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                            10/11/2010
                             Pense  em um pequeno vilarejo ou povoado, como a aldeia Macondo, da obra de Gabriel García  Márquez, tão pacata quanto pulsante de vida nas histórias de suas parcas almas.  Acrescente, agora, uma pitada de tagarelice, como a de Riobaldo, da obra de  Guimarães Rosa, ao narrar venturas e desventuras pelos sertões das Gerais.  Temos aí, guardadas as proporções em relação a esses consagrados nomes da  literatura universal, os ingredientes de Cartografia  da memória, em que Emanoel Castro Oliveira traça os contornos de sua aldeia  de origem através da “contação” de histórias ouvidas da mãe, da tia, do avô e  de tantos outros personagens que deram vida ao lugarejo. 
Antes  de descrever esse livro mais detalhadamente, permitam-me uma pequena divagação.  Você já se perguntou, diante de um mapa do Brasil, por exemplo, por que um  estado tem um desenho assim e o outro assado, por que um é tão grande e o outro  tão mirrado? Saberão os nascidos em Tocantins que seu estado havia sido parte  de Goiás há bem pouco tempo? E os acreanos saberão que aquela outrora faixa de  território boliviano foi comprada pelo Brasil? Pois a arbitrariedade dos  traçados da cartografia geopolítica, que resulta em partilhas como a da América  entres os reinos ibéricos, ou, posteriormente, a da África entre os  colonizadores europeus, certamente não é o tema de que trata o livro de  Oliveira, como se pode supor pelo título. 
Afinal,  que cartografia é essa de que ele trata, então? Mudo agora o rumo da divagação:  quando meus pais se casaram, foram morar em uma cidade que, diziam, “era tão  pequena que não aparecia no mapa”. Para enviar uma carta a algum morador de lá,  bastava colocar o nome da pessoa no envelope. Não havia necessidade de escrever  o endereço. Hoje é fácil encontrá-la em mapeamentos daquele a quem nada escapa  na superfície da Terra, o Google: basta escrever “Caiapônia”. Mas se ela não aparecia  nas cartografias oficiais, sua presença esteve sempre viva na lembrança dos que  por lá passaram, em histórias como a do meu avô, em visita à filha, tendo que  aguentar ser passageiro de um jipe na companhia de uma onça. 
Pois  é rememorando histórias dos moradores de São Miguel das Matas, sua cidade  natal, na Bahia, que Emanoel Castro Oliveira não apenas a destaca no mapa  baiano, mas traça “os múltiplos mapas particulares que cada um dos que nela  viveram carregam consigo” (p. 14). É o que eu chamaria de mapas afetivos  delineados pelo imaginário de seus habitantes, e que para ele “são as  cartografias subjetivas, território da memória, de quando em quando refeitas,  traçadas ao molde da imaginação, em que as distâncias se encurtam e novas  cidades entram a lhes fazer limites” (idem). 
Em Cartografia da memória, muito mais  significativos que os limites que separam um município de outro são os pontos  de junção, como a linha do trem, pela qual tantos personagens vieram para São  Miguel, de passagem ou para ficar, e outros tantos miguelenses partiram para  novos rumos provisórios ou definitivos. Pelo trem também chegavam as cartas que  mantinham os vínculos entre os que ficaram e os que partiram, tão  significativas na história pessoal de Oliveira, filho de uma postalista dos  Correios. 
Outra  ligação importante para os moradores de São Miguel é a estrada de terra pela  qual iam em romaria até Bom Jesus da Lapa na carroceria de um caminhão,  “comendo poeira, aos trancos e barrancos, sedentos, amontoados nas tábuas duras  e sem encosto, pobres viajantes da fé a fazerem o único turismo possível” (p.  45). Mas para o contador de histórias, a menção à romaria coletiva é apenas um  pretexto para falar de um personagem singular, apelidado de Pássaro Preto, um  romeiro solitário e andarilho, que dispensava o caminhão e fazia o percurso à  pé, encontrando pouso e acolhida nas cidades por onde passava. 
Ao  longo de toda a narrativa, além das epígrafes que abrem cada um dos capítulos,  Oliveira associa personagens e lugares à obra de diversos autores, sobretudo da  literatura, mas também do cinema. Apesar de figurarem escritores canônicos do  Brasil em várias dessas referências, como Drummond e Bandeira, como se trata de  um livro de memórias, não poderiam faltar citações que caracterizam a baianíssima  identidade dessa cartografia traçada por Oliveira, tanto na menção à obra de  baianos famosos, como Glauber Rocha e Jorge Amado – ou antes, a personagens do  imaginário baiano por eles retratados –, como a de inúmeros esquecidos dos  compêndios de literatura em prosa e verso. Trata-se de uma baianidade presente  não apenas nessas citações, mas em traços culturais, que além das já  mencionadas romarias, incluem o samba de roda e a capoeira e o banquete de  caruru em oferenda no dia de Cosme e Damião. 
As  incontáveis referências literárias que pululam aqui e ali, em meio à “contação”  de histórias, além de revelar o ecletismo e a erudição de Oliveira e sua  relação afetiva com as fontes das quais bebeu, talvez tenham relação com uma  característica estética de Cartografia da  memória: o estilo do autor pode agradar a uns e não a outros, ao mesclar a  singeleza de “causos” e o prosaico de episódios com eventuais sofisticações de  vocabulário e, sobretudo, de intrincadas estruturas sintáticas. É preciso ler  com atenção ou até mesmo reler certos trechos para não perder o fio da meada e  o gozo da anedota, como a que trata do aprendiz de comerciante, que no aperto  de suas necessidades fisiológicas, faz de jornais o seu banheiro e tem uma  desagradável surpresa ao tentar se desfazer do embrulho com as fezes. 
De  qualquer forma, trata-se de um prato cheio para quem gosta de uma boa  “contação” de histórias. Apesar de estar catalogado como romance, Cartografia da memória pode ser  considerado uma coletânea de crônicas, certamente ligadas umas às outras, mas  de leitura independente, ao gosto do leitor. Uma delas versa sobre a gênese de  um ginásio que é, sem dúvida, o ponto de partida para a construção dessas  memórias em torno de sua aldeia de origem. Oliveira já se preparava para se  tornar seminarista em outra cidade, único destino de um miguelense que quisesse  dar continuidade aos estudos, quando Padre Gilberto resolver inaugurar o tal  ginásio. Por falta de professores para tocar a empreitada, dois eruditos e  autodidatas locais foram convidados para ministrar aulas. Nas de história e  geografia, não figuravam imperadores ou rios caudalosos, mas São Miguel, os  rios e serras à sua volta e os personagens que marcaram sua trajetória. A  mudança do olhar do jovem ginasiano sobre sua própria aldeia o marcaria pra  sempre. 
Cartografia da memória 
  Emanoel  Castro Oliveira 
  Editora  7 Letras, 2009 
  203  páginas 
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