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 Traduzido por Germana Barata 
Ideias utópicas – como a ideia  da "Terra espaçonave" – são circulares, multidimensionais,  interrelacionadas: seu mapa arquetípico é a Via Láctea, as constelações  infinitas. Mas o pensamento racional é instrumental, linear, ele distorce: e  este é, exatamente, o problema com o mapa Mercator, a projeção mais comum do  mundo. Buckminster Fuller, inventor da abóbada geodésica, criou o "Mapa Dymaxion"  para corrigir aquelas distorções. Primeiramente, a Terra se transforma em uma  figura geométrica, um icosaedro: seus vinte triângulos se separam e são  colocados, então, num plano, de modo que as massas da Terra irradiam de um nexo  ao norte, sem separar os continentes ou ampliar as regiões polares. Fuller  baseou suas ideias políticas nesse mapa: na “Expo Mundial de 1967” em Montreal,  na cúpula do pavilhão dos EUA, ele quis apresentar uma projeção vasta de  Dymaxion, e a animou com as estatísticas mais modernas, para que os visitantes  pudessem visualizar o fluxo de recursos através da Terra e identificar os  padrões estruturais, as desigualdades, as soluções com mais desperdícios ou as  mais eficientes. As delegações das diferentes regiões deveriam se reunir para  participar de sessões cooperativas, em um processo de resolução de problemas  chamado "World  Peace Game" jogo  da paz mundial1. A ideia por trás dele era simples: igualdade funcional,  democracia radical. “Fazer com que o mundo funcione para 100% da humanidade o  mais rápido possível, com a cooperação espontânea, sem danos ecológicos ou  desvantagens para qualquer um”2. 
Gerardus Mercator era um estudioso  protestante de Flanders; publicou seu mapa em 1569, para ajudar navegantes  europeus a traçar rotas às costas distantes. A habilidade de navegar em linha  reta levou ao mundo da economia capitalista. Oyvind Fahlström era um artista  sueco que passou sua juventude no Brasil e morreu nos EUA. Seu mapa mundi foi  pintado em 1972, pouco depois de Fuller imaginar sua utopia. O mapa de  Fahlström se parece com a projeção Mercator: mas os oceanos praticamente  desapareceram, os continentes são esmagados ou inflados pelas pressões  políticas que a economia mundial traz. O espaço transborda com conflitos entre  ricos e injustiçados, a CIA e aqueles que lutam pela liberdade, os  capitalistas, os comunistas, os revolucionários.  
Fahlström estava interessado  na resistência e no excesso: pelos quais quero dizer a política mais a subjetividade  do transbordamento, as estatísticas mais a invenção figurativa. Para ele, um mapa era um espaço plano governado por um  sistema de regras, que servia para o jogo social; mas era igualmente um  território aberto para um jogo imaginário3. No início dos anos 1970 ele  criou uma série de jogos de tabuleiros de monopólio Monopoly, conhecido no Brasil como Jogo Imobiliário (Monopólio da CIA, Monopólio do comércio mundial,  Indochina etc), nos quais a informação política e econômica fornece regras  inflexíveis, seja qual for a paixão, seja qual for a nossa criatividade.  Contudo, um trabalho como o seu Pentagon  Puzzle (Quebra-cabeças  Pentágono) – que inclui um detalhe de uma Terra quadrada e acorrentada – pôde  igualmente ser desmontado, dispersado e suas partes introduzidas em outro jogo. 
A utopia de Fuller não foi  aceita para o pavilhão dos EUA em 1967: na entrada, os oficiais colocaram uma  enorme águia dourada. Mas, hoje, o acesso à internet colocou grandes volumes de  informação ao nosso alcance. Agora qualquer pode usar recursos de mapeamento.  “O aspecto comunicativo do meu trabalho pode ser vastamente ampliado mediante o  uso dos computadores e pelo uso da televisão, do vídeo e da tendência de  miniaturização da comunicação em vídeo…. milhões de pessoas e multibilhões de  dólares estão envolvidos apenas no desenvolvimento de tais equipamentos,  pessoal especializado e knowhow,  “escreveu Fuller em 19704. Parte da herança de Fuller está em osEarth Inc., uma  usina de ideias (think-tank) e um compilador de base de  dados que organiza sessões do jogo mundial em um gigantesco mapa Dymaxion, uma  experiência de aprendizagem para os jovens. Entretanto, essa experiência é  igualmente vendida às equipes de negócio das corporações listadas pela Fortune 500. “A sociedade civil global”,  com todas suas cumplicidades e manipulações, está enquadrada no mapa de nossa  situação atual.  
