| 
                            
 Minha  experiência mais direta com a China restringe-se a duas visitas que fiz a  Pequim em duas circunstâncias distintas. 
A primeira  dessas visitas deu-se em 1991 quando, reitor da Unicamp, integrei uma missão  diplomática formada também por reitores de outras universidades, para tratar do  acordo de cooperação da Capes, já vigente, visando ao intercâmbio acadêmico  entre o Brasil e aquele país. 
Era uma viagem  programada para 15 dias, sendo a primeira semana em Pequim e o restante em  outras cidades e regiões da China. Fiquei com o grupo só metade da viagem. Tive  de regressar por causa de uma greve das universidades estaduais paulistas que  se anunciava forte e que eu julgava necessário resolver no nível do Conselho de  Reitores das Universidades do Estado de São Paulo (Cruesp) para evitar  desgastes políticos e prejuízos acadêmicos para as instituições. 
Como se tratava  de missão oficial e como estava na China dos primeiros anos pós-revolução  cultural, a autorização para interromper a minha participação na programação  estabelecida e antecipar minha volta foi uma experiência que me fez vivenciar,  mais de perto a realidade de um país altamente controlado, do ponto de vista  social e político e extremamente hierarquizado nas funções do estado para com a  regulação e administração desse controle. 
Além dos  trâmites junto à embaixada brasileira, tive de falar com um dos vários  vice-ministros da pasta da educação e explicar-lhe a situação que me forçava a  volta antecipada. Tudo isso num ritual de procedimentos que, de um lado,  tornavam a experiência interessante e, de outro, esticavam a corda das  dificuldades para minha liberação da missão que havia me trazido à China.  Depois, enfim, de passar pela entrevista das poltronas, paralelas numa sala de  audiências com várias outras poltronas acompanhando o quadrado formado pelas  linhas das paredes, recebi, com a compreensão do vice-ministro, o meu  passaporte que se encontrava, juntamente com os dos membros do grupo, com o  pessoal que nos atendia e nos acompanhava nos nossos deslocamentos oficiais  para cumprir a agenda protocolar de nossas visitações, encontros e audiências. 
Ficamos  hospedados num dos hotéis situados num dos grandes eixos das enormes avenidas  da cidade que se estendiam na monotonia da arquitetura de inspiração  realístico-soviética e que escondiam, logo atrás da linha reta do paralelismo  que parecia infinito, aglomerados de residências exíguas, comprimidas e dispostas  em torno de pátios, onde viviam famílias cuja renda familiar devia estar na  margem dos 10 dólares, valor vigente do salário mínimo, na época. O Estado,  teoricamente, provia a imensidão do resto: saúde, educação, moradia, segurança  e bem-estar social. 
A maior parte da  população vestia-se ainda com o terninho clássico de Mao, usava bicicletas para  a locomoção e o transporte de cargas, os ônibus e o metrô viviam abarrotados a  qualquer hora do dia, num trânsito caótico, mas que parecia funcionar, a moeda  era dupla, uma para dentro, outra para fora, o controle de natalidade era  rigorosíssimo e o país parecia ensaiar os passos de uma nova situação em novos  cenários de uma economia que se fazia pressentir mas que, ambígua e  dissimuladamente, ainda se escondia, sem deixar de revelar-se em pequenos  sinais, simbolicamente expressivos, contudo, como a presença da rede Mcdonald’s  e da Pizza Hut, onde, em uma das lojas, fomos, cansados do gosto de gordura de  pato de toda comida, parar uma noite com saudade do sabor fast-food de nossos hábitos ocidentais. 
Pouco menos de  uma década depois, em 1999, voltei a Pequim, dessa vez em viagem de passeio,  acompanhado de minha mulher, depois de termos estado em Macau para o IV  Congresso de Jornalismo de Língua Portuguesa. Fiz no Observatório da imprensa um relato dessa ida a Macau e das impressões  que o ainda então território português despertara no professor apaixonado pela  narrativa épica da viagem de Vasco da Gama contida na imortalidade dos versos  de Luís de Camões em Os Lusíadas que  por ali quase perdera o canto e também, a vida (“Aqui se fala português?”)  
O que se via em  Macau, prestes a ser reintegrado à China, já prenunciava o que veríamos em  Pequim: grandes obras, grandes mudanças de cenário urbano e um cosmopolitismo neófito,  mas seguro da escolha da nova profissão de fé. 
Dessa vez, como  as decisões eram pessoais, ao planejar a viagem, contratamos, através de uma  agência de turismo, além dos bilhetes e do hotel, um serviço de carro e de um  guia turístico para nos acompanhar, com a ideia de que, assim, poderíamos  aumentar um pouquinho nossas chances de ter algum acesso, mesmo que pequeno e  epidérmico a hábitos, costumes e valores dessa impressionante cultura fechada  em segredos e aberta, milenarmente, em deslumbramentos.    
Acertamos na  decisão e fomos sorteados com o guia que nos atendeu: uma moça falante fluente  de espanhol que nunca saíra de seu país, mas que falava perfeitamente a língua  que aprendera na universidade para o exercício competente de sua profissão. 
Pudemos, assim,  pouco que fosse, nos aproximar da malícia curiosa, da inteligência viva, do  humor criativo e de uma propensão para dar um jeito nas coisas que nos fazia  sentir familiarizados com traços culturais tão distantes e, ao mesmo tempo, tão  evocativos de modos de ser que caracterizam nossa cultura. Impressões de  viagem, ilusões de simpatia!? 
Pode ser. O fato  é nos sentimos mais “em casa” do que eu havia me sentido da primeira vez. Esse  sentimento, é claro, talvez tenha também a ver com o fato de que Pequim era um  canteiro de obras e uma cidade em transformação. Ruas, calçadas, prédios,  lojas, restaurantes, tudo se modificava e dava bem a medida do processo que  estava em curso para alterar a economia do país e transformá-la na segunda do  mundo, desbancando o Japão e perseguindo tenazmente a liderança dos Estados  Unidos. 
Com uma  tecnologia de governança capaz de dar nó em pingo d’água, de um lado pela  concentração hierarquizada do poder político, que continua firme e, de outro,  pelo jeito sagaz e pragmático de conciliar centralismo político com liberdade  para o crescimento econômico, a China, a seu modo, não só avançou no  crescimento de seu PIB, como também se constituiu no exemplo mais flagrante de  uma nova realidade de gestão do capitalismo no mundo contemporâneo, aquela em  que os agentes econômicos não tem interesse político, propriamente dito, pelo  poder, mas sim um interesse técnico-pragmático pela eficiência e eficácia do  modelo em produzir resultados de riqueza, crescimento e expansão. 
  Desse modo, poder-se-ia  dizer que o modelo chinês instaura e inaugura um novo padrão de governança  política baseado, além do fechamento e mesmo da clausura das decisões dos governantes,  na comunicação constante e maciça que as novas tecnologias possibilitam como  informação, como propaganda e como inclusão, ainda que virtual, num sistema  cerrado e infenso a aberturas reais. 
O que mais as  tecnociências têm a ver com o desempenho emergente e hoje já espetacularmente  emergido desse país líder nos Brics e maratonista no encalço dos EUA, é o que  este número da ComCiência vem tentar  elencar e buscar, junto com o leitor, compreender.    
                         |