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                             “O único mito moderno é o mito dos  zumbis” (2010: 445), anunciaram Gilles Deleuze e Félix Guattari em 1972. Esta  ideia adquire novo fôlego atualmente, um momento marcado pela presença quase  ubíqua do mito do zumbi nas mais variadas instâncias significativas do cenário  cultural global. Mas, se considerarmos apenas a trajetória da representação  cinematográfica dessas criaturas, podemos observar uma produção bastante extensa  e heterogênea, que se inicia logo nas primeiras décadas do século 20. Desde as  primeiras aparições do zumbi nos cinemas até a sua quase onipresença em todas  as mídias nos dias atuais, muitas mudanças podem ser observadas nessas  criaturas. Neste artigo iremos tratar especificamente de uma delas. A natureza  da relação estabelecida entre os personagens e os zumbis sempre se caracterizou  pela noção de proibição: não era possível estabelecer qualquer tipo de vínculo  entre eles além da abjeção que essas criaturas causavam aos vivos. No entanto,  podemos observar um movimento recente de diluição dessas fronteiras em  histórias de zumbis contemporâneas que seguem explorando diferentes  possibilidades de diálogo entre esses dois tipos de personagens. 
 Quando assistimos aos primeiros filmes  de zumbis realizados nos Estados Unidos nas décadas de 1930 e 1940, é bastante  perceptível que nessas histórias a relação entre os zumbis e os humanos é  marcada pela ideia de impedimento, de impossibilidade de interação afetiva.  Podemos observar isto muito claramente em Zumbi branco (Victor Halperin,  1932) e A morta-viva (Jacques Tourneur, 1943). Estes filmes são  ambientados no Caribe, e suas tramas giram em torno do mito do zumbi haitiano,  figura da cultura do Haiti que pode ser descrita como um indivíduo que, por  meio de feitiços, morre e retorna à vida para servir a um mestre (1). As tramas giravam em torno de  personagens norte-americanos que abandonavam seus territórios familiares com  destino a uma ilha do Caribe que, no decorrer dos filmes, revelava-se um local  perigoso, regido por forças sobrenaturais, de modo que o espaço era bipartido  simbolicamente entre o domínio da racionalidade (os Estados Unidos) e o espaço  dominado pelo sobrenatural e numinoso (o Caribe). A entrada dos  norte-americanos no espaço caribenho é representada como um movimento  transgressor que coloca em risco suas vidas, e a retaliação se materializa por  meio da ameaça de que as personagens norte-americanas femininas sejam  transformadas em zumbis.  
Segundo o mito haitiano, a  transformação de um indivíduo em zumbi corresponde a um “roubo” de sua alma e,  deste modo, resulta na impossibilidade de estabelecer qualquer vínculo afetivo  com outra pessoa. No entanto, nesses filmes, a transformação de uma personagem  feminina em um zumbi também representava a ameaça de que ela pudesse ser  possuída sexual e simbolicamente por um caribenho. A premissa de que uma mulher  branca pudesse se tornar um zumbi sob o domínio de um caribenho era  particularmente assustadora nesse período, na medida em que simbolizava o temor  norte-americano em relação ao contato com essa cultura, e com a miscigenação  racial, de modo que “o verdadeiro horror desses filmes estava centrado da  possibilidade de um ocidental se tornar dominado, subjugado, e efetivamente  ‘colonizado’ por um nativo pagão” (Bishop, 2008: 141). 
Essa situação se evidencia ainda mais  nesses filmes quando observamos que as norte-americanas efetivamente se  transformam em zumbis no decorrer das tramas, mas o seu contato com o caribenho  não se efetiva, sugerindo que a transposição das barreiras entre a vida e a  morte estaria mais próxima de ser aceita do que a diluição das barreiras que  separavam os norte-americanos e os caribenhos. Esta representação, no entanto,  também precisa ser entendida como parte integrante da estratégia discursiva dos  Estados Unidos, que legitimava a colonização e intervenção econômica no Haiti  (1915-1934), cuja estruturação é apontada por Frantz Fanon: 
O mundo colonial é um mundo maniqueísta. Não é o suficiente  para o colonizador delimitar fisicamente o espaço do nativo com a ajuda de um  exército ou força policial. Para mostrar o perfil totalitário da exploração  colonial, o colonizador retrata o nativo como uma espécie de quintessência do  mal (Fanon, 1963: 41).  
