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                             A técnica � parte da condição humana.  Sem ela não haveria como o ser humano relacionar-se com um mundo que  lhe �, em primeira instância, hostil. A conformação corporal em  direção a uma motricidade muito refinada, em consonância com o  desenvolvimento de um cérebro capaz de operações altamente  complexas, permitiu que houvesse consciência do humano sobre si  mesmo, o que, entre outras potencialidades, ofereceu-lhe a  possibilidade de operar com seu corpo, tornando-o o primeiro  instrumento técnico de que se tem notícia. 
  Embora o corpo não seja apenas  instrumento, o que � evidente, � preciso lembrar sua dimensão  técnica construída no confronto com as dificuldades impostas pela  natureza que nos circunda. � por meio da técnica � uma ação  deliberada sobre um objeto no sentido do seu domínio e eventual  transformação � que não apenas a espécie seguiu viva sobre a  Terra, mas foi capaz de fazer dela um lugar habitável, resultando  também na produção de obras que oferecem durabilidade para além  da vida ordinária de cada um de nós, como � o caso das artes e  também dos esportes, como veremos logo adiante.
  Como primeiro instrumento do ser humano, o  corpo se desenvolve não propriamente no interior da natureza � com  a qual est�, por assim dizer, em oposição � mas na cultura. Por  isso não � possível, no limite, afirmar o que seria natural ou  artificial no corpo, j� que este �, como tal, artifício, produção  cultural e social. Max Horkheimer certa vez escreveu que não s� os  instrumentos são e sempre foram prolongamentos do corpo, mas este  igualmente prolonga aqueles. Mostrando que as possibilidades técnicas  de um tempo dão, em grande medida, a moldura de sua interpretação,  o filósofo alemão reivindica o caráter histórico dos  instrumentos, seu lugar como constituintes da condição humana. Mais  ainda, argumenta que a percepção humana também se diferencia em  consonância com o aparato técnico disponível, alterando-se o campo  analítico conforme, por exemplo, os instrumentos científicos que o  tempo nos oferece. Esse movimento não �, no entanto, linear, de  forma que o horizonte interpretativo pode se alargar com novas  ferramentas, mas também estreitar-se, nem tanto pelos resultados  oferecidos pela pesquisa, mas pelas perguntas que os instrumentos  disponíveis, de alguma forma, j� de antemão formatam, enquadrando  com isso também as respostas.
  Se o humano depende da sua capacidade  técnica para tomar o próprio corpo como instrumento � e com ele,  pela força do pensamento, construir outras ferramentas que, por sua  vez, gerem novos instrumentos �, esse processo, sendo  historicamente produzido, não foi igual, tampouco homogêneo, ao  longo de tantos anos de evolução humana. Esta, por sua vez, foi  diversa e não isenta de conflitos de toda espécie. 
  H�, no entanto, um momento fundamental na  relação entre corpo e técnica, ou ainda, mais especificamente,  entre corpo e tecnologia (a forma de organização das técnicas de  um tempo), que ganha espessura com a chegada da modernidade. Não �  fácil delimitar uma data de nascimento para ela, mas pode-se, no  entanto, falar de um espírito ou de uma experiência moderna, na  qual o descentramento do mundo e sua relativa secularização  trouxeram consigo a razão como critério e a ciência como discurso  privilegiado. 
  Na modernidade o corpo atinge novas  configurações em sua relação com a ciência, que passa a tom�-lo  com um de seus objetos. Corpo que deixa de ser sagrado e pode ser  aberto e estudado nos anfiteatros anatômicos, da mesma forma que o  conhecimento sobre a circulação sanguínea confere-lhe uma dimensão  maquinal que ganhar� contornos e metáforas insuspeitadas, como os  emergentes relógio e máquina a vapor. Da astrologia � astronomia,  da alquimia � química, da possessão demoníaca � doença mental,  a ciência se consolida e o corpo agora �, assim como a natureza que  lhe � externa, mecanismo a ser entendido, controlado,  potencializado. � nesse contexto, cuja complexidade não pode ser  inteiramente exposta aqui, que nasce o esporte.
  Atividades lúdicas e ritualísticas  medievais e dos inícios do mundo moderno foram sendo, pouco a pouco,  sistematizadas na forma esportiva, com as características que essa  nova prática social, cujo impulso � o mesmo da Revolução  Industrial, comporta: competição e maximização de desempenho, em  primeiro lugar. Com essas exigências, e tendo o corpo como  instrumento por excelência, faz todo o sentido que o esporte seja  uma das experiências em que a incorporação tecnológica se d� de  maneira mais eloquente. Refiro-me, principalmente, ao esporte de alto  rendimento, praticado por atletas em regime intensivo de treinamento  para competição, mas que se mostra estrutura modelar para a prática  não menos desinteressada de amadores e frequentadores de academias  de ginástica e musculação.
