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 Neurônios.  Neurociência. Neuroarte. Neurocultura. Neuroeconomia. Neurodiversidade. O  prefixo "neuro" tem se espalhado por diversas áreas de atuação e campos do  conhecimento, e o cérebro se tornou objeto de investigação e análise crítica de  cientistas das mais variadas disciplinas, das ciências médicas às humanas e  sociais. 
Com  o avanço das pesquisas, tornou-se impossível separar o sistema nervoso do resto  do organismo e já há um consenso entre estudiosos das áreas médicas de que não  existe em todo o corpo do ser humano algum órgão que funcione isoladamente. Os  estímulos nervosos que moldam as emoções e os comportamentos recebem  influências diversas do meio ambiente, das demais partes do organismo e até dos  próprios sentimentos. E as emoções também podem ser entendidas como elementos  que moldam a função nervosa, interferindo nos demais órgãos. Essa complexidade  do ser humano deve ser entendida como tendo origem em uma interação entre mente  e corpo, na qual o papel desempenhado pelo sistema nervoso é o de integrador  fundamental das duas partes. 
A  ampla diversidade de abordagens possíveis na área das neurociências traz implicações  para a discussão acerca dessa integração entre mente e corpo, na medida em que  surgem avanços e novas possibilidades nesse campo da ciência. E isso abre  possibilidades para outros campos de investigação. 
O  estudo da "neuroeconomia", por exemplo, tem ajudado a descobrir como os agentes  econômicos individuais ou coletivos tomam decisões. O conceito de que todo ser  humano é sempre racional, caro aos economistas clássicos, passa por mudanças  importantes. Já se admite que em determinados casos o processo decisório não se  baseia apenas em cálculos racionais, mas no próprio sentimento. 
Determinados  estudos sobre o funcionamento cerebral também têm implicações no campo da ética. Padrões culturais estabelecidos historicamente podem ser seguidos ou  não, e há estudos que relacionam a predisposição para seguir a ética com  determinada região cerebral, o que implica em uma relação mais complexa entre o  indivíduo e a sociedade em que vive. 
Outra  faceta dessa relação entre os indivíduos e o seu coletivo social é a discussão  sobre a neurodiversidade. Para estudiosos e ativistas desse campo, o que hoje é  visto por boa parte da sociedade como doença cerebral que afeta o comportamento  humano, seria, na verdade, uma diferença humana. Essa discussão envolve as  fronteiras entre o que é "normal" e "anormal", "sadio" e "patológico",  estabelecendo novos padrões de convivência em sociedade. 
É  curioso constatar que todos esses campos científicos passam por transformações  que algumas artes já exploravam no início do século XX. Estudar o cérebro e a  sua relação com a sociedade pressupõe diferenciar as percepções de uma miríade  de agentes sociais, que enxergam o mundo sob variados prismas. Essa noção de  que o que um indivíduo enxerga é diferente do que outro percebe já estava presente,  por exemplo, nas pinturas de Picasso e Braque. Hoje, os mais variados campos  científicos, em particular a neurociência, dão passos largos rumo a um  entendimento mais amplo da relação entre indivíduo e sociedade. 
Neurodiversidade:  uma questão ideológica 
Se,  como investigadores, nos propuséssemos a seguir os rastros e pistas da presença  do cérebro no mundo contemporâneo, teríamos que circular para além da ciência:  pela cultura pop dos desenhos animados, por filmes, peças de teatro,  literatura, publicidade, programas de TV, revistas, jornais, internet. 
Alguns  especialistas que estudam o funcionamento do cérebro e sua relação com a  cultura, inclusive, como Francisco Ortega, do Instituto de Medicina Social da  Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), já falam na constituição de um "sujeito cerebral" e de uma "neurocultura" (ver seu artigo sobre o assunto). Da esquizofrenia à depressão, passando por doenças  neurodegenerativas (que implicam na perda progressiva de neurônios) como  Parkinson e Alzheimer; emoções, sensações e sentimentos como medo, ansiedade,  paixão; comportamentos e diferenças sexuais; violência e criminalidade; e até  mesmo a fé - tudo isso vem sendo relacionado ao funcionamento do cérebro. 
