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 Mudam-se os tempos,  mudam-se as vontades...  
    (Luís Vaz de  Camões) 
 Estabelecer  comparações entre diferentes gerações é sempre operação arriscada e que deve  ser realizada com adequada cautela. A dimensão de risco encontra-se no difícil  estabelecimento de quadros empíricos concretos de cada uma das épocas e no diferencial  de tempos históricos, condições materiais objetivas e ambiência cultural de  cada uma das épocas que se quer colocar no jogo da comparação. Não é incomum se  encontrar análises comparativas que supervalorizam o presente, considerando-o inaugurador  de práticas e sentidos superiores de ação coletiva em comparação com o passado.  Descuida-se, assim, de reconhecer que o hoje é resultado de múltiplas mediações  daquilo que se processou no passado e que nos permitiu chegar onde hoje estamos  e também de nossa contemporânea possibilidade de imaginar futuros. Da mesma  forma desequilibrada, é possível sobrevalorizar processos e acontecimentos de  um passado heroico que seria “fundador” de formas e conteúdos superiores de se  fazer movimento social e política. É neste último sentido que se ancoram muitas  das análises que enxergam a “apatia” dos “jovens de hoje” diante da energia  mobilizada pelos “jovens de ontem” – ou os adultos de hoje – que enfrentaram, por  exemplo, a ditadura militar. 
 Tendo este  alerta em mente, é possível seguir com a proposta deste artigo, que é a busca  por pensar comparativamente  a participação política de três diferentes gerações de jovens brasileiros. Pensar a  juventude é reconhecer que existem diferentes formas e situações objetivas que  condicionam o fato de ser jovem – diferentes juventudes. Significa buscar compreender  como cada sociedade divide e representa esse momento da vida ou de que forma  cada grupo social específico atribui sentidos e valores para aqueles que ainda  não estão plenamente integrados na esfera da vida produtiva e da tomada de  decisões. Deve-se considerar que essas atribuições são variáveis segundo cada  tempo histórico. É preciso também estar atento para como os próprios sujeitos  que são considerados jovens representam, encaram e experimentam o tempo de  juventude e as diferentes maneiras de se entrar na vida adulta que são variáveis  segundo as origens sociais de cada um. 
 Marialice  Foracchi (1972) analisou sociologicamente o conflito de gerações naquilo que se  convencionou denominar de a “rebelião da juventude”, em função, principalmente,  das mobilizações estudantis que sacudiram boa parte do mundo ocidental a partir  do ano de 1968. A citada cientista social paulista dispensou especial atenção  ao movimento estudantil por considerar que este se constituía na forma  predominante do fenômeno da rebelião juvenil na sociedade moderna. Seu  pressuposto era o de que a juventude representa a categoria social sobre a qual  incide, de um modo bastante particular, a “crise do sistema” das sociedades  modernas. Na juventude e em seus comportamentos singulares estariam contidas as  omissões, as contradições e os benefícios de certa configuração social de vida  histórica e transitória que, ao esgotar-se, dilapidaria seu potencial humano e  nele investiria suas perspectivas de sobrevivência. 
 Nesse sentido, a  “rebelião da juventude” dos anos 1960 seria uma resposta possível à crise da  sociedade moderna – caracterizada pela não realização das promessas de ascensão  social e desenvolvimento – e o movimento estudantil, um fenômeno paradigmático  dessa rebelião. No caso específico brasileiro, os jovens, e em especial aqueles  organizados nos movimentos estudantis, enxergaram no combate à ditadura militar  um horizonte de enfrentamento à contradição fundamental que interditava a  liberdade e o estado de direito democrático. Algo pelo qual valia a pena se  organizar e lutar, a despeito de todos os riscos. 
 Vive-se,  hoje, inusitados processos de transição para a vida adulta que nem de longe  lembram a antiga dependência e subordinação dos jovens em relação a seus pais.  Contudo, ainda que o campo de liberdade tenha se alargado, a dependência dos  jovens, especialmente a econômica, se constitui em entrave real para a  conquista da autonomia entendida como conclusão do processo de individuação, ou  seja, do indivíduo que passa a ser sujeito de seu próprio destino. Ou ainda, como  diriam nossos pais: “dono do próprio nariz”. 
 Os “filhos da liberdade”, segundo feliz expressão  do sociólogo Ulrich Beck (1989), voltaram a atenção para valores como a paz, o  ambiente, os direitos humanos, dos animais, a autorealização, a liberdade de expressão  e a cotidianidade. Estes também desconfiam das instituições e buscam se  envolver em processos sobre os quais percebem que podem controlar diretamente  sem delegar a representação política para terceiros. Alguns  coletivos juvenis emprestam novos sentidos ao político e elaboram, com outras  lógicas e sensibilidades, múltiplas formas e conteúdos de ação coletiva na  experimentação da esfera pública. É preciso ampliar as investigações para que  se possa aprofundar a compreensão sobre as maneiras pelas quais jovens  participam da construção de novas esferas públicas comunicativas, ocupam o  espaço público e contribuem para a redefinição dos sentidos da política. 
