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                             Ao 
    entrar em uma sala de aula com crianças de cinco anos, carregando um 
    livro de contos de fadas, um professor carrega mais que um livro. Mais que 
    um simples conto. Quando o professor é um bom contador de histórias, 
    o olhar daquelas crianças fica fixo, mas a mente voa.  
  Como 
    esses contos tornaram-se clássicos, se a narrativa acontece em palácios 
    ou florestas e isso é tão distante da maioria das crianças, 
    visto que não é comum encontrar palácios na cidade de 
    São Paulo? E, apesar de existirem poucas florestas na nossa cidade, 
    os jovens dão um jeito de se embrenhar em matas desconhecidas apesar 
    do aviso de perigo dos pais. 
  Os 
    contos trazem conflitos pertinentes à vivência humana que permeiam 
    diversas gerações. Eles trabalham com o conteúdo humano, 
    com aquilo que muitas vezes fica escondido como a rivalidade fraterna, sensações 
    edípicas, desejar a “morte” do pai do mesmo sexo... Desta 
    forma, o conto de fada irá mostrar às crianças, de uma 
    maneira subjetiva e em alguns pontos objetivamente, que a vida trará 
    algumas dificuldades. A luta e a descoberta não acontecem da noite 
    para o dia. O herói ou a heroína passam por diversas provas 
    e essas devem ser realizadas por eles mesmos: “A única forma 
    de nos tornamos nós mesmos é através de nossas próprias 
    realizações”. (Bettelheim, 1980:173). 
  A 
    sociedade atual, globalizada, está cada vez mais tornando-se individualista 
    e em busca de uma beleza externa perfeita, enquanto o mágico se esvai 
    prematuramente.  
  Todos 
    os dias há notícias de violência na televisão, 
    seja filho matando os pais ou pais descontrolados espancando seus filhos. 
  Há 
    também muitos programas que expõem a criança a uma sexualidade 
    precoce. Seja programa infantil, novela ou “reality shows”. 
    Uma reportagem da revista Educação, mostra-nos que 
    os partos cresceram em 31% entre meninas de 10 a 14 anos – idade que 
    a menina não tem maturidade psicológica, principalmente para 
    criar um filho. As dúvidas e as angústias por que passam, crianças 
    e jovens, são hoje respondidas de forma erotizada pelos meios de comunicação, 
    especialmente a televisão. Sem contar o fácil acesso a sites 
    da internet. 
  O 
    resgate da magia da leitura dos contos de fadas não será a solução 
    dos problemas mundiais, no entanto, como eles atuam também no inconsciente, 
    podem ajudar muito a criança a eliminar/entender o(s) conflito(s) pelo 
    qual está passando no momento que entra em contato com a leitura e/ou 
    a escuta deles.  
  Existem 
    diversas interpretações e análises para os contos de 
    fada. É importante ressaltar que este artigo tem como respaldo a linha 
    psicanalítica, levando em conta as teorias de Sigmund Freud e Jacques 
    Lacan. Além disso, a escolha dos contos de fadas para a leitura foi 
    cuidadosa, no sentido de procurar as traduções mais próximas 
    das edições originais.  
   
    “Não é surpreendente descobrir que a psicanálise 
    confirma nosso reconhecimento do lugar importante que os contos de fadas populares 
    alcançaram na vida mental de nossos filhos. Em algumas pessoas, a rememoração 
    de seus contos de fadas favoritos ocupa o lugar das lembranças de sua 
    própria infância; elas transformaram esses contos em lembranças 
    encobridoras”. (Freud, 1913:355). 
  Os 
    contos surgem a partir dos mitos e tradições orais, alguns datados 
    do século II d.C.. Eles sofreram e sofrem modificações 
    em sua estrutura, não apenas por razões externas, mas também 
    por razões internas ao do próprio contador. Nas versões 
    escritas por Perrault, por exemplo, ele acrescenta preceitos morais, já 
    que esses contos eram usados para a diversão na corte de Versalhes. 
