dois anos 
    de total isolamento as crianças emitiram uma seqüência fônica 
    que teria sido interpretada como “bekos”, palavra do frígio, 
    língua indo-européia desaparecida, do grupo anatólico, 
    que era falada pelos frígios. Concluiu-se, então, que a língua 
    dos frígios era a língua mais antiga do mundo.  
  Note 
    o leitor que, além das indagações sobre a infância 
    e a aquisição de linguagem, o rei indagava-se sobre a origem 
    da linguagem através da investigação sobre a sua origem 
    na criança. Este salto do ontogenético, isto é, do desenvolvimento 
    individual, para o filogenético, como evolução de uma 
    espécie, e reciprocamente, é um trajeto que, embora insustentável, 
    ainda se observa em tempos bem mais atuais, quando o problema toca tangencial 
    ou frontalmente a questão da origem e da mudança.  
  Nesses 
    casos o termo “infância” é às vezes evocado 
    ou usado metaforicamente para falar de estados iniciais sobre os quais nossas 
    hipóteses são, até hoje, bastante especulativas.  
  Ferdinand 
    de Saussure, fundador da lingüística como ciência, posiciona-se 
    ceticamente a respeito da discussão sobre a origem da linguagem humana 
    e se opõe com veemência aos autores que estabelecem um paralelo 
    entre a língua e o organismo vivo que nasce, cresce e morre. A língua 
    para o autor não é um ser organizado, ela não morre espontaneamente, 
    não se deteriora e não cresce, na medida em que ela não 
    tem nem infância, nem idade madura ou velhice, e não nasce tal 
    como ocorre aos organismos vivos. A língua é um objeto de cultura, 
    mas não entendido como oriundo da necessidade de comunicação 
    e, sim, forjado pelo simbólico. 
  Os 
    estudos mais sistemáticos sobre a aquisição de linguagem 
    e sobre a particularidade da fala da criança começam a partir 
    do século XIX, através do trabalho dos diaristas. Assim foram 
    chamados aqueles que guiados tanto pela curiosidade intelectual quanto pela 
    condição de pais interessados no desenvolvimento de seus filhos, 
    registravam a fala destes em diários. Nada semelhante aos recursos 
    tecnológicos de hoje, em uma época anterior ao advento do gravador, 
    esses estudiosos contavam apenas com lápis e papel.  
  Os 
    diaristas realizaram um rico trabalho descritivo e mais ou menos intuitivo, 
    deixando uma fonte preciosa para outros pesquisadores interessados nos fatos 
    relacionados à emergência da linguagem na infância. Os 
    diários não eram, pois, voltados para um debate teórico, 
    seus autores não buscavam, na fala da criança, evidências 
    em favor de uma teoria lingüística ou psicológica, mas 
    podemos reconhecer que esses estudos se inseriam, de um modo ou de outro, 
    nas teorias da época.  
  Foram 
    os diaristas que iniciaram uma metodologia de trabalho hoje chamada “longitudinal”, 
    porque acompanha a fala da criança ao longo do tempo.  
  Os 
    estudos longitudinais dão visibilidade à mudança, isto 
    é, a um fenômeno que caracteriza tanto a aquisição 
    de linguagem quanto a própria infância. Cabe às hipóteses 
    ou teorias sobre a aquisição determinar o modo como concebem 
    a mudança quando enfrentam a sua questão maior: “como 
    pode um infans vir a falar?”  
  Se 
    a língua, como foi dito acima, no seu funcionamento simbólico 
    antecede o sujeito, está lá, ou melhor, é falada pela 
    comunidade em que ele nasce, a pergunta acima pode ser traduzida em uma outra, 
    o que põe em cena o papel do adulto: “qual o efeito da incidência 
    da fala do outro sobre o corpo prematuro do infans?”  
  As 
    perguntas acima não deixam de evocar um debate há muito formulado, 
    mas sempre vigente, entre hipóteses que partem do ponto de vista de 
    uma dotação da natureza, do inato, do biológico e aquelas 
    que incluem o problema da aquisição de linguagem na ordem da 
    cultura.  
