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                             A angústia que sentimos diante da morte faz  bastante sentido se considerarmos os modos de vida que acompanham o  capitalismo. Nossos costumes e concepções acerca da morte situam-se entre os  muitos passos que foram dados na direção do individualismo. A partir do  Renascimento, tudo, desde a arquitetura residencial até os mobiliários  domésticos, das regras de polidez e higiene aos modos de vestir, das concepções  sobre saúde e educação das crianças até as teorias econômicas e políticas –  absolutamente tudo no Ocidente foi submetido a um profundo processo de  individualização. Trata-se de transformações muito lentas nas mentalidades e  sensibilidades, que apenas o decorrer dos séculos pôde tornar visíveis: mudanças  perfeitamente compatíveis com o sistema econômico que se constituía e que se  desenvolvia tendo por base as ideias de propriedade privada, de iniciativa  particular, de acumulação e de progresso.
 A morte não pode ser aceita por quem pensa  como individual a essência mais irredutível de si. Ela é exatamente o  desaparecimento da individualidade, a diluição dos indivíduos na espécie. Esta  última só pode viver porque os primeiros morrem. A morte, de certo modo, é a  contrapartida lógica da ideia de indivíduo. Ela representa simultaneamente a  fundação e o fim da individualidade, como Michel Foucault observou.  Rigorosamente, a morte existe somente para quem concebe como individual a  essência mais importante de si. De certo modo, ela não existia nos tempos  medievais, pois os mortos estavam ali perto, convivendo com os vivos, dormindo  nas sepulturas coletivas situadas no interior e no entorno das igrejas, centros  da vida comunitária. 
A morte não precisava ser recusada,  simplesmente porque não havia ainda se afirmado; simplesmente porque não havia  sido inventada como negação da vida. Na Idade Média, para lembrar as palavras  de Bakhtin, a morte era “uma entidade da vida, na qualidade de fase necessária,  de condição para sua renovação e rejuvenescimento permanentes”. Diferentemente,  no modo de vida capitalista, seres humanos que se definem como indivíduos  passam a testemunhar de modo crescente, quanto aos outros, que o destino do  indivíduo ao se transformar em morto é deixar de ser uma pessoa e  volatilizar-se no esquecimento. E isto ele não pode aceitar, pelo menos para  si. 
Pode-se ainda compreender a recusa da morte  no âmbito dos modos de vida capitalistas, se levarmos em consideração que ela é  a última coisa em que quer pensar aquele que se orienta na direção da acumulação  e do progresso. Na sociedade capitalista, pelo menos durante a maior parte da  história, fomos incentivados a viver sobre a base do adiamento do prazer, pois  este postergamento era a condição material, ética e existencial do  investimento, da acumulação e do progresso. Prometendo a felicidade,  convenceram-nos de que esta é algo que está adiante, alguma situação que se  atinge, um ponto aonde se chega, alguma coisa que se adquire, uma conquista que  se efetua... 
Nunca no sistema capitalista a felicidade foi  concebida como aquilo que decorre do simples fato de viver e de conviver, como  aquilo que faz pulsar alegrias e tristezas, como algo que impulsiona o ser por  e para o transbordamento de si. Absolutamente não: na ética capitalística, a  felicidade sempre foi essencialmente aquilo que falta, aquilo que se promete  àqueles que se engajam em “conquistá-la”. Fingir ter “conseguido” a fugidia  felicidade tornou-se requisito da negação do fracasso e da simulação de  sucesso. 
Mas a morte não é exatamente o que demonstra  que nada disso tem sentido? Não nos ensina que todos estes princípios  reduzem-se a um amontoado de equívocos existenciais? Alguém que pense um pouco  sobre a morte poderá duvidar de que haja sempre mais um progresso a realizar  quando se morre? De que morrer seja essencialmente aquilo que nos obriga a tudo  desacumular? De que cada instante de vida seja também um instante de morte? De  que a morte seja o que aguarda todos, inclusive aqueles que vivem do adiamento  dos prazeres? Na nossa civilização do sorriso profissionalmente artificial,  quem pensa seriamente sobre a morte logo descobre que a prometida felicidade é  um logro. E que, diante da morte, o sonho de crescimento e de progresso  material soçobra. Nesta cultura em que viver passou a representar um meio de  capitalizar – e viver muito, um modo de acumular e enriquecer – o burguês, que  inventou a morte, não tolera pensar que é mortal. Por isso, nesse sistema  ninguém se conforma com a brevidade da vida. 