     
  Nos 
    dias atuais, essas alterações também ocorrem acarretando 
    muitas vezes uma modificação no enredo da história para 
    parecer menos “chocante” aos olhos da sociedade. Os autores dessas 
    mudanças acreditam que a perversidade existente nos contos podem influenciar 
    as crianças de forma a estas tornarem-se “violentas”, no 
    entanto, parece não querer ver que os conflitos existentes nos contos 
    são os conflitos internos pelos quais as crianças passam. 
  As 
    histórias dos contos de fadas, independente do local de origem, passam-se 
    em lugar e épocas inexistentes (“país muito longe”, 
    “numa floresta encantada”, “há muitos e muitos anos”...). 
    Esta é uma das razões da fácil migração 
    e entendimento em várias culturas e por várias idades, já 
    que os contos tratam de conflitos que permeiam toda a base humana universal. 
    Ou seja, os contos são atemporais, assim como o Id. 
  Os 
    principais autores e adaptadores de contos de fada são Charles Perrault 
    (França), Hans Christian Andersen (Dinamarca) e Jakob e Wilhelm Grimm 
    (Alemanha) – estes últimos mais conhecidos como “Os irmãos 
    Grimm”. 
  Mas, 
    afinal, qual a relação entre contos de fadas e a subjetividade 
    infantil? Quais os conteúdos presentes em um conto que possibilitam 
    a uma criança elaborar seus conflitos? É impossível detalhar 
    cada trecho e cada passagem de todos os contos, não apenas pelo número 
    volumoso de contos, mas principalmente porque cada conto tem uma importância 
    diferente para cada criança em períodos diferentes de sua vida. 
  Como 
    se constitui um sujeito? Quais os conflitos que vive? Lacan, apropriando-se 
    de Freud, nos oferece referenciais partindo do Estádio do Espelho. 
    Este Estádio, descrito por Lacan, começa aproximadamente aos 
    seis meses de idade. É através dele que a criança começa 
    a conquistar sua imagem corporal, através do discurso e do desejo do 
    outro (mãe). 
  De 
    que forma os contos de fadas expressam esse momento e seus conflitos? Como 
    ilustração podemos citar o conto: O patinho feio. Nesta 
    história de Andersen, uma pata choca seus ovos e quando estes se quebram 
    um sai diferente de todos os outros. Feio. Apesar de nadar muito bem, o patinho 
    é desprezado pelos seus irmãos, pela comunidade dos patos e 
    por sua mãe que diz: “Eu queria ver você bem longe 
    daqui!” (Andersen, 1995:110).  
  O 
    patinho começa a achar que ele é realmente muito feio, então 
    foge. Durante sua viagem passa por dificuldades e seus infortúnios 
    são responsabilizados pela sua feiúra. Até que em um 
    momento, ele vê os cisnes e vai ao encontro desses, mesmo correndo o 
    risco de levar bicadas. Chegando lá: 
  “(...) 
    O pobrezinho abaixou a cabeça, olhando para a água, e esperou. 
    Mas que foi que ele viu na água límpida? Por baixo de si, viu 
    sua própria imagem; só que sua imagem não era mais de 
    um desajeitado pássaro cinza-escuro, feio e repelente. Ele era um cisne!” 
    (Andersen, 1995:118).  
  O 
    patinho, na verdade um cisne, já havia nadado antes em outros lagos. 
    Porém, olhava-se através do olhar do outro, assujeitado ao desejo 
    e olhar do outro – principalmente daquela que exerce a função 
    materna. Saindo para o mundo, crescendo, quando volta a olhar sua imagem ele 
    já vê um lindo cisne branco e não apenas um pato cinza 
    feio – saída dessa assujeitação. É nesse 
    Estádio que a criança começa aos poucos perceber que 
    seu corpo, até então sentido como fragmentado, é algo 
    único. É através dessa experiência, com a mediação 
    do outro-mãe (mãe, enquanto função materna), que 
    a criança começa estruturar seu eu e a conquistar a sua imagem 
    corporal.  
  Essas 
    identificações que as crianças fazem com os contos são 
    facilitadas pela não especificidade de tempo e local. A identificação 
    com os personagens é facilitada pela ausência de nome próprio. 