Alguém duvida que as pinturas  do monopólio de Fahlström, com seu enfoque na confrontação política, se  aproximam muito mais dos jogos que o mundo realmente joga? Contudo as recentes  rodadas de negócios e as demonstrações globais ainda lembram as ideias básicas  de Fuller, igualdade funcional, democracia radical. E se começa a questionar:  onde estão os artistas-cartógrafos de hoje? 
Linhas de poder 
  O grupo conceptual  baseado em Paris, Bureau d'Etudes, trabalha intensamente em duas dimensões.  Para uma exposição recente chamada "Planeta dos Macacos" eles criaram pôsteres  integrados dos laços de propriedade entre organizações transnacionais, uma  visão sinóptica do jogo monetário mundial. Contra um fundo preto, formas  semelhantes a brasões são decorados com os nomes dos estados, corpos de  controle, think tanks, empresas e corporações financeiras. Entre essas formações são afixados  textos sobre privatização e flexibilização. Alguns pontos levam às zonas azuis,  cômico e surreal, como word-balloons (balões com diálogos) ou oceanos psíquicos: estes contêm contra-informação de  grupos autônomos, manifestos, constituições, chamadas à ação…  
Em vez de um catálogo,  o visitante recebe três “Crônicas dos tempos de guerra” (Wartime Chronicles),  folhas únicas que dividem os jogadores do poder em regiões de sobreposição. Uma  delas é um polo de finanças, com fundos de pensão, gerentes de empresas e  bancos, além de zonas cinzentas de fundações legitimadoras de poder. Outra  mostra empresas de telecomunicações, grupos de mídia, redes de distribuição de  bens de consumo. Então você quer chamar a polícia para deter esses criminosos?  As instituições militares, as agências de inteligência, os fabricantes de armas  e as companhias de satélites completam o quadro. Algumas citações aparecem nas laterais  das folhas, como esta do artista Fabrice Hybert: “Meu primeiro colecionador, bem, grande colecionador… era um mediador para a Otan e grandes estruturas como essas, a Otan e países africanos ou sul-americanos, algo assim, outro era um mediador para toda a indústrias armamentista,  bem, vocês sabem, é horrível mas ele tem esta capacidade de abstrair-se dessa  cena… Eu, eu gosto de pessoas como essas"5.  
Se os artistas estão falando naqueles  termos, por onde você pode escapar? Existe uma aposta nessa exposição: pinte um  retrato totalitário, totalmente preto, e as pessoas vão procurar rachaduras que  conduzem a alguma outra dimensão. Outro folheto para levar, um texto de oito  páginas chamado “Potenciais” explora o “conhecimento autônomo/poder” – ou a  desconstrução e a reconstrução de máquinas complexas – com uma análise política  de diferentes posições anarquistas, bem como mapas ou figuras que listam  produtores dissidentes do conhecimento, squats e hacklabs, e um esquema que relaciona várias formas de trocas não-capitalistas.  Um não-preço (0 euro) e uma nota contratual figuram em cada uma das folhas: “A  presente publicação não pode ser adquirida, vendida ou destruída. Todas as  pessoas podem, todavia, usá-la como quiserem, com a obrigação de dá-la a outros  se desejar”.  
Esse último detalhe  tem sua importância. Como Bruce Sterling disse recentemente: “A informação quer  ser desvalorizada” – quer dizer, desvalorizada em termos monetários6. E,  para além da lógica do computador de software livre, o grande projeto  alternativo da última década tem traçado o espaço transnacional investido  primeiramente pelas corporações, e tem distribuído esse conhecimento livremente.  Este é o real poder da “cooperação espontânea”, em um projeto da informação  global como a Indymedia. Por uma década ou mais, do início dos anos 1980 a  meados dos anos 1990, as réguas da economia neoliberal foram escondidas nos  buracos negros de paraísos fiscais. Hoje, uma enormidade de projetos como  Planeta dos Macacos está se tornando cada vez mais visível7, ao ponto de que  uma nova resistência significa que podemos começar a imaginar – ou a explorar  –, mais uma vez, um mapa radicalmente diferente do planeta.  
Fuller teria adorado o  desenho da internet, que torna possível o compartilhamento da informação para o  jogo mundial. Fahlström, o admirador do cartunista Robert Crumb, teria amado a  multidão dos Dias da Ação Global: autônoma e selvagem, inteligente e com pés  ligeiros. O Bureau d'Etudes pertence a essa multidão. Colaborando com os squats, os desempregados e os sans papiers (sem documentos),  operando um espaço auto-gerido  em Estrasburgo, o Syndicat Potentiel e  combinando-o com a Université Tangente, um  projeto para a produção autônoma do conhecimento, ele começou silenciosamente a  transmitir uma intransigência pragmática a outros da cena francesa da arte,  dominada pelos gostos de Fabrice Hybert. Um nível novo de engajamento foi  marcado pelo encontro deles com a rede No-Border para  o curso de verão de Estrasburgo em 2002, uma tentativa de subverter uma das  mais poderosas linhas de poder: o sistema de informação Schengen. Atividades  como essas simplesmente não podem aparecer nos muros do mundo da arte. Neste  sentido, metade do trabalho do Bureau d'Etudes permanece  subterrânea: as recusas e as denúncias são claras, a cooperação e o jogo  subjetivo permanecem quase invisíveis. E talvez seja melhor desse modo: como é  possível representar com sucesso uma experiência alternativa radicalmente  democrática?  