  O corpo não � uma máquina, mas no  esporte ele � visto (também) como tal, j� que de outra forma não  seria possível que ele fosse treinado, preparado para o melhor  rendimento. Observe-se que um conjunto de disciplinas científicas  vão, pouco a pouco, dando forma e sentido para o esporte, promovendo  sua evolução. Dentre elas, a fisiologia, cujos estudos que  interessam ao esporte chamam a atenção no parentesco com a  abordagem de outros objetos. A fisiologia do exercício �, de certa  forma, um desdobramento da fisiologia do trabalho, mais  especificamente, dos estudos sobre fadiga, fundamentais em um  ambiente como o da Revolução Industrial, quando logo se notou que  era preciso calcular a carga suportável para que a manutenção e  reprodução da força de trabalho fossem possíveis. 
  Uma outra importante linha com a qual se  cruzam os estudos sobre a fisiologia do esporte � a do interesse  bélico, não sendo casual que parte das pesquisas sobre rendimento  esportivo seja realizada nas forças armadas. O esporte dramatiza a  guerra, da qual importa métodos de preparação e informações  sobre os limites do corpo � por exemplo, que reações ele  apresenta em escassez de oxigênio, como pode acontecer com pilotos e  também com atletas de provas de longa distância � e de onde se  inspira para desenvolver seu vocabulário: capit�(o), artilheiro(a),  tiro (livre), tática, flanco, estratégia, arco, defesa, ataque etc. 
  Uma terceira característica dessa  incorporação tecnológica est� na constante e ininterrupta  produção de estresse sobre o corpo, marca do treinamento esportivo,  sem a qual o alto rendimento não seria possível. Colocar o corpo  sob permanente desconforto para que durante os momentos de  recuperação ele “responda� com uma adaptação morfofisiológica  superior � uma premissa do treinamento. A questão � que o esporte  de alto rendimento não conhece limites � “recordes são feitos  para serem batidos�, costuma-se dizer �, de forma que a fronteira  do possível � mais que difusa e constantemente ultrapassada. Não  por casualidade, os atletas aprendem a conviver com a dor como se ela  fosse não apenas “natural�, mas, em certos casos, at� mesmo  desejável.
  Desde muito o esporte, e o treinamento para  ele, esteve associado � tecnologia. Enquanto nos anos 1930 os  atletas de corrida de velocidade faziam covas rasas na pista para  ajustar a posição de saída para obter vantagens na propulsão, h�  pouco se proibiu maiôs de natação que proporcionavam um  deslizamento mais rápido nas águas, material tecnologicamente  desenvolvido e que ajudou a pulverizar vários recordes mundiais. As  pistas de atletismo têm piso que potencializa a velocidade, os  calçados são muito flexíveis, as camisetas de futebol ajudam a  manter a temperatura corporal porque facilitam a troca de calor com o  ambiente. Toda uma parafernália � utilizada em treinamentos e na  recuperação de atletas, a exemplo de máquinas ultramodernas e com  funções muito específicas, controladas por profissionais altamente  especializados, que se combinam com infinitas possibilidades de  captação de imagens e, com elas, de decodificação biomecânica  dos movimentos. Isso sem falar nas análises bioquímicas e nas  investidas sobre a psique. Em paralelo, a tecnologia compõe o  próprio espetáculo esportivo, seja porque a presença dos esportes  � hoje mais que presente nos meios de comunicação e  entretenimento, seja porque máquinas ajudam cada vez mais a dirimir  dúvidas e certificar resultados, como na cronometragem eletrônica  no atletismo, ciclismo e natação, ou na arbitragem de linha no  tênis e voleibol. At� mesmo o conservadoríssimo futebol est�  prestes a oficializar, em definitivo, o uso de um sensor no interior  da bola que demarcar� se ela entrou ou não totalmente no gol,  conferindo o ponto � equipe e diminuindo as exigências e pressões  sobre os árbitros.
  A tecnologia no esporte, então, comporta  pelo menos dois momentos, sendo o primeiro aquele em que ela se  incorpora ao atleta, ou melhor,  em que este � produzido, em larga medida, por ela. Este momento se  d�, principalmente, nas práticas de treinamento que promovem  modificações corporais. O segundo refere-se àquela tecnologia que  cerca o corpo e os movimentos sincronizados, ou não, que ele realiza  nos treinamentos e competições, incluindo os sofisticados  implementos que são como que uma continuação corporal, uma  prótese, por assim dizer, que aumentam a eficiência (ou diminuem a  deficiência, o que, finalmente, � a mesma coisa). Poderíamos dizer  que, se no primeiro caso deparamo-nos com questões que expressam  dilemas do presente e contemporâneos lugares sociais da tecnologia  no que se refere aos limites do corpo, no segundo discute-se, com  mais frequência, a legitimidade desse ou daquele implemento e se  lamenta que não haja tecnologia disponível para todos, mas h� algo  mais nele envolvido. Ambos estão interligados, são faces da mesma  moeda.