    Normalmente o nome é relacionado às características físicas, 
    como por exemplo, Branca de Neve e Cinderela ou Gata Borralheira (o nome origina 
    de cinders, que significa borralho), um dos únicos nomes próprios 
    que aparece é João – freqüente em muitas histórias 
    – e Maria). Nos contos, a idade das princesas, reis, rainhas, bruxas, 
    príncipes, etc. não é definida sendo possível 
    transitar por todos os personagens em momentos diferentes de nossa vida.  
  No 
    conto há o personagem malvado, que geralmente é nominado e aparece 
    sob a descrição da madrasta da “Branca de Neve”, 
    a bruxa da casa de chocolates de “João e Maria” e o gigante 
    que mora nas nuvens na história “João e o pé de 
    feijão”. Ou seja, a maldade pode estar presente em todos nós. 
    Nos contos, os personagens não têm ambivalência: ou são 
    bons ou são maus – da mesma maneira que a criança pensa: 
    a mãe má não pode ser a mãe boa. 
  Na 
    atualidade, muitos contos aparecem de forma distorcida do original. Um grande 
    exemplo disso, são os desenhos animados de Walt Disney, que subtraem 
    passagens consideradas mais fortes com o objetivo de não assustar ou 
    chocar as crianças, “evitando” o conflito. Não podemos 
    generalizar, algumas histórias de Disney merecem a devida atenção 
    como O rei leão e a mais nova animação, Procurando 
    Nemo. No entanto, quanto à adaptação de contos de 
    fadas clássicos, estes aparecem distorcidos e amenizados. 
  Os 
    contos no original podem chocar alguns adultos, é “assustador” 
    um lobo que come uma menina (Chapeuzinho vermelho) ou uma sereia 
    que arranca sua própria língua em busca do amor de um humano 
    (A Sereiazinha) ou um rapaz que procurando o medo retira sete enforcados 
    da forca para aquecê-los (O homem que saiu em busca do medo). 
    Muitos adultos olham as crianças sob a lógica do adulto e não 
    sob a fantasia da criança. 
  Quando 
    pequena, a criança pode ser bem agressiva: bater no irmão, não 
    sair de perto da mãe, morder o colega da escola... a medida que cresce 
    e começa a socialização a criança fala, ao invés 
    de agir – simbolizando. E o conto é exatamente a escrita de uma 
    simbolização, de um mundo onde a criança pode extravasar 
    seus anseios, medos e necessidades. 
  Escondendo 
    a dor, a perda, a violência dos contos, esconde-se o que há de 
    mais verdadeiro nessas histórias. O conto não deve ser só 
    feito de imagens boas, pois não deve ser uma fuga para as crianças 
    se esconderem em um mundo de faz de conta. Mas, conter as passagens de medo, 
    angústia, vingança como um meio da criança simbolizar 
    seus próprios conflitos. 
  O 
    enredo dos contos de fada também reproduz as histórias de vida 
    das crianças, pois nele o herói sai de casa, passa por privações, 
    enfrenta perigos e conhece a maldade, triunfando no final da história. 
    Na vida, a criança passa por estas modificações: precisa 
    sair de casa. Desligar-se dos pais. Ir para escola, fazer amigos, saber evitar 
    situações de risco, explorar o mundo a sua volta.  
  A 
    criança tem relação de total indistinção 
    com a mãe nos primeiros meses de vida. A criança é o 
    desejo da mãe. Essa quebra se dá com a interdição 
    ao incesto que a função paterna realiza. A partir desse momento 
    a criança, volta-se para a cultura. Para o Outro. E o conto de fadas 
    entra como este Outro, pois também pode ajudar na separação 
    dessa relação mãe-criança. Isso acontece pois, 
    de maneira simbólica, o conto atua no psíquico da criança. 