Usos  incertos 
  Um projeto sofisticado de  mapeamento em multimídia tentou responder apenas a essa pergunta. A tela à sua  frente mostra uma massa de cor púrpuro-negra, salpicada de constelações  hipnóticas: aos poucos você nota que se trata de uma foto noturna da Europa  urbanizada, com retângulos brancos que marcam as zonas de atividade potencial.  A cena é interrompida: música toca, cartas dançam e rolam, soletrando palavras;  e você começa a vagar dentro de uma matriz de telas autônomas ligeiramente  elevadas. Você está cercado por séries distintas de imagens impositivas e  estáticas em preto e branco de construções arquitetônicas; e depois por fotos  coloridas instantâneas de pessoas que se misturam livremente em cenas do  cotidiano; e entrevistas suspensas em preto e branco com enormes cabeças  falantes; e então por um vídeo lírico que percorre labirintos do território  urbano. Pare na frente de uma tela, e uma história específica, localizada, se  desdobra: cenários arquitetônicos, atores, história individual, trajeto  subjetivo pela cidade. Até que a cena se quebra, a língua rola, a música toca,  e as permutações recomeçam diferentemente. Nas franjas do mundo da arte, um  grupo de urbanistas criou um dos sistemas de representação visual mais  impressionante que surgiu nos últimos anos: USE (USO, no português), ou o “Uncertain States of Europe” (“Estados incertos da Europa”),  um projeto de Stefano Boeri e Multiplicity. 
Multiplicity é um grupo de pesquisadores interligados que  explora o território europeu conforme ele muda, em vinte e seis locais  diferentes de Atenas a Espoo, de Porto a Bucareste ou Moscou. A premissa básica  é que as fronteiras são inapreensíveis, que programas arquitetônicos e os  limites urbanos são instáveis – mas, em toda parte, o excesso subjetivo de  “inovações autopoéticas” cria padrões de mudança reconhecíveis, pelo menos para  o observador que se mistura a elas. Para Boeri, cujo objetivo é desconstruir um  planejamento urbano antiquado, o olhar se vê é “o triunfo da multitude”:  transformando-se consistentemente, mas com padrões completamente imprevisíveis  de auto-organização situados em ambientes construídos que, cada vez mais,  perderam sua função predeterminada. Assim, uma das sequências (palavra-chave: détournement – desvio,  em português)  conta como os usos da comunidade chinesa transformaram completamente o programa  ideal de um enorme quarteirão habitacional moderno no 13º distrito de Paris.  Outro (palavra-chave: eruption – erupção) lida com a  organização cuidadosa das caóticas raves,  “nomadic flames” (chamas nômades): “Os trajetos de milhões de ravers e de tribos que invadem as ruas da Europa todos os finais de  semana nos deixam cada vez mais distantes de um destino preciso, funcional8. 
A referência à multidão no  texto de Boeri e, certamente, às telas do USO,  lembra o pensamento político da autonomia italiana, com o “êxodo” com um de  seus temas centrais, a retirada consciente do planejamento modernista e do  trabalho assalariado. Obviamente se trata de um dilema para os urbanistas  tradicionais, ou para qualquer político que queira exercer o controle: “Escapar  desta condição de impotência implica simplesmente na aceitação de ingovernabilidade  de uma grande parte do território contemporâneo”, escreveu Boeri. Isso, por  outro lado, significaria “aprender a agir em um contexto dirigido por  diferentes sujeitos, altamente variáveis”9. É o que chamaria de uma situação  de democracia radical.  
Mas a grande questão que  permanece é como usar uma instalação  como o USO, e como usar o modelo operacional de um grupo de  pesquisa em rede colaborativa como a Multiplicity. O dispositivo da exposição,  em si, elaborado fora do sistema galeria-revista-museu, é a melhor instalação  que já vi sobre o processo social interativo: com sua extensa matriz de  telas/monitores, ela abre um território real e imaginário, um mundo  multidimensional interrelacionado de liberdades subjetivas. Mas até que ponto  ele é politicamente eficaz? “Resistir não é ser contra, não mais, mas  singularizar”, escreveu Suely Rolnik, refletindo sobre as mudanças de  significados da prática artística desde a Grande Recusa dos anos 1960. “Todo e  qualquer ato de resistência é um ato de criação e não um ato de negação”10. 