Uma das principais estratégias que os  capitalistas usaram para não se acreditarem mortais foi tentar petrificar o  fluxo do tempo. Revolucionando as concepções medievais, os burgueses inventaram  a concepção de tempo que hoje adotamos: linear, fugaz e irreversível. Agora,  paradoxalmente, apavoramo-nos com a crueldade desta fugacidade e deste  irreversível que parecem tudo digerir. É preciso então congelar o tempo. Para  isso a burguesia construirá seus túmulos com a perenidade das pedras mais  resistentes. Mais tarde, substituirá as flores naturais pelas de plástico:  estas não murcham, permanecem sempre idênticas a si, são imitações cada vez  mais perfeitas das naturais e vivas. Principalmente, elas permitem aos vivos se  ocupar menos com os mortos (mas este é um efeito colateral que ele não deseja  para si). 
Antes de ir para o túmulo, na ilusão de  permanecer, o capitalista procurará marcar o mundo com suas obras, com seus  feitos e seus haveres. Inventará as biografias. Mais tarde, as autobiografias.  Buscará permanência nas estátuas. Sonhará com a fixidez do tempo, encomendando  retratos, numerosíssimos a partir do século XV. Pretendendo eternizar a própria  visão de si, refletir-se-á nos autorretratos. Envolver-se-á de espelhos – antes  raríssimos, principalmente os que capturam o corpo inteiro – e  olhar de si para si começará a rivalizar com  o de outrem. 
Mais perto de nossos dias, ele se iludirá com  o simulacro de ciclicidade temporal permitida pelas fotos e pelos filmes.  Fundará museus, arquivos, registros... Exibirá sua “originalidade”, mesmo (ou  talvez especialmente) se esta for ininteligível para os outros. Com argumentos  baseados no asseio e na higiene, querendo apagar qualquer evidência do  transcurso do tempo biológico, acima de tudo procurará banir qualquer  manifestação de apodrecimento. 
Mas todo esse arsenal simbólico não será  suficiente. E na impossibilidade de realizar o sonho de perenidade, cessará  gradativamente de pensar e de falar na morte. Passará a viver como se ela não  existisse. Viverá sem consciência de seus limites. Terá pouca noção de si  mesmo, por mais paradoxal que isso possa parecer. Postular-se-á implicitamente  amortal – para relembrar a expressão muito precisa de Edgar Morin. 
Essa ilusão de amortalidade se manifestará de  modo mais inequívoco nas práticas de algumas casas funerárias norte-americanas  em que se praticam ritos fúnebres que encenam uma espécie de velório, ainda  longe de serem dominantes, embora não raríssimos. Mais ou menos como em uma  festa, um coquetel, um vernissage, as  pessoas se encontram em torno do morto para uma patética cerimônia de culto à  personalidade individual. Nessas ocasiões uma regra fundamental deve ser  observada: a palavra morte está rigorosamente proibida, assim como tudo o que  lhe esteja associado. O defunto aparece como vivo: maquiado, praticando algum  gesto - lendo um jornal, assinando um cheque, sentado na poltrona, em pé e  apoiado em uma escrivaninha de trabalho... As pessoas se “despedem” dele, pois  se trata de uma festa de despedida. Mas é uma despedida de quem não partiu. 
O patético é que esse vivo-quase-morto na  verdade é um morto-quase-vivo: tenta falar ao telefone, mas não consegue; finge  que assina um cheque, mas não o faz; abre ostensivamente as folhas de um  jornal, mas não as lê... Os participantes vão embora, levando a imagem de  alguém vivo – não a de um defunto – para mais facilmente poderem desprezar o  fato de que uma morte teve lugar. Nas versões mais leves, temos os velórios em  tempo real pela internet, de que se pode participar sem comparecer. Temos ainda  os drive-thru funerals,  estabelecimentos nos quais, na época do fast  food, da fast spirituality e do fast sex, tornou-se possível assinar o  livro de condolências sem sair do automóvel, certamente para esquecer bem  rápido, antes do próximo compromisso agendado. Quanto ao morto, é possível que  vá “confortavelmente” habitar uma dessas moderníssimas sepulturas equipadas com  bateria solar, na qual, como diz o anúncio, poderá “escutar sempre” suas  músicas prediletas. 
