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 Na 
    sede do Projeto Meninos e Meninas de Rua de São Bernardo do Campo (SP) 
    há um pequeno quadro pendurado numa parede. Uma moldura simples. Dentro, 
    um pedaço de papel rasgado, com manchas marrons. O pedaço de 
    papel é uma cartilha sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente. 
    As manchas marrons são sangue. “O Estatuto da Criança 
    e do Adolescente (ECA) havia nascido há pouco tempo”, explica 
    Marco Antônio da Silva, (“Marquinhos”, para todos os meninos 
    e as meninas do projeto), coordenador geral em São Bernardo do Campo 
    e Guarulhos e conselheiro do Movimento 
    Nacional Meninos e Meninas de Rua. “Havia um menino, que tinha participado 
    com a gente de todo o processo para incentivar a implementação 
    estadual do ECA. Organizamos algumas oficinas para explicar o que estava na 
    lei, sua importância, para meninos e meninas conhecerem seus direitos 
    e se defenderem na rua, na escola, da polícia. Saindo de um desses 
    encontros, o menino foi para rua. Abordado por policiais militares, foi revistado. 
    Ele mostrou para os agentes o Estatuto. Bateram a cabeça dele no chão 
    e na parede”. “Seu direito é este”, gritou um policial, 
    esfregando a cartilha no rosto ensangüentado do menino. Um ano e meio 
    depois, ele apareceu morto, boiando numa represa. Os assassinos nunca foram 
    presos.  
  
Aquele papel 
    manchado de sangue é a metáfora trágica da dificuldade, 
    no Brasil, de incorporar socialmente o respeito pelos direitos das crianças 
    e dos adolescentes. Por que é tão difícil aplicar o princípio, 
    aparentemente óbvio, de que a criança é um cidadão 
    sujeito de direito e que merece proteção integral? 
  
 De 
    “menor em situação irregular” a sujeito de direito: 
    a revolução do ECA 
  
“O 
    Estatuto da Criança 
    e do Adolescente foi aprovado no Brasil em 1990, no contexto de uma nova 
    proposta mundial que visava enquadrar crianças e adolescentes como 
    sujeitos de direito”, explica Débora Ramirez, advogada e professora 
    de direito da Universidade Metodista de Piracicaba. “Para o ECA, a criança 
    é cidadão. Até então, no Brasil, era ‘incapaz’”, 
    completa.  
  
Antes, o 
    que havia no Brasil era o Código de Menores, criado em 1927, para lidar 
    com as chamadas “crianças em situação irregular”, 
    conceito que tem uma história antiga no país. Muitas crianças 
    já nasciam “irregulares”: os que não eram de boa 
    família, que eram abandonados, que viviam na rua, os filhos ilegítimos, 
    eram “postos para fora”, abandonados, deixados nas chamadas “rodas 
    dos expostos”. A sociedade lidou historicamente com esses “irregulares” 
    de forma filantrópica (numa primeira fase, marcada principalmente pela 
    ação da Igreja Católica e pela ausência do Estado) 
    e, depois, assistencialista ou repressiva. “A legislação 
    de menores, de 1979, feita em plena ditadura militar”, explica Ramirez, 
    “encarava a questão do menor essencialmente como problema de 
    segurança nacional: meninos encontrados na rua, com roupa rasgada ou 
    sujos já eram considerados ‘irregulares’ e levados para 
    instituições de segregação, na ausência 
    total do conceito de direitos fundamentais ou de proteção integral 
    da infância”. 
  
Em 20 de 
    novembro de 1989, a Assembléia Geral das Nações Unidas, 
    aprofundando a Declaração Universal dos Direitos da Criança 
    de 1959, adotou a Convenção 
    sobre os Direitos da Criança (uma carta magna para as crianças 
    de todo o mundo). No ano seguinte, o documento foi oficializado como lei internacional. 
    Hoje, a Convenção é ratificada por praticamente 
    todos os países do mundo, excetuados Somália e Estados Unidos. 
    É o instrumento de direitos humanos mais aceito na história 
    universal e foi enriquecido por uma séria de diretrizes 
    e afirmação de “regras mínimas” mundiais. 
     
