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                            10/03/2013
                             A liberdade perpassa todas as  esferas da vida pública e privada. Da consciência e do agir individual à ação  de cidadania, ela toma diversas facetas que vão desde fonte de insegurança a ideal  utópico, com tênues limites entre a liberdade do indivíduo e a do outro, que traz  sempre consigo seus ônus quanto e bônus. Nesta entrevista, o filósofo Renato  Janine Ribeiro, professor titular de ética e filosofia política na Universidade  de São Paulo (USP), mestre em filosofia pela Universidade Paris 1 (Sorbonne) e  doutor em filosofia pela Universidade de São Paulo, traça um panorama dessa  abrangente questão. Ele dedica suas pesquisas à análise de temas como filosofia  política, natureza teatral da representação política, dificuldades na  construção da democracia e cultura política brasileira.  
O senhor diz que, na política, vivemos hoje um paradoxo  fundamental: se por um lado nunca houve tantas liberdades democráticas no  mundo, por outro lado, toda a escolha eleitoral está hipotecada pela economia. Podemos dizer que à medida em que aumentam as  liberdades, aumentam também as exclusões? 
Renato Janine Ribeiro – Não necessariamente.  Por exemplo, o aumento de liberdade pessoal e política, que são as melhores  características das últimas décadas, não veio junto com um aumento de exclusão nesses  campos. Penso que a exclusão aumenta mais no que diz respeito ao consumo e em  especial àquilo que não pode ter acesso universal. Quando, por exemplo, surge  uma inovação tecnológica, ela custa caro e somente alguns a tem. Mas o incrível  na tecnologia é que geralmente ela se barateia e se amplia; há inovações  altamente positivas que vão se generalizando. Contudo, há aquele acesso que,  por sua própria natureza, não pode ser universal. Nos museus, por exemplo, não  cabe a humanidade inteira. Então, precisaremos ter critérios de acesso – que  não precisam ser apenas econômicos.  
O senhor comenta que  a dimensão pública da liberdade é vista mais como um ônus do que como o espaço  da verdadeira liberdade coletiva de escolha. Por quê? 
Ribeiro – Porque estamos  ainda aprendendo a ser livres politicamente. Basta ver como, em nosso país, um  lado político demoniza o outro. Aceitar que a divergência é legítima, e não a  expressão da desonestidade, é muito difícil. Aprenderemos, espero. 
Como concatenar a liberdade do indivíduo e a liberdade do cidadão nas  decisões públicas? 
Ribeiro – Se você quer dizer a liberdade privada e a  pública, elas são bem diferentes mesmo. A liberdade do indivíduo consiste em  estar obrigado a poucas coisas, basicamente aquilo que a lei prescreve. Já a  liberdade do cidadão inclui a obrigação ética de construir a casa comum da  humanidade. Dou um exemplo. Em São Paulo, logo após a Constituição democrática  de 1988, os ônibus passaram a levar um dístico, que era “Transporte público,  dever do Estado, direito do cidadão”. O espírito disso era ótimo. Mas, na  verdade, mantinha a ideia de que o Estado é alheio aos cidadãos, quando (na  verdade) um Estado democrático só pode ser construído pelos próprios cidadãos.  O Estado não pode ser um provedor. Ele não tem existência própria. Se a tiver,  acabou a democracia!  Agora, somando a  justa reação a séculos de autoritarismo, que nos leva a desconfiar do Estado,  com o paraíso consumista, que nos leva a projetos essencialmente hedonistas,  fica bem difícil o cidadão assumir que cidadania não é só um desfrute, é uma  série de ônus, de deveres em relação ao outro, à sociedade e, por que não  dizê-lo, a si mesmo.   
O senhor escreveu  certa vez que nem toda liberdade inclui uma liberdade de não fazer nada.  Poderia explicar melhor essa ideia?  