Este postulado de amortalidade é um complô de  silêncio. Os cemitérios tendem a desaparecer do cenário contemporâneo.  Primeiro, foram cercados com muros. Depois, banidos das cidades. Mais próximo  de nós, foram redesenhados na forma de parques em que o repouso dos mortos se  associa a uma espécie de retorno à natureza, quase como férias ou aposentadoria  na casa de campo tão sonhada, na ambiência do verde cada vez mais raro. Neste  cemitério as sepulturas tendem a ser discretas e silenciosas, para que a morte  seja maquiada e tenha escondida sua fisionomia: é um cemitério, mas pode  perfeitamente não ser identificado como tal por um passante não avisado.  
A localização da morte na velhice desempenha  papel semelhante. Para as novas mentalidades o falecimento de uma pessoa jovem  tornou-se inadmissível e mesmo escandaloso. No novo sistema de expectativas  imagina-se que a morte deva atingir apenas pessoas de elevada idade, que nesta  condição podem ser vitimadas por causas “naturais”. Uma consequência da  localização da morte na velhice é que os não velhos poderão se sentir  dispensados de pensar e de falar sobre a morte, autorizados a viver como  amortais. Acontece que esta é uma sociedade que cultua o novo e a juventude.  Paradoxalmente, admira nos velhos a jovialidade, não sua vivência. O resultado  é que cada vez mais pessoas passam a se considerar jovens. E um número  crescente de idosos tende a ver-se com mocidade. Igualmente silenciam sobre a  morte. 
Além disso, com o correr dos séculos a morte  foi parecendo cada vez menos cotidiana. Na sociedade talvez mais mortífera que  a humanidade já produziu – pensemos apenas nos seus armamentos e nas suas  relações com o ambiente – o morrer tornou-se pouco familiar, deslocado para  asilos e hospitais, afastado dos vizinhos e das crianças. A família já não é a  mesma e muito frequentemente o doente já não encontra em casa quem dele se  encarregue. 
A família sonha oferecer às crianças um  ambiente “psicologicamente sadio”, mas na nova mentalidade esta ambição não  pode coexistir com seres decrépitos, enrugados, decadentes, fracos, tidos como  capazes de produzir contaminações físicas e psicológicas. Ela também quer para  si e para seus doentes ambientes assépticos. Mas a casa não é considerada  suficiente asséptica para o doente, nem o doente bastante esterilizado para  permanecer no recinto familiar. O resultado foi que a família transferiu o  doente para as empresas de saúde, assim como acabará transferindo o morto para  as empresas funerárias. 
O hospital se transformou assim em asilo a  proteger a família da doença e da morte, a abrigar o doente das pressões  emocionais de sua família, a resguardar a sociedade da publicidade da morte. No  hospital a morte não é mais a cerimônia pública que sempre a caracterizou na  história do Ocidente, pelo menos desde aquela, medieval, que o moribundo  presidia em meio a seus próximos, até as cenas de alta participação familiar de  algumas décadas atrás. A tendência é que estes ambientes humanos tenham cada  vez menos a dizer. O doente, idem. 
O postulado de amortalidade diminuiu também a  ritualidade funerária. Os cortejos fúnebres foram engolidos pelo ambiente  urbano. Não constituem mais as pequenas procissões que a pé percorriam os  pontos principais das cidades. Nem as carruagens puxadas por cavalos que, com  ar solene, dominavam o ambiente. Também não são mais os clássicos carros  funerários a motor, que ainda despertavam atenções. Quando existe, o atual  cortejo fúnebre mal pode ser percebido. Os automóveis se perdem em meio a todos  os outros e o carro funerário se identifica cada vez menos como tal. Tudo se  passa como se tivesse havido o propósito de ocultá-lo. 
Do mesmo modo, desaparecem progressivamente  as condolências, as visitas, as últimas homenagens. As próprias famílias  “enlutadas” às vezes passam a solicitar que não se façam visitas e que não se  enviem flores: tentam talvez evitar o incômodo de fazer as pessoas pensarem por  demasiado tempo que uma morte ocorreu. Coerentemente, também começam a  disfarçar a expressão da dor, sobretudo quando em público. E crescentemente  tratam o luto como uma questão individual, de foro íntimo. 
José Carlos Rodrigues é antropólogo da  PUC-Rio.  
REFERÊNCIAS  
  Bakhtin, M. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento. Brasília: UNB, 1987. 
  Foucault,  M. Naissance de la clinique. Paris:  PUF, 1978. 
  Morin, E. L’homme et la mort. Paris: Seuil, 1970. 
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