  
A Convenção 
    da ONU diz coisas simples: que a criança deve ser protegida contra 
    a discriminação e todas as formas de desprezo e exploração; 
    que os governos devem garantir a prevenção de ofensas às 
    crianças e a provisão de assistência para suas necessidades 
    básicas; que a criança não poderá ser separada 
    de seu ambiente familiar, exceto quando estiver sofrendo maus tratos ou quando 
    a família não zele pelo seu bem-estar. Diz que toda criança 
    tem direito à educação, à saúde, que será 
    protegida contra qualquer trabalho que seja nocivo à sua saúde, 
    estabelecendo para isso idades mínimas para a admissão em empregos, 
    como também horários e condições de trabalho. 
    O ECA implementou esssas diretrizes no Brasil. Não foi um processo 
    fácil.  
  
“No 
    Brasil, a questão do Estatuto”, comenta Marco da Silva “discutida 
    no final dos anos 1980, se dava dentro do âmbito mais geral do processo 
    de democratização do país, da discussão da alteração 
    do panorama legal e da criação da nova constituição”. 
    O ECA nasceu fundamentado na Constituição Cidadã de 1988 
    que, em seus artigos 227 e 228, implementando a revogação do 
    Código de Menores, afirma a criança como sujeito de direito 
    e ininputável antes dos 18 anos de idade. “O Movimento Nacional 
    Meninos e Meninas de Rua (MNMMR), junto com a Unicef, tentou mudar o panorama 
    legal para criar, por meio da participação de vários 
    setores da sociedade civil e de entidades internacionais, instrumentos para 
    regulamentar esses dois artigos da Constituição Federal. Foi 
    um processo de mobilização nacional extraordinário. Em 
    1985, surgiu o MNMMR, que em 1986 já organizava o primeiro encontro 
    nacional de meninos de rua, colocando os jovens para debater a violência, 
    família, saúde. Os documentos que saíram desses debates 
    se transformaram em uma das peças-chave que ajudaram na criação 
    do ECA”. 
  
Em 
    1989, depois da aprovação da constituição, cerca 
    de 80 meninos e meninas, vindas do país inteiro, ocuparam o Congresso 
    Nacional. Sentaram nas cadeiras do Congresso. Votaram e aprovaram simbolicamente 
    a criação do Estatuto, cobrando assim do governo uma lei que 
    mudasse a situação da criança brasileira. “A participação 
    popular neste processo foi impressionante”, lembra Ramirez. “Havia 
    encontros nacionais onde o projeto do Estatuto era explicado e discutido com 
    pessoas do país inteiro, que traziam de volta a discussão em 
    suas cidades, por meio de encontros em praças, com cartazes, desenhos 
    feitos pelas próprias crianças e adolescentes”. “Tudo 
    isso”, acrescenta Marco da Silva, “aconteceu durante o governo 
    Collor. A escritura da lei foi gerida, negociada, produzida pela atuação 
    dos movimento populares. É uma lei criada pela sociedade civil organizada, 
    não pelo governo, que só assinou, forçado pela grande 
    pressão internacional contra o extermínio de crianças 
    e pela necessidade de mostrar que o Brasil tinha interesse em respeitar as 
    convenções internacionais”.  
  
O que traz 
    o Estatuto? “Uma verdadeira mudança de paradigma”, explica 
    Silva. “O ECA”, concorda Débora Ramires, “abre a 
    fase da garantia de direitos para as crianças, que devem ser incluídas 
    e não discriminadas, tratadas como cidadãos e não como 
    ‘menores’. Sobretudo, institui mecanismos de cobrança: 
    não é só uma mudança na lei, mas um projeto para 
    mudar a sociedade. Por isso, a história dos 15 anos do ECA é 
    também uma história de 15 anos de resistência de setores 
    da sociedade à sua implementação”. 
  
Um dos elementos 
    fundamentais do Estatuto é a participação popular direta 
    na fiscalização e cobrança política: a lei diz 
    explicitamente que quem tem que atuar politicamente sobre a infância 
    não é só o Estado, mas este em conjunto com a sociedade 
    organizada. “Os Conselhos de direito são o instrumento para isso”, 
    explica Marquinhos. “Hoje, em geral, temos no Brasil quase 30 mil conselhos 
    de direitos em todas as áreas em muitas das cidades brasileiras e 4 
    mil conselhos de crianças e adolescentes. É um verdadeiro exército, 
    que tem como impacto a democracia participativa: a sociedade civil controlando 
    as políticas públicas. É um avanço revolucionário 
    numa sociedade como a nossa, historicamente acostumada com centralização 
    e autoritarismo”.  
  