 Bringel (2013, p.48),  enuncia dois grandes ciclos de ação coletiva que representariam padrões diferenciados  de relações entre o Estado e sociedade: 
(....) O primeiro  emerge na década de 1970 e tem como inflexões importantes a alta intensificação  do conflito de finais dos setenta, a queda dos militares e as Diretas Já,  concluindo com o impeachment de Collor de Mello. O segundo ciclo acontece no  início dos anos 1990, com novos atores e perspectivas de atuação. Enquanto o  primeiro tende ao conflito, à ação coletiva menos institucionalizada e à  autonomia e crítica ao Estado, o segundo busca mais a cooperação, a ação mais  institucionalizada, uma aproximação maior entre movimentos sociais e Estado.  
 Breno  Bringel (idem) ressalta ser ainda cedo para dizer qual o padrão de ator  coletivo e movimento social que irá emergir das manifestações recentes, em  especial, naquilo que diz respeito às relações sociedade-Estado. 
 De qualquer  forma, as manifestações que tomaram as ruas e praças do Brasil em 2013,  guardando nossas especificidades nacional e regionais, integram um amplo e  diferenciado espectro do ciclo de protestos ocorridos em diferentes partes do  mundo. O fenômeno, pela sua atualidade, e do qual ainda não podemos extrair  todas as consequências, parece sinalizar para uma redefinição do espaço público  sob o forte protagonismo de jovens que emitem sinais nem sempre claros, sem uma  agenda coletiva comum, mas que se dirigem criticamente contra sistemas sociais,  econômicos e políticos e, notadamente, para as precariedades da vida nas  grandes cidades. Em alguma medida, pode-se dizer que no referido ciclo de  protestos, jovens emitiram sinais antagonistas aos sistemas que interditam a  vida no presente, constrangem a participação na vida pública e fazem do futuro  um campo de incerteza. 
 Junto com as  manifestações que ocuparam o espaço público das ruas e a esfera pública das  diferentes mídias, chegaram também interpretações de perplexidade sobre o que  se compreendeu como uma surpresa. Afinal, aonde estavam esses jovens que não se  mobilizavam tão massivamente desde o impeachment do presidente Collor? Entre a  visibilidade dos caras pintadas dos anos 1990 e as jornadas de junho de 2013 parece  ter havido um abismo de envolvimento juvenil na vida pública. Em verdade, o que  aconteceu foi a miopia do visível (cf. Melucci, 1989) que não permite  compreender as ações coletivas e movimentos sociais para além de seus efeitos aparentes.  É preciso olhar não apenas para os lugares tradicionais de participação social  e política aos quais nos acostumamos a procurar os jovens engajados. O desafio  é encontrar as redes submersas dos engajamentos e compreender os seus sentidos no  presente para não nos tornarmos reféns desse efeito de ofuscamento que produz  análises sobre movimentos apenas por aquilo que é evidente. 
 O  estopim dos ciclos de mobilizações de rua em 2013 foram os protestos e  interdições do trânsito organizados pelo Movimento do Passe livre (MPL) em São  Paulo, que dramatizou uma das mais sensíveis dimensões da cotidianidade hoje, a  mobilidade urbana. Não seria exagero dizer que esses protestos deram visibilidade  à crise sistêmica do modelo neoliberal de desenvolvimento, ainda que, no caso  brasileiro, este tenha sido atenuado com políticas sociais compensatórias e  alguma mobilidade econômica e social das classes mais empobrecidas. 
 Uma  outra dimensão comum dos protestos que eclodiram em 2013 foram as expressões de  ativismos horizontalizados, que investem em tomadas de decisão por consenso e  na visibilidade da presença dos corpos nos espaços públicos das ruas, praças e redes  sociais da internet. As muitas imagens que circulam sobre os protestos  evidenciam dispositivos de amplificação das críticas e que se manifestam na  forma de múltiplas mensagens em cartazes, em tambores que marcam a presença dos  corpos e a cadência dos protestos, em metáforas eloquentes de coletivos que  projetam imagens em prédios e de velas que, acessas no espaço público, parecem  querer iluminar o caminho e visibilizar   indignações múltiplas.1 Os jovens contribuíram para gerar um espaço público mais democrático com suas  destrezas e manejos das redes sociais e outras ferramentas da internet (blogs,  twitter, streammings etc). Essas formas de comunicação alargaram e construíram  dissidências no espaço público midiático dominado pelas grandes corporações  midiáticas. 
