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 Crianças 
    e adolescentes são mais vítimas do que responsáveis por 
    violência. Em São Paulo, por exemplo, levantamento feito em 2003, 
    pela Secretaria de Segurança Pública, mostrou que 3% dos homicídios 
    dolosos e menos de 10% dos atos criminosos registrados no estado foram cometidos 
    por menores. Já o número de crianças e adolescentes assassinados 
    no Brasil, segundo dados do IBGE de 2002, é de 9,15 para cada 100 mil, 
    o que corresponde à cerca de 16 homicídios por dia de pessoas 
    situadas na faixa dos 0 aos 18 anos. Apesar disso, a violência cometida 
    por crianças e adolescentes parece preocupar mais a sociedade brasileira 
    do que a violência por eles sofrida. 
  
Para 
    a advogada Karyna Sposato, diretora-executiva do Instituto Latino-Americano 
    das Nações Unidas para Prevenção do Delito e Tratamento 
    do Delinqüente (Ilanud), o mito que se criou em relação 
    à periculosidade e alta freqüência da violência praticada 
    por menores se deve à sensação de insegurança 
    e ao “discurso do medo” que prevalece na sociedade. Segundo ela, 
    os meios de comunicação repercutem os crimes mais graves – 
    sobretudo quando cometidos por menores – de um modo muito mais intenso 
    do que eles acontecem na realidade e, assim, contribuem decisivamente na construção 
    desse discurso do medo. Nesse contexto, em que a sociedade se sente ameaçada, 
    o aumento da repressão é considerado como solução 
    ideal para o problema. Pesquisa publicada no ano passado pelo Datafolha, por 
    exemplo, revelou que 84% dos entrevistados se posicionaram a favor da redução 
    da maioridade penal, isto é, da idade mínima (atualmente de 
    18 anos) em que a pessoa pode responder criminalmente por seus atos. 
  
De 
    acordo com a diretora do Ilanud, a partir de uma pesquisa feita pela instituição, 
    a maioria das pessoas que se diziam a favor da diminuição da 
    idade penal justifica sua posição argumentando que os jovens 
    devem ser responsabilizados pelos atos que cometem. “Há um problema 
    de interpretação da lei, já que as pessoas acreditam 
    que o Estatuto da Criança e do Adolescente 
    (ECA)  não prevê responsabilização 
    dos menores”, explica. Por outro lado, a advogada acredita que o sentimento 
    de impunidade presente na sociedade também se deva à falta de 
    implementação efetiva do ECA, o que impede a aplicação 
    mais eficiente das medidas e programas sócio-educativos previstos na 
    lei para os menores infratores. 
  
Propostas 
    de redução da idade penal 
  
Com 
    o resultado do referendo sobre a lei do desarmamento, ocorrido em 23 de outubro, 
    no qual 64% da população brasileira foi contra a proibição 
    da venda de armas de fogo e munição, parlamentares ligados à 
    Frente pelo Direito da Legítima Defesa (que liderou a campanha contra 
    a proibição) elegeram entre suas próximas ações 
    prioritárias a proposição de uma consulta popular sobre 
    a redução da idade penal. O deputado Luiz Antônio Fleury 
    Filho (PTB-SP), vice-presidente da Frente, que propôs a realização 
    de um plebiscito sobre o tema, em uma proposta de emenda à Constituição 
    de sua autoria. 
  
Segundo 
    o sociólogo Marcelo Campos, da Universidade Estadual Paulista (Unesp 
    - campus de Marília-SP), entre 1993 e 2004 foram apresentadas ao Congresso 
    Nacional 21 propostas de emenda à Constituição sobre 
    a redução da maioridade penal, incluindo a do deputado Fleury. 
    A idade mínima sugerida em duas dessas propostas é 14 anos, 
    mas a maioria delas indica os 16 anos. De acordo com Campos, além do 
    argumento da “impunidade” em relação aos menores 
    infratores, uma justificativa usada com bastante freqüência nessas 
    propostas é a de que o desenvolvimento mental de um jovem que vive 
    hoje é superior ao daquele que vivia em 1940, quando foi criado o Código 
    Penal brasileiro. Por isso, argumentam os propositores dos projetos, os jovens 
    atualmente atingem a maturidade mais cedo e, assim, poderiam responder criminalmente 
    pelos atos que cometem antes dos 18 anos. 
  
Karyna 
    Sposato, do Ilanud, no entanto, discorda de tal justificativa. “É 
    uma opção de política criminal não aplicar a mesma 
    estratégia penitenciária que se utiliza em um adulto para alguém 
    que está em formação”, afirma. Esta também 
    é a opinião da psicóloga e socióloga Irene Rizzini, 
    professora da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro 
    (PUC-Rio) e diretora do Centro Internacional de Estudos e Pesquisas sobre 
    a Infância (Ciespi). “É uma violência encarcerar 
    crianças e adolescentes que estão em formação, 
    sobretudo considerando as instituições que existem”, diz 
    a pesquisadora. “Tentar solucionar o problema da violência com 
    violência nada resolve: o que se produz nessas instituições 
    é uma população ainda mais violenta”, complementa. 
  
