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 É mais difícil traduzir  um pensamento para um mesmo idioma ou encontrar um substituto exato para  traduzir um termo de uma língua para outra? Tanto a tradução intra como a interlíngua  são tarefas igualmente árduas e, muitas vezes, diriam alguns linguistas, até  mesmo impossíveis de serem completadas com sucesso absoluto. "Traduttore, traditore",  diz o famoso jogo de palavras em italiano, que em português significa "Tradutor,  traidor" e exprime a ideia de que todo tradutor teria que, necessariamente,  trair o texto original para conseguir reescrevê-lo na língua desejada. 
Ainda assim, a  necessidade de tradução é evidente e imprescindível na fronteira entre idiomas e  igualmente necessária e complexa dentro de um mesmo idioma. É o que explica  José Moura Gonçalves Filho, psicanalista e professor do Instituto de Psicologia  da Universidade de São Paulo (USP): “por exemplo, numa sala de aula em que  todos falem português, o professor precisa, muitas vezes, falar e traduzir o  que ele diz de maneira que aquilo alcance o tipo de sensibilidade ou prontidão  intelectual que é própria de quem está numa condição de novato ou calouro  diante do assunto. Acontece da mesma forma na comunicação entre pais e filhos,  amigos ou amantes. E, mais ainda, com certeza, quando os parceiros estão em  lados idiomáticos diferentes”, diz. 
Segundo ele, a tarefa  de tradução é comunicar sentidos, igualmente importante tanto para o emissor  quanto para o receptor da mensagem. Isto porque a tradução tem como objetivo deixar  mais inteligível algum sentido para o outro e para a própria pessoa que se  comunica. “Na sala de aula vivo muito isso. Sinto que quando sou capaz de  traduzir, de maneira proveitosa, o que estou ensinando, não são só os alunos  que alcançam aprendizagem. Sempre sinto que eu mesmo voltei a aprender o que  estou ensinando. Então acredito que a tradução é urgente em toda comunicação”,  afirma o docente.  "A tarefa de tradução é a tarefa de comunicar sentidos e o ato de traduzir é igualmente importante, tanto para o emissor quanto para o receptor da mensagem", diz José Moura Gonçalves Filho, do IPUSP. Crédito: IPUSP 
Tal urgência pode ser  verificada, por exemplo, na relação entre profissionais do jornalismo  científico e pesquisadores. Mariluce Moura, presidente da Associação Brasileira  de Jornalismo Científico e editora da revista Pesquisa Fapesp afirma ser,  muitas vezes, necessário fazer com que os cientistas entendam que a linguagem  científica é perfeita e adequada para a comunicação interpares, mas não  comunica nada em outras instâncias. “É preciso convencê-los de que só podemos  fazer bem nosso trabalho de divulgadores e jornalistas traindo sua linguagem,”  afirma a jornalista. 
Para ela, não há dúvida  que existem áreas mais difíceis do que outras para serem narradas em linguagem  jornalística, ainda que isso possa estar, em grande parte, relacionado às  preferências e ao próprio perfil do jornalista. “Todo o conhecimento com  altíssimo grau de abstração parece-me muito mais difícil e, às vezes,  francamente, impossível de ser narrado. Em particular, acho quase impossível  relatar jornalisticamente avanços ou revisões da matemática, uma linguagem que  resiste duramente às abordagens da linguagem jornalística, tão diversa”, diz. 
Traduzindo  conceitos científicos 
Como exemplo da  dificuldade de tradução de conceitos centrais da psicanálise, o professor do USP  lembra as palavras em alemão usadas pelo psicanalista Sigmund Freud (1856-1939)  para descrever o funcionamento do inconsciente – ich, es e Über-ich. Elas são comumente traduzidas  em português para ego, id e superego,  mas há controvérsias. Na tradução das obras  completas de Freud, publicada pela Companhia das Letras, o tradutor, Paulo  César de Souza, volta a usar a palavra “eu” (ao invés da popular “ego”) como  correspondente de “ich”. 
Gonçalves Filho explica  que Freud usou o termo “ich” para apoiar um conceito que nasceu de muita  reflexão sobre a prática e a linguagem e que foi retirado da fala comum, apesar  de ter assumido, desde cedo, a figura de um conceito, e não simplesmente da  palavra “eu” empregada com um sentido trivial. “Para chamar a atenção sobre este  caráter propriamente conceitual, os tradutores, muitas vezes, reoptaram por um  termo raro, do latim, como tentativa de acentuar que o uso do termo feito pelo  Freud não é óbvio e sim conceitual”, explica. Ainda assim, ele avalia que,  quando Freud empregou um termo coloquial em alemão, pretendia justamente  suscitar uma conversa, ainda que difícil, com o homem comum. “Ele queria que o  seu leitor soubesse que o que ele diz corresponde àquilo que todos chamamos de  ‘eu’. Acontece que, uma vez feita a tradução, a leitura em português do Freud  esbarra em termos que são do latim e gera um tipo de experiência que não é propriamente  aquela, me parece, que o leitor alemão pode ter ao ler o mesmo texto do autor –  que é de sentir esta profunda proximidade entre o Freud e o homem comum e, ao  mesmo tempo, uma distância. A gente fica sem sentir esse jogo e, às vezes, me  parece que isso faz falta”, pondera o psicanalista. 