A partir da segunda metade do século  20, os zumbis dos filmes norte-americanos gradualmente perdem a herança  caribenha e passam por diversas experimentações, sendo relacionados com  alienígenas, pessoas contaminadas por experiências atômicas, e até mesmo com  comunistas, refletindo as ansiedades norte-americanas da década de 1950, até  estabilizarem-se como os famosos mortos-vivos que se alimentam de carne humana.  A primeira aparição destes remonta ao filme A noite dos mortos-vivos (1968)deGeorge A. Romero,  cuja narrativa segue um grupo que se abriga em uma casa relativamente afastada  da cidade para tentar sobreviver a uma epidemia que estaria trazendo os mortos  de volta à vida, investindo-os do desejo de se alimentar dos vivos. Deste modo,  vemos que nesse período os filmes de zumbis norte-americanos voltam-se para seu  próprio território, discutindo, por meio de sua estrutura espacial, os rumos da  sociedade norte-americana da época. Muitos outros cineastas se apropriaram  dessa mesma fórmula para criar suas próprias histórias de zumbis durante toda a  segunda metade do século 20. 
Nesses  filmes a tentativa de proximidade entre humanos e zumbis sempre gerava  consequências catastróficas: a cena em que uma criança de transforma em um  zumbi e mata seus próprios pais em A  noite dos mortos-vivos é icônica. No entanto, o que mais chama a atenção é  a total falta de relação entre os próprios humanos, na medida em que é o  comportamento violento e antissocial destes que acaba transformando o interior  dos abrigos em espaços tão ou mais contaminados do que o lado externo, povoado  por zumbis. Muitos filmes exploraram esse comportamento agressivo dos  sobreviventes para desenvolver críticas ao militarismo, ao racismo, ao  territorialismo, ao modelo patriarcal, entre outras questões sociais do  período. No entanto, talvez a maior crítica social desses filmes esteja  relacionada a um comportamento que o autor Kim Paffenroth chama de  “individualismo autoconfiante” norte-americano, caracterizado por uma profunda  desconfiança em relação ao governo e aos seus especialistas, ao endeusamento de  armas de fogo e de automóveis, e à mística da figura do lobo solitário. O autor  reflete que todas essas características juntas talvez pudessem dar uma vantagem  a essa sociedade no início de uma tragédia, mas logo a incapacidade de um  comportamento solidário e comunitário iria levar a população ao declínio, como  de fato ocorre com os sobreviventes da casa de campo em A noite dos  mortos-vivos, e em outros tantos  filmes de zumbis desse período: 
Considerando o cenário de uma invasão zumbi, ou qualquer  conflito civil ou desastre natural, os cidadãos norte-americanos,  individualistas autoconfiantes, profundamente desconfiados em relação ao  governo, aos intelectuais, armados com um número de armas de fogo que os  europeus consideram incompreensível entre as nações “civilizadas”,  provavelmente passariam melhor do que outras pessoas de outros países. Nós  iriamos todos nos trancar em nossas casas individuais e começaríamos a atirar.  Ou, melhor ainda, nós todos usaríamos a outra máquina intrinsecamente  americana: o automóvel, para dirigir por aí e atirar em zumbis. Nós iriamos  provavelmente ganhar certa vantagem sobre os zumbis a curto prazo em algumas  regiões, como é mostrado em A noite dos mortos-vivos e Despertar dos mortos. Mas na medida em que a crise continuaria, a não ser que o nosso  individualismo desse lugar a sentimentos de confiança, solidariedade e  comunidade, nós estaríamos condenados no momento em que nossos estoques de  munição e comida começassem a acabar e nós começássemos a lutar contra nós  mesmos. Notícias sobre o furação Katrina em que as pessoas começaram a pilhar e  a atirar nos funcionários de resgate, atrapalhando-os, infelizmente confirmam  isso. Nosso mito americano do lobo solitário, o cara durão que resolve todos os  seus problemas com seus punhos, ou mais frequentemente, com suas armas, não é  muito realista ou útil no mundo real; se a compaixão pela comunidade e a ajuda  ao próximo é posta de lado, pode-se dizer que é um caminho direto para a  perdição (Paffenroth, 2006: 21).  