As 
    propostas sobre diminuição da idade penal estão tramitando 
    em conjunto na Comissão de Constituição e Justiça, 
    que deverá julgar a constitucionalidade da matéria. Para o juiz 
    Sérgio Mazina, vice-presidente do Instituto Brasileiro de Ciências 
    Criminais (Ibccrim), todas as propostas existentes são inconstitucionais, 
    pois imputabilidade a menores de 18 anos é um direito individual que 
    se configura como cláusula pétrea e, portanto, não passível 
    de ser alterada enquanto a atual Constituição brasileira estiver 
    vigente. Além disso, para Mazina, adotar a repressão como modelo 
    para tratar os menores infratores, é uma alternativa ineficaz. “Acreditar 
    que a privação da liberdade solucionará o problema da 
    violência é tão equivocado quanto achar que o aumento 
    no número de hospitalizações diminuirá o número 
    de doenças; ao contrário, o que acontece é que só 
    aumentam as infecções hospitalares”, compara o juiz. 
  
Prevenção 
    como alternativa à repressão 
  
“Reduzir 
    a maioridade penal seria abrir mão de qualquer ideal ressocializador 
    e optar por criminalizar a pobreza de uma forma bastante expressa, porque 
    se trata de jovens, em sua maioria, excluídos socialmente”, argumenta 
    Karyna Sposato, do Ilanud. “A maioria dos menores infratores, além 
    de proveniente de famílias emprobrecidas, tem uma trajetória 
    de vida muitas vezes marcada pela violação de direitos: não 
    passou pela escola ou teve experiências traumáticas nela, foi 
    vítima de violência doméstica, foi explorada em termos 
    de trabalho ou sexualmente”, lembra a advogada. 
  
A 
    análise das trajetórias de vida de crianças e adolescentes 
    em situação de marginalidade, pobreza e violência é 
    justamente uma das linhas de pesquisa do Ciespi, coordenado por Irene Rizzini. 
    Ela explica que, a partir dos relatos dessas crianças e adolescentes, 
    busca-se reconstruir a história deles e identificar fatos marcantes 
    que contribuíram para sua maior vulnerabilidade à violência. 
    Segundo a pesquisadora, tal vulnerabilidade está associada tanto a 
    questões estruturais (como falta de instituições e programas 
    de proteção e educação adequados) quanto a aspectos 
    referentes aos relacionamentos inter-pessoais, como a ausência dos chamados 
    “elos significativos”, isto é, laços que se estabelecem 
    com outras pessoas (familiares ou não) e que permitem construir a sensação 
    de pertencimento a uma comunidade. 
  
Nota-se, 
    assim, que há uma rede de fatores de risco relacionados a aspectos 
    sociais, familiares e individuais (como exclusão social, desagregação 
    familiar e falta de perspectivas futuras) que ajudam a entender tanto a violência 
    cometida como a sofrida por crianças e adolescentes. Minimizar esses 
    fatores de risco e, ao mesmo tempo, aumentar a capacidade dos menores de 18 
    anos para enfrentá-los, faz parte de um modelo de combate à 
    violência baseado na prevenção e não na repressão, 
    como ocorre com as propostas de redução da maioridade penal. 
  
Segundo 
    a médica Simone Assis, pesquisadora do Centro Latino-Americano de Estudos 
    da Violência e Saúde (Claves), da Fundação Oswaldo 
    Cruz (Fiocruz), a eficácia de programas de prevenção, 
    em comparação aos de repressão e privação 
    de liberdade, é bem ilustrado por um estudo 
    publicado em 2001 pelo Departamento de Saúde dos Estados Unidos. Além 
    dos benefícios sociais, a pesquisa mostrou que para cada dólar 
    investido em um programa de prevenção, voltado a jovens infratores 
    e suas famílias, o governo economizou 14 dólares em gastos futuros 
    com justiça criminal, mesmo tratando-se de um programa com custo elevado 
    (US$ 4,5 mil anuais por jovem infrator). Apesar de análises como essa 
    evidenciarem o sucesso dos programas de prevenção, a médica 
    destaca que os Estados Unidos priorizam muito mais investimentos em estratégias 
    de policiamento e instituições de privação da 
    liberdade, fato que, segundo ela, também se repete no Brasil. 
  
De 
    acordo com a pesquisadora do Claves, a análise dos programas de prevenção 
    revela que os mais eficientes na redução das infrações 
    são aqueles que atuam sobre vários fatores de risco e que se 
    iniciam desde a infância, abrangendo não só a criança, 
    mas toda sua família. Programas que envolvem a escola também 
    se mostram bem-sucedidos. 
  
Para 
    Irene Rizzini, do Ciesp, a prevenção da violência, cometida 
    ou sofrida por crianças e adolescentes, deve conjugar tanto o fortalecimento 
    dos seus elos significativos como a existência de intervenções 
    estruturais que visem a melhoria nas condições de vida da família, 
    criando-se uma política multissetorial, e não meramente assistencialista, 
    como comumente se faz. “O estabelecimento de elos significativos está 
    intimamente ligado a políticas de médio e longo prazo que possibilitem 
    condições básicas e dignas para a população”, 
    defende. “Sem isso, é muito difícil resolver o problema, 
    pois o enfrentamento da violência fica exclusivamente na mão 
    do indivíduo desamparado, crescendo à margem da sociedade e 
    em contextos violentos”, afirma a pesquisadora. 
  
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