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 Kenji   Nakazawa tinha 6 anos quando sua vida mudou para sempre. No dia 6 de   agosto de 1945, o menino nascido e criado em Hiroshima perdeu sua   família inteira, com exceção de sua mãe, na explosão causada pela bomba   atômica Little Boy. Na época, a cidade tinha uma população de cerca de   350 mil pessoas. Cinco anos depois, o Departamento de Energia dos Estados Unidos estimou que foram mais de 200 mil vítimas – se somadas as mortes   decorrentes do impacto e por motivos indiretos, como o câncer que   acometeu milhares dos sobreviventes da explosão. 
 Alguns anos   após a morte de sua mãe, Nakazawa resolveu utilizar seu talento como   roteirista e desenhista de mangás – os quadrinhos japoneses – para   contar o que viveu na história Ore Wa Mita ("Eu a vi", em   tradução livre), de 1972. No ano seguinte, o mangaká transformaria esse   conto de sobrevivência na base para a ficção Gen – Pés descalços (Hadashi no Gen, 1973). 
 O doutor em   comunicação e semiótica pela Pontifícia Universidade Católica de São   Paulo (PUC/SP) e professor do Departamento de Cinema, Rádio e Televisão   da Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo (ECA/USP),   Almir Almas, comenta que o mangá de Nakazawa e, posteriormente, a   animação de 1983, são as principais obras sobre a bomba atômica, pois   focam nos sobreviventes e não apenas nos números ou em uma visão   maniqueísta do conflito. 
 "Hadashi no Gen é um filme representativo dessa questão. É uma história com dramaturgia   a respeito da visão de um menino sobre a bomba atômica e seu efeito. Se   você entender aquilo como um conflito de 'bem e mal', foi você que   entendeu com seu olhar ocidental. O olhar oriental não vê a coisa como   bem e mal", comenta Almas, que também é pesquisador nas áreas de   televisão digital, cinema, arte eletrônica e cultura japonesa. 
 
 Uma visão realista da guerra 
 Além de suas   contribuições como diretor, animador e roteirista, Hayao Miyazaki   também teve papel decisivo, apesar de secundário, em uma das obras que   relembram os impactos da guerra no Japão. O túmulo dos vagalumes (Hotaru no Haka, 1988) não seria produzido sem o incentivo dado por ele ao relutante diretor e cofundador do Studio Ghibli, Isao Takahata. 
 De acordo   com o próprio Takahata, havia muita dúvida em torno de uma animação com   um mote tão trágico. Baseada no romance semi-autobiográfico de Akiyuki   Nosaka, O túmulo dos vagalumes conta os esforços de dois irmãos   (Seita e Setsuko) tentando sobreviver durante os últimos meses da   Segunda Guerra Mundial. A técnica da animação tornou possível mostrar,   de forma estilizada, um roteiro realista e cheio de profundidade, aponta   o crítico e historiador cinematográfico Roger Ebert. 
 Em seu livro Arte da animação técnica e estética através da história,   o mestre em multimídia pelo Instituto das Artes da Unicamp, artista   plástico e animador Alberto Lucena Júnior descreve a arte como um   espelho da sociedade e explica que o período de guerras trouxe uma   situação de desconforto no ambiente artístico. “Grande parte devido ao   descompasso com as demais esferas da ação do homem, que tiveram um   desenvolvimento extraordinário após a Segunda Guerra Mundial. Nesse   período, a arte sofreu um processo de involução tamanho (abdicando de   todo seu legado histórico)”, comenta. Não é de se estranhar, portanto,   que as animações mais representativas sobre o período tenham surgido nos   anos 1980, quase quatro décadas após a bomba. 
 Assim como Nakazawa e seu Gen, o diretor de Túmulo também usou sua própria vivência de criança para recriar cenas de   bombardeio e o desespero causado pelas bombas incendiárias lançadas   sobre a região de Kobe. Como Nakazawa havia feito cinco anos antes,   Takahata também descreve os momentos como a mais “horrível experiência   de sua vida”. Fome, medo e pesar estão presentes por toda a obra, mas   são intercalados com momentos de beleza e contemplação.   
 “O que eu   vejo no Studio Ghibli é um viés de dramaturgia muito bem costurado, e   isso é próprio do Japão. Uma dramaturgia que remete não apenas ao   cinema, mas ao teatro Noh, Kabuki e ao Kyogen. Isso torna a história um   pouco diferente, porque ela não é rasa, os personagens não são rasos. A   técnica animê está em função de uma dramaturgia”, explica Almas. 
  "Monstros bomba atômica" e distopias futuristas 
 Almas   explica que o impacto deixado em Hiroshima e Nagasaki também ressoou   sobre a ficção japonesa, fazendo com que surgissem personagens que são   “frutos da bomba atômica”, como Godzilla. Considerado o “pai da animação   japonesa”, Osamu Tesuka também tratou o tema em suas obras, além de   discutir questões como o mau uso da tecnologia. 