No  entanto, se para pesquisadores das ciências médicas as neurociências ajudam a  desestigmatizar comportamentos e doenças, ao comprovar que elas são condicionadas  pelo cérebro, alguns cientistas sociais alertam para o fato de que estaríamos  diante do risco de um novo tipo de determinismo: o cerebral. O cérebro teria  roubado o lugar do DNA enquanto essência que nos definiria como seres  humanos. Assim, compreender seu funcionamento implicaria em conhecer a nós  mesmos. Em face às questões políticas envolvidas nessa polêmica, o debate é  acirrado. 
Temas  das neurociências têm inspirado roteiros cinematográficos e peças de teatro que  foram bem recebidos pelo público em geral, em função da sutileza com que  exploram a experiência humana em condições adversas. O relato de uma autista  feito ao neurologista Oliver Sacks, por exemplo, foi a principal inspiração  para a peça Máquina de abraçar, do dramaturgo espanhol José Sanchis  Sinisterra, encenada em São Paulo em 2010. O filme Temple Grandin,  distribuído pelo canal HBO, também sobre uma autista, recebeu o maior número de  Emmys em 2010. 
Vivida  pela atriz Claire Daines, Temple Grandin conta, em forma de biografia, a  trajetória de uma engenheira e cientista, especialista em comportamento animal.  Ela é uma das principais ativistas do chamado movimento da neurodiversidade. O  termo foi criado pela socióloga australiana Judy Singer para propor uma nova -  e polêmica - percepção das até então denominadas "doenças mentais": elas agora  devem ser tomadas enquanto conexões neurológicas atípicas ("neurodivergentes")  e, assim, segundo o movimento, ser tratadas apenas como diferenças humanas, e  não como patologias. Os protagonistas desse movimento político são os chamados  autistas de alto desempenho, muitos deles portadores da síndrome de Asperger.  Por ser considerada uma forma leve de autismo, os quem têm essa síndrome, os "aspies", não apresentam atrasos no desenvolvimento e nem sofrem  comprometimento cognitivo grave.  
Para  se contrapor aos médicos que tratam o autismo como doença - e que para os  adeptos do movimento seria uma diferença humana, parte de nossa  neurodiversidade -, cunhou-se o termo "neurotipicidade", ironicamente tratado  como doença no site do Institute for The Study  of Neurologically Typical, que brinca com a ideia de diagnosticar ou "curar a  normalidade". 
A  internet - assim como para outros movimentos sociais - também foi fundamental  para os adeptos da neurodiversidade, permitindo a comunicação direta entre  autistas. Sites, blogs e chats são utilizados pelos "aspies" para trocar  experiências, fazer amizades ou até mesmo encontrar futuros cônjuges. Alguns  ativistas chegam a defender a ideia de que o autismo é uma cultura, na medida  em que se constitui como uma experiência singular, um jeito de ser e de estar  no mundo. Não se trata, portanto, de "ter" autismo, mas de "ser" autista. 
Essa  ideia norteia o vídeo In my language, da ativista Amanda Baggs. A primeira parte é um registro do modo específico com  que os autistas interagem com o mundo; a segunda parte, uma tradução (através  de um programa de computador) para os "neurotípicos": "Só quando eu digito  alguma coisa na sua linguagem é que você se refere a mim como tendo capacidade  de comunicação", diz Baggs. "Sinceramente, eu gostaria de saber como muitas  pessoas, se me encontrassem na rua, iriam acreditar que escrevi tudo isso. A  propósito, eu acho interessante que a minha falha no uso da sua língua seja considerada  como um déficit, mas a sua falha em aprender a minha seja vista como uma coisa  natural", provoca. 