Os  filmes de zumbis subsequentes de George Romero lidam intensamente com essa  situação de deterioração da humanidade dos sobreviventes, que ocorre em  paralelo a outro movimento, o da “humanização” dos zumbis. Essa dinâmica fica  bem evidente no terceiro filme de zumbis de Romero, Dia dos mortos (1985), no qual um zumbi chamado Bub é, de certa  forma, “adestrado” por um cientista, que vislumbra na experiência a  possibilidade de neutralizar a epidemia de zumbis. O condicionamento mostra  sinais de sucesso, mas acaba frustrado, pois, ironicamente, o comportamento dos  cientistas e militares do bunker militar onde os experimentos são realizados  não consegue ser civilizado o bastante para servir de exemplo ao zumbi: os  militares hostilizam Bub, e o cientista apresenta comportamentos éticos  bastante controversos. Ao final do filme, o zumbi adestrado demonstra mais  solidariedade e humanidade do que os militares e cientistas do bunker, quando  lamenta intensamente a morte de seu mestre. No quarto filme de zumbis de  Romero, Terra dos mortos (2005); não há outra tentativa de adestrar os  zumbis, mas estes são representados de forma muito mais humanizada do que os  sobreviventes, revelando-se as verdadeiras vítimas desse conflito entre humanos  e zumbis, invertendo assim o eixo de polarização inicial entre vítimas e  monstros. 
Esta desintegração social e afetiva  também é bastante problematizada no filme inglês I zombie: the chronicles of  pain (Andrew Parkinson, 1998), uma história melancólica sobre o conflito de  um homem que lentamente se transforma em um zumbi e por isso precisa se isolar  de todos, dentre eles, de sua namorada. No entanto, as cenas do início do filme  nos mostram um profundo desgaste no relacionamento dos dois, de modo que a transformação  do namorado em zumbi e o seu afastamento forçado parecem evidenciar mais uma  consequência do que um incidente trágico. 
No entanto, se observamos a produção  atual de histórias do gênero, podemos observar que a noção de impedimento no  relacionamento entre os zumbis e os humanos vem se diluindo, visando à  construção de várias formas de relacionamento entre os dois tipos de  personagens. No aclamado seriado francês Les revenants (Canal+, 2012)  vemos um grupo de pessoas que, inexplicavelmente, retornam à vida, e tentam  reconstruir, ou reformular, seus laços afetivos com seus amigos, namorados e  familiares. A série norte-americana Resurrection (ABC, 2014) também possui uma trama semelhante. Já o seriado inglês In the  flesh (BBC Three, 2013)  centra-se na história de Kieren Walker, um adolescente que comete suicídio, e  após retornar dos mortos como um zumbi, consegue ser reinserido na sociedade  graças ao desenvolvimento de uma droga que reverte o estado de zumbificação, de  modo que todos os zumbis passam a ser chamados de “sobreviventes da síndrome de  falecimento parcial”. Sua reinserção, no entanto, gera tensões e processos de  intolerância e exclusão. O fato de Kierem ser gay – e este ser o motivo de seu  suicídio – também levanta, nessa série, a questão específica de identidade  sexual. Outra produção que trata da questão da identidade sexual por meio da  interação entre um zumbi homossexual e a sociedade é o filme Otto; or, up  with dead people (2008) de  Bruce La Bruce(2). Estas obras, ao  sobreporem as tensões disruptivas da morte e da sexualidade, potencializam  imensamente a intensidade desta discussão. 
Outra forma de uso político da relação  entre vivos e mortos é abordada em Candidado maldito (Homecoming, Joe Dante, 2005) episódio da série  televisiva Masters of horror (Showtime,  2005) no qual soldados mortos nos conflitos do Oriente Médio ressuscitam  na época das eleições para evitar que George W. Bush se reeleja. O contato que  se estabelece entre os dois tipos de personagens funciona como uma espécie de ensinamento,  que é transmitido dos zumbis para os cidadãos norte-americanos, visando à  construção de uma identidade nacional mais positiva. Essa interação construtiva  não ocorria em filmes de Romero, ou em filmes de cineastas inspirados pelo  diretor, como em Dead of night (Bob  Clark, 1972), por exemplo, um filme que conta a história de Andy, um soldado do  Vietnã que é trazido de volta dos mortos por meio de orações de sua mãe, mas  precisa se alimentar dos vivos para evitar que seu corpo se decomponha. Um filme,  portanto, de contornos muito mais niilistas do que Candidato maldito. 