 As  redes sociais de internet são dispositivos que possibilitam a instantaneidade  da resposta por agentes individualizados ou coletivos que possuem grande  agilidade para produzir conteúdos mobilizadores que as mídias clássicas e  corporativas, produtoras de conteúdos jornalísticos, tais como a televisão e os  jornais, não têm. Através de publicações rápidas, comentários e mesmo o simples  “like” do Facebook, se constroem cumplicidades entre diferentes atores  envolvidos nos protestos e mobilizações. 
 O  chamado midiativismo foi responsável pela elaboração de contra-relatos sobre as  imagens negativas que as mídias hegemônicas e as autoridades se apressaram em  construir sobre os jovens participantes dos protestos iniciados em junho de  2013. Esses contra-relatos velozes, possibilitados pelos aparatos tecnológicos  e redes de comunicação da internet, foram capazes de atingir redes específicas  e significativas de formadores de opinião que não estavam presentes nas  insurgências estudantis e juvenis dos anos de 1968. É preciso reconhecer que há  uma dimensão lúdica dos protestos recentes que já se fazia notar nos anos 1960  e 1970, como convergência entre radicalização da luta política e a  contracultura da época (cf. Ryoki e Ortellado, 2004). Contudo, novas formas de  expressão emergiram, disputando tanto a busca de atenção das mídias hegemônicas  quanto criando seus próprios canais de visibilidade social e política. Esse é  um fato que confere às mobilizações contemporâneas novidade que ainda nos cobra  análises sobre seus alcances societários e consequências na esfera pública, que  somente com o tempo poderemos equacionar. 
 As  manifestações foram produtoras de empoderamentos pessoais significativos. Não  necessariamente no sentido narcísico, mas na direção da percepção de que “a  minha atuação” pode fazer diferença na política sem que “eu” necessite delegar  para um representante o poder de atuação. A realidade parece dizer “meu corpo  tem poder”, “minha voz pode ser ouvida” e “eu posso influenciar” na construção  de mudanças. Os jovens percebem que mobilizar-se é algo que faz sentido, que  influencia e que pode mesmo atemorizar as autoridades. E que individual e  coletivamente é possível interromper o fluxo do cotidiano e alterar o ritmo da  vida nas cidades. Há, sem dúvidas, inúmeras tensões entre os coletivos que  precisam combinar os sentidos das novas expressividades na esfera pública e a  necessidade de deliberar e organizar a luta política em bases horizontais.  Contudo, parece haver entre jovens militantes de hoje a consciência de que uma  nova sociedade está se fazendo aqui e agora, como cantou Elis Regina na música “Redescobrir”,  de Gonzaguinha: no “suor dos corpos na canção da vida, o suor da vida no calor  de irmãos”. 
 Paulo  Carrano é doutor em educação e professor da Universidade Federal Fluminense  (UFF). Coordena o grupo de pesquisa Observatório Jovem do Rio de Janeiro/UFF e  integra a diretoria da Associação Nacional de Pós-Graduação em Educação (ANPEd).  E-mail: pc.carrano@gmail.com  
 Referências bibliográficas 
 Beck, Ulrich (ed.). Hijos da la libertad. Buenos Aires,  Fondo de Cultura Económica, 1999. 
  Bringel, Breno. “Miopias,  sentidos e tendências do levante brasileiro de 2013”. Insight Inteligência (Rio de Janeiro), v. 62, p. 42-53, 2013.  
  Foracchi, Marialice M. A juventude na sociedade Moderna. São  Paulo: Livraria Pionêra Editora, 1972, pp.19-32.  
  Melucci,  Alberto. “Um objetivo para os movimentos sociais”. Revista Lua Nova – SP – junho, 1989, n. 17. 
  Ryoki,  André e Ortellado, Pablo. Estamos  vencendo! Resistência global no Brasil. São Paulo: Conrad Editora do  Brasil, 2004.  1 Velas foram  acessas na Cidade do México e mensagens foram projetadas 
em prédios públicos e  residências de políticos no Rio de Janeiro. Esta 
última forma de protesto foi  utilizada pelo “coletivo projecionista” no
 que se convencionou chamar de “Ocupa  Cabral”, ocupação que se montou 
em frente à casa do governador do Rio de  Janeiro Sergio Cabral, em 
2013, para exigir o aparecimento do pedreiro Amarildo  torturado e 
sequestrado por policiais militares na favela da Rocinha. E também  para
 exigir a renúncia do governador frente à repressão dos protestos de rua
 no  Rio de janeiro. O “Coletivo Projetação”, formado por 15 jovens, se 
destacou no  cenário dos protestos. A página desse coletivo está 
disponível no seguinte  endereço da internet: http://projetacao.org/ 
  
 
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