  Comecemos pelo último. Nos esportes  paralímpicos � com frequência necessário o uso de próteses,  cadeiras de rodas e outros aparatos tecnologicamente muito avançados.  Impressiona àqueles que acompanham o atletismo, por exemplo, os  resultados de velocistas biamputados e de saltadores, assim como  interessam as discussões sobre a extensão da prótese � com  vantagens biomecânicas �, bem como a respeito do material com que  são produzidas. Do mesmo modo, vêm ao primeiro plano discussões  sobre a participação ou não desses atletas, cujos resultados são  espetaculares, nos Jogos Olímpicos e em outras competições  convencionais. Eles aufeririam vantagens porque usam recursos  “artificiais�? De fato, o esporte paralímpico coloca em relevo  uma situação irrenunciável do esporte em geral, que � o emprego  maciço de conhecimento e artefatos tecnológicos. Afinal, se as  próteses são para “corrigir� uma “deficiência�, por que um  atleta convencional não pode utilizar artifícios semelhantes para  também ele retificar uma insuficiência?Extruder Machine.
  Como um segundo momento, coloca-se, neste  mesmo quadro, o uso de substâncias que podem melhorar a performance  esportiva, entre elas, as que, proibidas, encontram-se sob a rubrica  do doping.  Prática, aliás, também encontrada, ainda que mais recentemente, no  paralimpismo. De fato, muitos atletas e não atletas consomem  substâncias preparadas para melhorar a performance, desde os  suplementos at� os esteroides anabolizantes. Em um gradiente amplo,  que não exclui mero placebos, h� substâncias de todos os tipos:  para acelerar a recuperação e diminuir as dores do massacre dos  treinamentos, estimular o sistema nervoso central, diminuir os  batimentos cardíacos (em provas de tiro, por exemplo), mascarar o  uso de outras substâncias etc. Nos tempos da Guerra Fria, em que o  esporte foi um dos palcos de batalha, houve enorme desenvolvimento do  treinamento esportivo e supõe-se que não foi incomum a presença de  programas sistemáticos de uso de substâncias proibidas. Para além  dos discursos oficialistas que fazem a condenação peremptória do  doping, porque ele romperia a igualdade formal de chances, um  princípio do esporte, por meio do uso de substâncias “artificiais�  para a melhoria do desempenho, e porque traria malefícios � saúde,  cabe perguntar, como se tem feito aqui e ali: faz mesmo sentido  estabelecer uma diferença entre o que seria natural e artificial em  se tratando do corpo? Submeter os corpos a cargas violentas de  treinamento, com o consumo de várias drogas legais, cercado por uma  aparelhagem tecnológica sofisticada, transformando o corpo numa  verdadeira usina de combustão a reagir como se na guerra, � usar os  próprios recursos que “naturalmente� pertencem ao atleta? 
  Também se coloca a� um dado relativamente  recente do debate, que � a possibilidade das modificações  genéticas, da fabricação de corpos j� preparados, antes do  nascimento, com esta ou aquela característica desejável. De peça  de ficção científica, a expectativa vai se tornando, para bem e  para o mal, palpável. A discussão deve ser posta no mesmo horizonte  da preocupação em empregar os conhecimentos e a tecnologia genética  para a prevenção de enfermidades importantes, contra as quais ainda  não vencemos a batalha, como o câncer ou outras doenças com claras  implicações congênitas. Novamente, e outra vez, a detestável  eugenia? Pode ser, mas também pode não ser.  Prevenir diabete �  mais importante do que prever a cor dos olhos ou que se gerar� um  atleta com fibras musculares de rápida contração? Pessoalmente,  não tenho dúvidas que sim, mas h� quem pense de outra forma, e  talvez cheguemos ao dia em que prevaleça, em nossa sociedade, em  cuja competição brutal o esporte encontra expressão privilegiada,  outro tipo de interpretação.
  O uso da tecnologia incorporada borra a  fronteira entre o que se supõe ser natural em contrapartida ao que  seria artificial, limite que de fato nunca existiu, a não ser como  recurso discursivo. A pergunta então, talvez, deva ser colocada em  outros termos, indagando-se, por exemplo, o quanto este tempo em que  vivemos suporta a destruição do corpo no esporte como ode ao  progresso e ao rendimento infinito. Respond�-la, assim como a outras  a ela aparentadas, deve ter como base bem fundadas apostas  ético-políticas, cujas decorrentes decisões podem ser tomadas na  medida em que consideremos que a tecnologia, sendo parte de nossa  vida, deve ser submetida, longe de qualquer humanismo kitsch, �  autonomia individual combinada com interesses coletivos  emancipadores. E não o contrário, quando impomos sobre nós mesmos  a redução da vida � dominação tecnológica.
  Alexandre Fernandez Vaz � professor do Programa de Pós-graduação Interdisciplinar em  Ciências Humanas e do Programa de Pós-graduação em Educação,  ambos da UFSC, onde coordena o Núcleo de Estudos e Pesquisas  Educação e Sociedade Contemporânea; doutor pela Leibniz  Universität Hannover, Alemanha, onde atua neste momento como  pesquisador visitante, com apoio do CNPq. O texto aqui apresentado  reúne reflexões j� expostas com outras em andamento.
 
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