A tradução das palavras labour, work, e action na obra A condição humana, de Hannah Arendt, é  outro exemplo ilustrativo da complexidade e variedade de sentidos que uma  tradução cuidadosa deve levar em consideração – tais termos diferem  etimologicamente, ou seja, em sua origem e na maneira como foram se formando ao  longo da história. Na primeira vez que a obra foi traduzida para o português  foram escolhidos os termos “labor”, “trabalho” e “ação”. Mais tarde, outros  tradutores se posicionaram diferentemente e indicaram “trabalho” para labour; “obra” ou “fabricação” para work; e “ação” para action.  Gonçalves Filho  esclarece que o termo work, usado  pela filósofa política alemã, é um tipo de atividade que sempre deixa como  resultado um objeto duradouro – algo utilitário ou uma obra de arte. Mas diz  que, em português, lhe parece que o termo “trabalho” é geralmente praticado ou  percebido nos termos de uma atividade que deixa obra, como o termo work de Hannah Arendt. “Nós falamos  ‘entreguei meu trabalho’, ‘o trabalho de Guimarães Rosa’ etc...”, diz. E  acrescenta: “veja só a dificuldade da tarefa do tradutor”. 
Questões igualmente complicadas  surgem quando um pesquisador brasileiro precisa escrever a versão de seu artigo  em inglês. Carmen Dayrell, professora de linguística da USP e responsável por  cursos de redação científica no Espaço da Escrita,  da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), dá um exemplo ilustrativo: nos  artigos científicos a língua inglesa dá prioridade ao uso da voz ativa, mesmo  com o uso do pronome de primeira pessoa do singular ou do plural – I ou we,  muito comum nas áreas de ciências humanas. O português, entretanto, prioriza a  voz passiva, e ela diz ser possível constatar claramente uma resistência dos  brasileiros em usar o pronome de primeira pessoa – “tendemos a colocar tudo na  passiva e, no inglês, seria mais efetivo, para o sucesso da comunicação, se  posicionar diante de um fato ou de seus achados e resultados de pesquisa, na  voz ativa”. Na voz ativa o autor aparece e se posiciona através do uso do I. Já na voz passiva, forma preferida  pela comunidade científica brasileira, o sujeito some, porque o importante é o  que foi feito, o resultado. Mas Carmen adverte que “isso pode ser até visto pelos  nativos de língua inglesa como uma forma de insegurança do pesquisador: por que  ele não se posiciona usando o I, será  que não tem muita segurança do que está dizendo?”. Ela acrescenta que é  importante que o pesquisador esteja atento às preferências da comunidade  discursiva falante da língua na qual ele quer publicar. 
Traduzindo  artigos científicos 
A revista brasileira Clinics, publicação da área médica, só aceita artigos já  apresentados em inglês e dois terços dos trabalhos publicados são brasileiros –  a China está em segundo lugar e a Turquia em terceiro. A revista manda todos os  textos selecionados para um serviço de revisão terceirizado – a empresa  americana American  Journal Experts, que tem o Brasil como o seu segundo maior cliente,  “por incrível que pareça”, como diz Maurício da Rocha e Silva. 
O editor da publicação e professor da Faculdade de Medicina da USP revela  que o  preço pago pelo serviço é o item individual mais caro nas contas da revista:  são aproximadamente 250 dólares por artigo. “Publicamos uma média de 200 a 300  artigos por ano, então é só fazer a conta de quanto gastamos – é caro, mas  acreditamos que este dinheiro é muito bem empregado, pois, se o artigo estiver  mal escrito, ninguém lê”, afirma Rocha e Silva, que também ministra cursos de  redação científica. No curso ele usa exemplos práticos: mostra, por exemplo, como  um título ruim pode ser melhorado. “Títulos curtos e que descrevem o resultado,  ao invés de métodos, são mais lidos”, diz, citando os resultados de uma pesquisa publicada na própria Clinics. 
Como  Rocha e Silva, Gilson Volpato, docente do  Instituto de Biociências de Botucatu da  Universidade Estadual de São Paulo (Unesp) e criador do “Método lógico  para redação científica”, identifica a  necessidade de trabalhar com os alunos a coerência interna do texto e o  encadeamento lógico entre as partes que compõe a escrita científica (objetivo,  método, resultado, discussão e conclusão). Entretanto, ele acredita que a pressão que a área científica  exerce sobre a qualidade das publicações se mostra um fator importante. “As áreas  onde temos que publicar em revistas de alto nível forçam o cientista a aprender  a construir um discurso mais lógico e sólido, expressando-o de forma clara,  concisa e objetiva. Contudo, naquelas áreas que aceitam publicações em revistas  regionais, os discursos aparecem com mais equívocos, muitos deles refletindo  nossos vícios culturais de construção de pensamento e discurso”, afirma  Volpato. 
Ao que parece, a tradução de conceitos científicos é chave não apenas para a formação científica, como também para a  internacionalização das pesquisas. Portanto, investir na preparação de estudantes para o aprendizado de outras línguas e, sobretudo, para a capacidade de fazer leituras  críticas se mostra estratégica dentro das políticas de ciência e tecnologia. 
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