Ribeiro – Liberdade implica vários ônus. Por exemplo, há  hoje um grande erro sobre o que é cidadania. Muitos pensam que é só ter direitos.  Mas é também ter o compromisso de respeitar os direitos dos outros e,  sobretudo, o de construir um mundo melhor, mais livre, em que todos tenham  condições de florescer. Então, será que eu tenho o direito de não fazer nada?  Não sei. Para os gregos e romanos, era impensável que, na “nau do Estado” (uma  imagem que eles usavam para as sociedades livres), houvesse pessoas que não  fossem tripulantes, que apenas pagassem a passagem, na expressão do historiador  Paul Veyne. Para nós, é possível só pagar a passagem – por exemplo, os  impostos. Mas será mesmo correto isso? Será que um problema grande que temos  hoje não é, justamente, a indiferença diante da construção de um mundo melhor?  Penso que a ética não é apenas não fazer o mal; ela é um empenho em dar o melhor  de si, ou pelo menos em fazer que nosso convívio melhore em relação ao que era  antes. O  grande problema é que a sociedade tende a conceber a liberdade, e os direitos  em geral, a partir do paradigma do consumo. Posso comprar ou não um carro, por  exemplo; então, posso votar ou não, posso me empenhar ou não numa ação social;  mas é a mesma coisa? Não.  
A liberdade é apenas  um ideal?  
Ribeiro – Não posso falar  pela ciência política, mas na minha área, que é a da filosofia política, lidar  com ideais não é nada ruim. Mesmo o que é utópico (no sentido de irrealizável)  contribui para forçar a realidade a melhorar.  
A liberdade é um  fator de insegurança para o homem? 
Ribeiro – É meio inevitável isso. Liberdade é escolha.  Significa que passamos a ter mais opções – isto é, temos que aprender a  renunciar. Liberdade não é só ganhar. É aprender a perder. Quando escolho um  amor, abro mão de todos os outros. Numa época em que o consumo reina, aceitar  que você renuncie a objetos de desejo não é nada fácil. De certa forma,  consumismo e liberdade assim se opõem, porque a realização da liberdade é  justamente a renúncia a objetos de consumo. Isso embora o desejo de objetos de  consumo melhores seja um ingrediente fortíssimo para a reivindicação de mais  direitos. Já dizia McLuhan que, de verem os filmes de Hollywood, povos do  Terceiro Mundo começavam a exigir mais do que recebiam. Tratei disso num artigo  meu, “A inveja do tênis”, em que sustento que a desigualdade, quando tem  pretextos morais, é mais tenaz e resistente do que quando ela se reduz ao  consumo: não há argumento que justifique você ter luxo e eu, não.  
Qual a relação entre  liberdade e responsabilidade? O senhor comentou que nos aproximamos da  inquietante ideia de uma responsabilidade que não é o reverso, a consequência  da liberdade, mas a causa da responsabilidade.  Como seria isso? 
Ribeiro – Não sei se é inquietante... O fato é  que muitas de nossas características principais não foram escolhidas por nós.  Não escolhi meu sexo, a classe social ou o país em que nasci, minha orientação  sexual. Mas parto deles. Posso fazer muito, a partir deles, mas não posso  ignorá-los. Da mesma forma, tenho que responder por ações que pratiquei, mesmo  que não as tenha escolhido a partir de um vazio completo. É esta a questão:  ninguém começa do nada. Mas é a partir de uma identidade, por vezes  contraditória, que nos foi dada, que podemos elaborar nossa liberdade. Por isso  é tão importante superar os próprios limites, ser capaz de se autocriticar,  tentar ver se não estamos errando. Isso exige ser responsável pelo quadro  mental em que entramos no mundo. Só assim podemos mudá-lo. E o tempo atual  torna rapidamente obsoletos muitos quadros mentais, de modo que mudar se torna  quase um imperativo. 
A liberdade de escolha acaba  sendo delimitada, então, fortemente pelos padrões culturais? 
Ribeiro – Certamente. É difícil superar os limites de sua  cultura. Mas é importante tentar, pelo menos. Se ficarmos confinados em nossos  limites, os homens não aceitarão os direitos das mulheres; os brancos, os dos  negros; os heterossexuais, os dos homossexuais. Na verdade, nem compreenderemos  como são os diferentes de nós. 
 
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