  Não 
    traremos para o leitor esse debate, embora ele esteja no centro das discussões 
    sobre a aquisição de linguagem e não se configure simplesmente 
    pela oposição entre os termos “natural x social”. 
    Optamos aqui por deixá-lo ecoar como uma questão que circula 
    entre as formulações sobre as relações estruturais 
    entre o outro como falante (a mãe ou outro adulto), a própria 
    língua em funcionamento e a criança.  
  Como 
    sabemos o infans nasce em um estado de prematuridade específica 
    da espécie e nesse sentido, o diálogo entre mãe e bebê 
    deve ser tomado pela radical assimetria que o caracteriza, a começar 
    pelo fato de que inicialmente só o adulto fala, e fala pela criança 
    transmitindo-lhe sua “vocação humana”, bela expressão 
    do psicanalista Didier Weil ao qualificar essa voz que, ao passar a fala, 
    passa também à criança a sua música, transmitindo-lhe 
    uma dupla vocação: “está ouvindo a continuidade 
    musical de minhas vogais e a descontinuidade significante das minhas consoantes?” 
     
  Poeticamente 
    definido e condensado na transmissão da “vocação 
    humana”, esse fato dá visibilidade tanto ao efeito da presença 
    do bebê no adulto, quanto ao efeito que a fala deste promove no corpo 
    prematuro.  
  A 
    tese da prematuridade requer que se explicite o que ela acarreta: o ser humano 
    imaturo não sobrevive sem o adulto da espécie. Entretanto, não 
    é sobre a necessidade que falamos aqui. A mãe interpreta a presença 
    da criança como uma demanda. O grito do bebê é tomado 
    como a voz de um chamado pelo adulto, abrindo caminho para a aquisição 
    de linguagem, para uma relação da criança com a língua, 
    porque nada nesse diálogo miúdo entre mãe e criança 
    escapa à língua, o que dá todo o alcance da afirmação 
    de Saussure: é a língua que faz a unidade da linguagem. 
  Estas 
    observações de cunho mais geral ganham no trabalho de Cláudia 
    Lemos – lingüista e agora também psicanalista – uma 
    teorização a partir do que Saussure nomeou “ordem própria 
    da língua”, para dar conta da alteridade desta relativamente 
    ao humano. Para manter a coerência com essa perspectiva, a autora passa 
    a atribuir à lingua a função de “captura”, 
    entendida como uma abreviatura para os processos de subjetivação 
    que caracterizam a aquisição de linguagem. O termo dá 
    vigor à hipótese saussuriana de que a língua não 
    constitui uma função do falante; ela é o produto que 
    a criança “registra passivamente”, o que impede que a aquisição 
    de linguagem seja tomada como um processo de desenvolvimento em que a língua 
    se constrói como um objeto de conhecimento. Nesta linha de reflexão, 
    a perspectiva de Lemos de certo modo inverte a relação sujeito-objeto 
    ao conceber a criança como capturada por um funcionamento lingüístico-discursivo 
    que a significa como sujeito falante. As mudanças na aquisição 
    de linguagem passam a ser identificadas a partir das diferentes posições 
    da criança em uma estrutura, ou melhor, a partir das suas diferentes 
    relações com a língua, em que o pólo dominante 
    pode ser o outro, a língua ou o próprio sujeito.  
  Lembro 
    ao leitor que ao se abandonar a perspectiva de desenvolvimento não 
    se abandona por esse fato, o compromisso com a mudança, ao contrário, 
    ela passa a ser redimensionada pela ausência de um estado final, em 
    que culminaria o desenvolvimento. Embora se possa dizer que a fala da criança 
    se aproxima daquela do adulto, não se podem excluir mudanças 
    de posição deste último na sua relação 
    com a língua. Quanto à infância, esta sim é datada, 
    e se dilui no passado do falante.  
  Maria 
    Fausta Pereira de Castro é professora no Instituto de Estudos da Linguagem 
    da Unicamp. 
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