A  denominação do autismo como uma diferença é polêmica. A principal acusação  feita ao movimento da neurodiversidade é a de que ele é formado apenas por  autistas de alta performance ou portadores da síndrome de Asperger. Eles são  definidos, de modo geral, como pessoas muito inteligentes, com boa memória e  que têm fixação por assuntos específicos. Ou seja, os portadores da síndrome de  Asperger correspondem ao estereótipo da genialidade. Não é à toa que o  transtorno é comumente chamado de "síndrome do gênio". 
O  tema é polêmico, porém, como tantos outros, pode ser positivo, ao promover o  debate sobre inclusão amarrado às dinâmicas sociopolíticas e culturais.  Juntamente com essa nova configuração da sociabilidade, estaríamos também  diante da criação de novos modos de subjetivação marcados, principalmente, pelo  predomínio do corpo percebido como organismo, em detrimento de um "eu"  percebido como interioridade, o que tem levado muitos especialistas, como o  psiquiatra Rossano Lima Cabral, do Programa de Estudos e  Pesquisas da Ação e do Sujeito, da Uerj, a  falar em bioidentidades. Debates à parte, espera-se que os avanços do  conhecimento possam contribuir, pelo menos, para melhorar o relacionamento  entre as pessoas "normais" e "neurodivergentes". 
Neurociências  e economia 
Outra área que se vale dos estudos sobre o cérebro é a economia. Os avanços na  neurociência iluminam também quais são os fatores cerebrais a afetar o processo  de tomada de decisões cotidianas. Algumas dessas decisões são fundamentais para  a economia. A neuroeconomia, um novo campo científico, tem como um de seus  focos a análise de como indivíduos e grupos decidem. 
Os  economistas sempre analisaram o comportamento humano, a fim de entender como  recursos escassos podem ser utilizados para atender a uma determinada demanda -  o principal objetivo da ciência econômica. No fim do século XIX, uma revolução  científica, a fundação da economia neoclássica, adotou métodos matemáticos e  forjou novos conceitos. 
Em  vez de apenas medir o total de riqueza obtido por uma sociedade, como até então  se fazia, os neoclássicos notaram que era preciso analisar as preferências  individuais para saber se a sociedade caminhava bem. A psicologia, ainda em  seus estágios iniciais, ganhou importância para os economistas. 
Para  analisar como uma pessoa tomava decisões, por exemplo, eles apontavam que o peso  de custos e benefícios era essencial, de modo muito rudimentar. Considerava-se  o ser humano, então, como um ser puramente racional. 
Alguns  economistas já enxergavam os limites dessa análise. William Jevons, um dos  responsáveis por introduzir a matemática no instrumental econômico, dizia, por  exemplo, que o homem estava longe de ser só razão. Para o grupo ligado a essa  linha de pensamento, não era possível, naquele estágio, fazer uma análise mais  apurada sobre a felicidade - sobre se os homens se sentiam melhor ou pior de  acordo com mudanças em seu padrão de vida. 
Na  década de 1930, John Maynard Keynes, ao se distanciar dos neoclássicos, cunhou  o conceito de "espírito animal" para se referir a impulsos internos que  orientavam o comportamento humano. Não se tratava mais de um indivíduo  puramente racional. 
Na  visão keynesiana, algumas ações de políticas públicas, por exemplo, seriam  capazes de despertar o "espírito animal" de empresários. Esses, então,  decidiriam investir na economia, contribuindo para gerar empregos e aumentar a  renda nacional. 
Uma  das grandes forças a influenciar o comportamento humano, por exemplo, é a noção  de expectativa. Estudos neurocientíficos mostram que, quando um indivíduo se  depara com uma possibilidade de ganho, há aumento em sua atividade neural. 