 O medo de um   desastre nuclear também influenciou no surgimento de ficções   científicas orientais que discutiam as consequências de um novo conflito   e os impactos no meio ambiente. Esse é o caso dos quadrinhos e longa   animado Nausicaä do Vale do vento (Kaze no Tani no Naushika,   mangá de 1982 e animê de 1984) criado por Hayao Miyazaki, também famoso   por ser o principal diretor do Studio Ghibli, premiado com o Oscar de   Melhor Animação em 2003, com o longa A viagem de Chihiro (Sen to Chihiro no Kamikakushi, 2001). 
 Em Nausicaä no Vale do Vento,   Miyazaki mostra como a natureza absorveu os venenos que o homem criou,   adaptando-se a eles. A protagonista da história é uma jovem princesa   (Nausicaä) que tenta impedir o reino vizinho de Tolmekia de fazer uso de   uma arma antiga para erradicar os insetos mutantes que vivem nas selvas   – outro exemplo de insetos gigantes como o resultado dos conflitos   atômicos. Durante toda a animação é possível perceber considerações   antibelicistas e a preocupação com os danos causados ao meio ambiente. 
 Doutoranda   em literatura pela PUC-Rio, mestre em comunicação pela Universidade do   Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e pesquisadora de literatura midiática   japonesa, com tese focada no trabalho de Miyazaki, Janete Oliveira   explica que a guerra e a bomba atômica são fundamentais para a obra do   animador e diretor japonês. 
 De acordo   com a pesquisadora, durante o início de sua carreira, Hayao Miyazaki   usou cenários europeus em suas animações, por conta do envolvimento de   sua família com a guerra. "O pai tinha uma fábrica de aviões e trabalhou   diretamente com a guerra. Miyazaki sempre se sentiu muito culpado por   tudo que o Japão causou aos outros países, e isso se refletiu na   primeira fase da sua obra", explica Janete. 
 Outro mangá que influenciaria obras de ficção científica por todo o mundo e que foi lançado em 1982 é Akira,   de Katsuhiro Otomo. Apesar de se passar após uma fictícia Terceira   Guerra Mundial, o mangá e sua versão animada, de 1988, refletem o temor   de um futuro sombrio e urbano, causado por guerras nucleares. Segundo   Otomo, o futuro mostrado na obra "reflete minhas visões sobre vida e   morte, e o mundo que nos cerca". 
 Assim   como no Ocidente, autores orientais imaginaram uma catástrofe ainda   maior caso a escalada de tensão nuclear atingisse seu estopim durante a   chamada Guerra Fria. De acordo com a doutora em ciências da comunicação   pela ECA/USP e pesquisadora de histórias em quadrinhos e cultura pop   japonesa, Sonia Luyten, Akira é o principal representante dessa tensão global na produção japonesa de quadrinhos e animações. 
 "Nos mangás,   primeiro, e depois nos animês, esse tema da destruição é bastante   comum. Porém, é recorrente na medida em que isso afeta tanto e vira um   tema da ficção científica. Então, Akira, por exemplo, aborda o tema de   uma hecatombe e é muito forte nisso. É a ficção científica de como seria   se acontecesse esse desastre", comenta Sonia. 
 
 A superação pela arte 
 O pesquisador de cultura japonesa Almir Almas acredita que filmes como Gen pés descalços e Túmulo dos vagalumes podem   ser considerados documentos históricos, embora sejam obras de ficção,   por conta de suas cenas dramáticas e retratos do que realmente aconteceu   no Japão. 
 Para Sonia Luyten, que também é autora do livro Mangá, o poder dos quadrinhos japoneses (Estação Liberdade, 1991), os quadrinhos japoneses têm um papel essencial de mostrar os horrores da guerra. Ela   ressalta também que o país ainda lida de forma conflitante com seus   atos de violência durante o conflito. "O Japão jamais pediu desculpas   para a China e aos outros países asiáticos pelos campos de concentração e   pelas pesquisas que fizeram com os prisioneiros, assim como os   nazistas", comenta a pesquisadora, que atuou como professora convidada   de estudos estrangeiros nas Universidade de Osaka e Tóquio durante seis   anos.   
 O último filme de Hayao Miyazaki, Vidas ao vento (Kaze Tachinu,   2013), pode ser considerado uma forma de debater a guerra e mostrar um   caminho de cura para as novas gerações de japoneses, segundo a   escritora. No longa animado, Miyazaki conta como o designer de aviões   Jiro Horikoshi teve sua principal invenção, o caça Mitsubishi A6M Zero,   utilizada para bombardear os inimigos do Japão na Segunda Guerra   Mundial. Na biografia romanceada, Miyazaki retrata Horikoshi como   sonhador, um gênio que desejava utilizar seus talentos para realizar o   sonho de voar. 
 Num momento no qual os governantes nipônicos consideram mudanças na constituição pacifista do Japão, mesmo sob protesto,   talvez seja a hora de tirar o pó das histórias em quadrinhos e   animações para aprender um pouco com o que eles têm a ensinar sobre   guerra, ambição e as tragédias que costumam se seguir à combinação de   ambas. 
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