  Podemos 
    tomar como exemplo o conto de Andersen, A Polegarzinha. Nesta história, 
    uma mulher deseja muito ter um filho, então pede ajuda a uma feiticeira 
    que lhe dá um grão de cevada - semente. A partir do beijo da 
    mãe, a flor se abre e nasce a filha, como é muito pequena, recebe 
    o nome de Polegarzinha. Um dia, enquanto está dormindo, uma sapa a 
    seqüestra para casar-se com o filho sapão. No entanto, a menina 
    foge com a ajuda dos peixes. Um besouro a pega para casar-se com ele, mas 
    todos os outros insetos dizem que Polegarzinha é muito feia. Depois 
    de ser deixada pelo besouro a personagem acredita ser feia. Ela encontra-se, 
    então, com uma rata, e esta também quer realizar o casamento 
    da Polegarzinha com o vizinho toupeira, por este ser rico e inteligente. Enquanto 
    está na casa da rata, a menina salva uma andorinha e esta depois ajuda 
    sua salvadora a fugir do casamento, levando-a para um lugar onde há 
    outras pessoas como ela – pequena como o dedo polegar. Lá então 
    Polegarzinha conhece um homem com quem se casa.  
  Esta 
    pequena história nos mostra que Polegarzinha vive segundo os desejos 
    do Outro. É sempre levada, carregada para os lugares sem ser questionada. 
    Quando a andorinha aparece, a personagem faz uma escolha, pois lhe é 
    feita uma pergunta: “O frio inverno está chegando – 
    disse a pequena andorinha – Estou de viagem para as regiões quentes. 
    Você quer vir junto?” (Andersen, 1995:34). 
  A 
    criança quando pequena, é o desejo da mãe, tem medo e 
    gosta daquilo que a mãe gosta. Para ilustrar, transcrevo um trecho 
    da fala de uma paciente de Maud Manonni: “A fumaça”, 
    diz Isabelle, “arde nos olhos das crianças. Elas têm medo. 
    No fundo elas não têm medo, é porque a mamãe tem 
    medo que elas têm o medo da mamãe(...)” (Manonni, 
    1988:137). 
  O 
    conto ilustra Polegarzinha presa ao desejo dos outros até que toma 
    sua decisão e parte, libertando-se dos desejos dos outros e tornando-se 
    um sujeito desejante. Agora, já caminha com seus próprios pés, 
    sem precisar ser levada pelos outros. 
  A 
    pesquisa realizada para este artigo apenas está começando. Este 
    é um pequeno apanhado de quantas significações e significados 
    podemos encontrar em uma literatura de tão fácil acesso como 
    os contos de fadas. Para percorrer este caminho agi um pouco como Chapeuzinho 
    Vermelho, ao olhar pelos cantos. Em alguns momentos saí da trilha, 
    mas logo retomei o meu rumo. Em outros, fiquei como a Bela Adormecida, esperando 
    o momento para despertar e então escrever mais algumas linhas. Em outras, 
    sendo ousada, como a menina que percorre o mundo em “Os sete corvos”. 
  Os 
    contos de fadas vêm mobilizando milhares de crianças, jovens 
    e adultos durante muitas décadas. Muitos trazem lembranças, 
    sejam boas ou más, de algum conto em particular. Como cada um vivencia 
    um conto é único. 
  * 
    Este artigo baseia-se na monografia “Era uma vez...” - os 
    contos de fada como mediadores no trabalho psicopedagógico para uma 
    possível resolução diante dos conflitos internos infantis. 
     
  Andrea 
    Pires Magnanelli é especialista em psicopedagogia na PUC-SP. 
  Referências 
    Bibliográficas: 
    ANDERSEN, Hans C. Histórias maravilhosas de Andersen. São 
    Paulo: Companhia das Letrinhas, 1995. 
    BETTELHEIM, Bruno. A psicanálise dos contos de fadas. Rio 
    de Janeiro: Paz e Terra, 2002. 
    FREUD, Sigmund. A ocorrência, em sonhos, de material oriundo de 
    contos de fadas. Obras Completas de Sigmund Freud. Volume XII, 1913. 
    MANNONI, Maud. Efeitos da reeducação em uma criança neurótica. 
    In: A criança retardada e a mãe. São Paulo: 
    Martins Fontes,1988. p. 125-146
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