Outro  elemento fundamental é a visão que se tem sobre a economia em dado momento. Os  indivíduos mais otimistas costumam gastar mais e acumular mais dívidas. Se as  pessoas perdem a confiança na economia nacional, porém, diminuem o tanto que  gastam. Mas os estudos que envolvem análises sobre tomadas de decisões, sejam  de indivíduos ou de grupos, seja no campo da economia, da neurociência ou da  interface de ambos, ainda têm muito o que avançar. 
O cérebro e seu potencial ético  
O cérebro e a mente ainda estão entre os maiores  mistérios da humanidade. Nessa área do conhecimento - em que ainda há muito  desconhecimento -, um campo de investigação começa a ganhar evidência: a  neuroética. Trata-se do estudo do processo cerebral e da mente em realizar  julgamentos morais e éticos e suas implicações em outras áreas do conhecimento,  como economia, direito e cultura. 
A evolução da neuroimagem tem permitido o estudo do  cérebro em pleno funcionamento e evidenciado em diversos testes que razão e emoção  podem produzir sentimentos éticos e morais. Esses estudos trazem a tona debates  polêmicos. 
Segundo artigo dos neurocientistas Jorge Moll e  Ricardo Oliveira Sousa, intitulado "Primeiro sentimos, depois julgamos",  publicado na revista Mente & Cérebro, em agosto 2008, pessoas com  lesões cerebrais na parte ventral do córtex pré-frontal - uma região acima das órbitas dos olhos - teriam menos sentimentos morais éticos. Isso também é  confirmado por pesquisas realizadas pelo neurocientista português Antônio Damásio  ao longo de 30 anos. 
Outro estudo importante nessa área foi realizado  por Michael Koenigs e Liane Young, do Instituto Nacional de Transtornos  Neurológicos de Harvard, e publicado em 2007 na revista Nature com o  título "Damage to the prefrontal cortex increases utilitarian moral judgments".  De acordo com as comparações feitas durante o estudo, pessoas com lesões nessa  mesma área seriam mais "utilitárias", ou seja, mais racionais e práticas. Elas  sentiriam menos emoções, portanto, menos preocupações com as consequências de  seus atos imorais. Já as pessoas neurologicamente saudáveis fariam escolhas  baseadas nas emoções e nas consequências de seus atos. 
Para Moll, uma das polêmicas está no fato de  pessoas neurologicamente saudáveis, sem lesões cerebrais e sem dignósticos de  sociopatia, por exemplo, também fazerem, em algum momento de suas vidas,  escolhas mais utilitárias, mesmo que em nome de um bem coletivo. 
Apesar disso, a previsão geral é que a neurociência  e esse novo campo de investigação, a neuroética, juntamente com os avanços  tecnológicos, influenciarão novas pesquisas multidisciplinares. Juntos  quebrarão muitos paradigmas, como a ideia de que devemos ficar apenas com as  definições e percepções do próprio eu, do outro e daquilo que nos rodeia. E, com  certeza, estimular os sentimentos éticos não fará mal a ninguém! 
Para conhecer mais 
Marino, Raul. "Neuroética: o cérebro como órgão da ética e da moral", Revista Bioética, 2010. 
Moll, Jorge; Souza, Ricardo de Oliveira. "Primeiro  sentimos, depois julgamos", revista Mente & Cérebro, agosto 2008. 
Koenigs, M et al. "Damage to the prefrontal cortex increases utilitarian  moral judgments". Revista Nature vol. 446, p. 908-911, 19  de abril de 2007. 
Pizarro, David. "A virtude de estar moralmente errado", revista eletrônica Era Ética e Realidade Atual (www.era.org.br), 2010. 
Gazzaniga, Michael S.; Ivry, Richard B.; Mangun,  George R. Neurociência cognitiva: a biologia da mente. 2ª ed. Porto  Alegre: Artmed, 2006. 
Kandell,  Eric; Schwartz, James H.; Jessels, Thomas M. Fundamentos da neurociência e do  comportamento. Rio de Janeiro: Editora Guanabara Koogan S.A., 2000. 
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