Já  no filme satírico canadense Fido – o mascote (Andrew Currie , 2006) os zumbis são reinseridos na sociedade  após o desenvolvimento de um colar que os tornam dóceis, de modo que podem ser  utilizados para as mais variadas funções. O filme conta a história do casal  Bill e Helen, que adquire o zumbi Fido e este se torna o melhor amigo de seu  filho Timmy. No decorrer do filme, a personalidade de Fido acaba se sobrepondo  a de outros personagens, culminando em um final em que Helen e Timmy  descobrem-se mais contentes ao lado do zumbi do que de Bill. 
As  tensões relacionadas aos relacionamentos amorosos também estão sendo tratadas  em livros e filmes que adotam a perspectiva do zumbi em suas tramas. Para sanar  a falta de densidade psicológica dos zumbis, condição que os tornariam  protagonistas literários fracos, os livros inserem complexidade cognitiva a  esses monstros. Alguns livros estão se tornando bastantes populares ao combinar  em suas tramas zumbis com densidade psicológica e romance, como Warm bodies (2010) de Isaac Marion, adaptado  para o cinema com o título em português de Meu namorado é um zumbi (Jonathan Levine, 2013); e o romance de humor negro Breathers:  a zombie's lament (2009)  de S.G. Browne, que atualmente também está sendo adaptado para os cinemas.  
Certamente seria necessário  desenvolver uma análise mais delongada das obras contemporâneas que apontamos,  mas uma hipótese inicial seria a de que esta diluição das barreiras  comunicativas entre zumbis e humanos parece estar sendo utilizada em dois  principais tipos de tramas: (1) histórias que exploram questões políticas, como  críticas nacionais (Candidato maldito),  e políticas de identidade de minorias sociais (In the flesh; Otto); (2)  e histórias que exploram questões afetivas (Les  revenants; Meu namorado é um zumbi).  Estes dois movimentos também podem ser encontrados de forma associada, como  ocorre em muitos capítulos de In the  flesh, que mesclam conteúdo crítico político com temas e questões afetivas. 
Neste sentido, é interessante observar  que os zumbis sempre parecem dizer muito sobre os vivos, mas, diante da  impossibilidade destes escutarem o que eles tinham a dizer sobre a intolerância  com outras culturas (zumbi haitiano), ou dentro de sua própria sociedade (zumbi  romeriano), o zumbi contemporâneo parece ter aprendido a se comunicar melhor,  para garantir que seu recado seja enfim entendido. 
Paula Gomes é  formada em rádio e TV pela Unesp e mestre em imagem e som pela Universidade  Federal de São Carlos. paulagomesrtv@gmail.com  
Notas: 
  1 – A principal  referência destes filmes sobre o zumbi haitiano é advinda da literatura de  viagem de antropólogos e exploradores que retratavam a região e seus costumes  pelo viés do exótico, como The magic island (1929) de William Seabrook,  e Tell my horse (1938) de Zora Neale Hurston. 
  2 – Bruce la Bruce  também lançou em 2010 o controverso L.A Zombie. O filme também contém a  temática gay, mas é menos político e possui mais cenas de sexploitation do que Otto. 
REFERÊNCIAS  
  Bishop, K. W.” The  sub-subaltern monster: imperialist hegemony and the cinematic voodoo zombie”.  In: The Journal of American Culture, vol.3,1 nº.2, 2008, p.141–152. 
  Deleuze, G. e Guattari, F. O anti-Édipo: capitalismo e esquizofrenia. São Paulo: Editora 34, 2010. 
  Fanon, F. The  wretched of the earth. New York: Grove Press, 1963. 
  Hurston, Z. N. Tell  my horse: voodoo and life in Haiti  and Jamaica. New York: HarperCollins, 2008. 
  Paffenroth, K. Gospel  of the living dead: George Romero's  visions of hell on earth. Texas: Baylor University Press, 2006. 
  Russell,  J. O livro dos mortos. São Paulo: Leya Cult, 2010.  
  Seabrook,  W. B. The magic island. New York: Paragon House, 1989. 
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