Dito belamente – mas não tenho  certeza. O grande balanço teórico das três últimas décadas, da negação crítica  sobre o valor do uso e da afirmação subversiva, deixou as práticas  “progressivas” abertas a todas as forma de cooptação e cumplicidade. Apesar dos  processos autopoéticos que uma instalação como o USO tão brilhantemente nos leva a enxergar, o planeta inteiro – a  Terra espaçonave – é vítima do ressurgimento da autoridade repressiva, dentro  do jogo perfeitamente legítimo do mundo de economia capitalista. A Itália de  Berlusconi, onde esse projeto foi mostrado, não é uma exceção: e, no entanto, é  também um dos laboratórios para novas formas de mobilização política. Podemos  imaginar representações artísticas de processos auto-organizados em confronto  aberto com o jogo econômico? “As regras se opõem e descarrilam a subjetividade,  afrouxando os circuitos impressos do indivíduo”, escreveu Oyvind Fahlström. É  somente então que um território mais profundo emerge, um jogo de interação mais  complexo. Linhas  de poder/democracia radical.  
Brian Holmes, é pesquisador do  Bureau d'Etudes & Multiplicity. 
Notas 
Este texto foi originalmente publicado em  alemão no jornal Springerin, Viena,  Março 2002. 
1. “A suposição comum dos poderes políticos principais de nosso planeta de  que a guerra é a última solução causou o desenvolvimento da World  WAR Gaming Science (ciência do jogo da  GUERRA mundial) por parte das estratégias militares respectivas das grandes  potências. A World WAR Gaming Science envolveu todos os recursos terrestres. Minha World  PEACE Gaming Science (ciência do jogo da PAZ mundial) muda a premissa básica  sobre a incapacidade fundamental da manutenção total das funções vitais e  implica na capacidade total para o êxito de todos os seres humanos”. Buckminster Fuller, “Preamble and memorandum to those interested in  playing world game”, In: The world game: integrative resource  planning tool (Carbondale, Ill.: Southern Illinois University, typescript,  1971), p.2, disponível em: .  Fuller é, claro, quem cunhou a expressão “Terra  espaçonave”. 
  2. Citado em Medard  Gabel, "Buckminster Fuller and the Game of the World," disponível em:  .  Obrigado a Hubert Salden por ter me colocado neste caminho.  
  3. Uso a distinção de  Suely Rolnik's entre “playing-the-game” jogando o jogo e  “just-playing” apenas jogando,  em “Oyvind  Fahlström's Changing Maps”, exhib. cat. Oyvind Fahlström: Another Space for Painting,  MACBA, Barcelona, 2001. 
  4. Buckminster Fuller,  “Preamble and Memorandum”, op. cit., p. 6. 
  5. Entrevista  em 2 de maio de 1996, com Fabrice Hybert, artista que representou a França na  Bienal de Veneza, em Bureau d'Etudes, Chroniques  de guerre 2, brochure, February 2002. 
  6. Bruce  Sterling, “Information  wants to be worthless”, distribuída gratuitamente no Nettime, 6 de março de 2002, arquivada em: http://nettime.org. Deixe-me lembrar que um dos  laços mais ricos do Nettime ao longo dos anos diz respeito à “high-tech  gift economy”  (economia do dom da alta tecnologia). 
  7. Os  esboços diagramáticos e fichamentos de escândalos bancários de Mark Lombardi’s,  ou o website “TheyRule” de Josh  On and Futurefarmers (www.theyrule.net),  se aproximam de projetos recentes do Bureau d’Etudes. “TheyRule” introduz  o método DIY de rastreamento de corporações: os usuários podem construir  diagramas a partir da participação de um único CEO diretor-presidente, em  português em conselhos administrativos corporativos. No entanto, nenhum  projeto possui as ambições sinópticas do Bureau d’Etudes. 
  8. Paolo Vari, “USE.04 Raves”, In: exhib. cat. Mutations,  arc en rêve centre d'architecture, Bordeaux, 2000. 
  9. Stefano Boeri, “Notes for a Research Program”, In: Mutations,  op. cit. 
  10. Suely Rolnik, “Oyvind Fahlström's Changing Maps”, op. cit. 
Websites 
Oyvind Fahlström: 
  www.fahlstrom.com 
Bureau d'Etudes: http://utangente.free.fr
   (inclui  mapas) http://syndicatpotentiel.free.fr
   http://bureaudetudes.free.fr
   
Multiplicity: www.multiplicity.it
   
  www.classic.archined.nl/extra/archi_tv/tv3/eng/hoofdframe1.html 
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