Existem também 
    os Conselhos Tutelares. “No antigo Código de menores, quem decidia, 
    investigava, julgava, era o juiz, que tinha quase um poder absoluto”, 
    explica Marco da Silva. “Não tinha controle nem participação 
    da sociedade. Hoje, o juiz e a promotoria da infância são obrigados 
    a compartilhar esse poder com os Conselhos Tutelares, feitos por pessoas escolhidas 
    pela sociedade, que participam e zelam pelo direito da criança. Inúmeros 
    casos de abuso são denunciados por conselheiros tutelares corajosos 
    e engajados”.  
  
Em quinze 
    anos de estatuto a situação das crianças brasileiras 
    mudou. Nos anos 1980, quase 70 crianças morriam a cada mil nascidas 
    vivas. Hoje, são 27. O drama da exploração do trabalho 
    infantil também está começando a mudar. Há 15 
    anos atrás, de acordo com a Organização Internacional 
    do Trabalho, trabalhavam no Brasil entre 5,8 e 6 milhões de crianças. 
    Hoje, são menos de 3 milhões: uma redução de quase 
    o 50%. “O Estatuto teve um papel importante nisso”, afirma Silva, 
    “ao apontar e pensar em políticas públicas mais amplas 
    para defesa da criança”.  
  
Mas mudar 
    o panorama legal não foi suficiente. “A sociedade tem dificuldade 
    em aceitar a mudança, especialmente em relação ao ato 
    infracional”, comenta Ramirez. “Disseram que o ECA contribuiria 
    para impunidade ou para aumento da criminalidade dos menores, o que é 
    absolutamente falso”. “No Brasil, existem leis que pegam e outras 
    que não pegam”, diz Silva. “O Procon, que defende especialmente 
    interesses da classe média, e que é da mesma época do 
    ECA, funciona bem e tem alta visibilidade. Mas as leis que atingem os direitos 
    das camadas populares, tendem a não pegar”, completa.  
  
Mas 
    o ECA contribuiu para transformações importantes. “Hoje, 
    o Estatuto e o direito das crianças e dos adolescentes é tema 
    de disciplinas obrigatórias em muitas faculdades de direito”, 
    comenta Ramirez. “Hoje temos muitos atores contribuindo”, acrescenta 
    Silva. “Por exemplo, a atuação da Fundação 
    Abrinq (Associação Brasileira dos Produtores de Brinquedos) 
    foi valiosa, porque mostra, com grande visibilidade, que o setor empresarial 
    pode ser também um interlocutor importante na garantia dos direitos 
    das crianças. No setor de mídia, a Agência 
    de Notícias de Direitos da Infância (Andi), que tem atuação 
    latino-americana, monitora o que a imprensa diz sobre a questão da 
    criança e pauta grandes acontecimentos na área da defesa dos 
    direitos, tentando fornecer notícias e fontes alternativas à 
    ação de uns jornais sanguinários que vivem do medo do 
    povo, criminalizando as crianças e pregando medidas puramente repressivas 
    como a redução da idade penal. Junto com todos os atores, queremos 
    agora sair de uma abordagem puramente social do problema da infância 
    para aprofundar a dimensão política: o desafio é politizar 
    o debate, e o papel dos movimentos sociais é deixar claro quais são 
    os segmentos que defendem e implementam de verdade o Estatuto. Além 
    disso, temos que criar instrumentos que mostrem quanto os governos investem 
    na área da infância, como e em que áreas se gastam esses 
    recursos, quanto deveríamos gastar, e como, para conseguir erradicar 
    a exploração sexual, o trabalho infantil, a baixa qualidade 
    do ensino e da saúde. Queremos abrir um debate popular sobre ‘orçamento 
    criança’: que seja discutido tanto nos bares como nas ONGs, nas 
    igrejas e nas casas dos brasileiros”.  
  
Há 
    onze anos, o grito de carnaval, em São Bernardo do Campo, sai da voz 
    dos meninos e meninas de rua do bloco Eureca (Eu Reconheço o Estatuto 
    da Criança e do Adolescente). É um grito hoje conhecido e reconhecido 
    internacionalmente. O ECA não é só um pedaço de 
    papel manchado de sangue.  
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