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                             A  passagem dos cinquenta anos do golpe militar de 1964, no ano passado,  propiciou um forte impulso aos debates e rememorações em torno do  assunto, muito diversos em conteúdos e gêneros discursivos, por  todo o país. Da mesma forma, não exatamente por causa da efeméride,  mas tomando-a igualmente como marco favorável à reflexão,  resolvemos oferecer, desde o ano passado, na graduação de letras do  período noturno do Instituto de Estudos da Linguagem, um curso sobre  representações culturais da ditadura militar. Neste primeiro  semestre de 2015, o curso se encontra já em sua terceira edição  pelo terceiro semestre consecutivo de oferecimento. Mas, além de ser  ministrado com siglas diversas, seu conteúdo programático tem se  modificado sempre e, até agora, não repetimos os materiais  apresentados e discutidos em sala de aula. Por conta disso, vários  alunos têm escolhido cursá-los em sua sequência. Mas, também,  cada programa possui desenvolvimento autônomo. E, sendo eletivos,  podem sempre receber novos alunos, sem pré-requisito além do  interesse próprio, mantendo-se absolutamente abertos a alunos de  todas as áreas de conhecimento. 
  Estudamos,  nesses cursos, diferentes representações literárias, dramatúrgicas  e cinematográficas da ditadura militar, com destaque maior para  narrativas coevas às experiências vividas naquele período  (1964-1985), mas incluindo também outras, posteriores e mais  recentes, conforme a solicitação de um ou outro problema examinado.  Nesta terceira edição, com cerca de 60 alunos, podemos já dizer  que o interesse tem se mantido grande em todos os semestres, mas é  um interesse que, também podemos afirmar agora, ocorre em proporção  inversa ao grau de desinformação geral que a atual geração de  estudantes – estamos falando especialmente de alunos na casa dos 20  anos – possui sobre a história contemporânea do Brasil.  
 Essa  desinformação também pode ser analisada dentro do próprio escopo  de nosso programa. A desmemória, assim como se apresenta, em parte,  fruto da repressão e da censura impostas pelo regime militar, e  também do persistente processo de destruição da educação pública  primária e secundária, cujos efeitos disseminaram-se entre pessoas,  famílias, grupos e classes –, neste momento, ela já se alia  desafortunadamente à dispersão de mídias, à aceleração do tempo  de consumo e de seu correlato, o “tempo de desatenção”, da  banalização da imagem e da “selfiezação” da sociedade de  massas, voltada mais para a auto-fixação de projeções narcísicas  do “eu mínimo” (a expressão é do ensaísta Christopher Lasch  em livro homônimo) do que para o desejo de conhecer e investigar as  camadas mais opacas do real. Como resumiu bem o professor Salvo  Vaccaro, cientista político da Universidade de Palermo, em seminário  sobre Michel Foucault, em João Pessoa, no ano passado: enquanto em  regimes ditatoriais, autoritários ou totalitários, a censura se faz  diretamente pelo controle e falta de informação, pelo não acesso  deliberado a suas fontes, no atual cenário global midiatizado  estamos sujeitos a outra forma de censura, mais sutil e não menos  eficaz – a do excesso de informações fragmentárias, que resulta  da proliferação de textos descontextualizados e da superexposição  de imagens. 
 Como  se pode notar por essa simples apresentação, o tema das  representações culturais da ditadura militar é vasto em suas  possibilidades de estudo. No nosso caso, a nossa pretensão básica é  apenas a de que os alunos acompanhem um roteiro de aulas que informe  sobre os acontecimentos decisivos de um período que desconhecem ou  conhecem pouco, mas que o façam de forma a considerar, como abordagem  privilegiada, não a informação historiográfica apenas, mas a  relação que ela guarda com as diversas representações artísticas  e culturais que a tomam como matéria. Para nós, não se trata  apenas de contar o que foi a ditadura, ou de dar a nossa opinião,  como testemunhas e intelectuais, sobre o que pensamos da ditadura e  de seus horrores; mais do que isso,  gostaríamos de levantar e  estudar, por meio de debates livres, as formas privilegiadas pelas  quais esses acontecimentos foram reconstruídos no âmbito de objetos  e projetos artísticos de vária ordem.  
 Ou  seja, a questão que nos interessa é, fundamentalmente, a de saber  como a ditadura e seus horrores encontraram formas de serem  enunciados. O propósito inalienável de alimentar o espírito  crítico, antidogmático e democrático está, portanto, no curso,  determinado pelo estudo dos processos de ficcionalização do real de  e em situações de extrema dramaticidade e violência.  
 O  requisito de nosso trabalho em sala foi, desde a primeira versão,  claramente enunciado aos alunos: comprometer-se com a carga de  leitura e empenhar-se intelectualmente para compor, com base em sua  própria experiência de leitura, um exame comparativo de obras  artísticas, historiográficas e políticas produzidas sobre a  ditadura militar. A presença e a participação também foram  seriamente exigidas, o que está longe de ser comum, e isto porque  imaginamos que o exercício de elaboração argumentativa diante de  obras variadas, muitas vezes com posições bem distintas entre si, e  que dão margens a interpretações contraditórias, pareceu-nos que  ganharia em ser incentivado na própria sala de aula, com as suas  limitações e inibições, mas também com a variedade de suas  perspectivas.  
 O  curso também é fortemente crítico em relação a certa visão  corrente na academia de que seria preciso ser especialista num tema  para estudá-lo. Daí que, conquanto trabalhem com um tema histórico,  dentro de uma perspectiva ficcional e memorialista, as aulas estão  abertas para alunos de todas as áreas da Unicamp. E assim como a  palavra-de-ordem “Abaixo a Ditadura!” foi capaz de unificar o  pensamento e ação de milhões de pessoas em movimento de  resistência contra o regime militar, levando, a partir da segunda  metade dos anos 70, a seu crescente enfraquecimento até seu  estertor, em 1985, esses cursos seriados pretendem também  contribuir, nos seus limites, para que a perspectiva “Ditadura  Nunca Mais!” seja um consenso das atuais gerações. E a maior  aquisição para o “não será” é o conhecimento o mais  aprofundado possível, mas sem condicionalismos disciplinares,  daquilo “que foi”. 
 O  exame dos tópicos temáticos, bibliográficos e/ou iconográficos  pelos quais passamos pode ilustrar, concretamente, a ideia de ficção  e de memória multifacetada e contraditória que tentamos abordar.  Numa primeira versão do curso, sempre para alunos de graduação,  oferecida no primeiro semestre de 2014, propúnhamos os seguintes  tópicos e materiais literários e cinematográficos: 
 Unidade  1: Vítimas  “invisíveis”: índios, camponeses 
 Callado,  Antônio. Quarup.  Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1967. (romance). 
 Coutinho,  Eduardo. Cabra  marcado para morrer.  1964-1984. (filme documentário). 
 Tonacci,  Andrea. Serra  da desordem.  2006. (filme docudrama). 
 Unidade  2: Tortura,  desaparecimento e morte em suas marcas textuais 
  
 Mota,  Urariano. Soledad  no Recife.  São Paulo: Boitempo, 2009. (novela-memória). 
 Kucinski,  Bernardo. K.  São Paulo: Expressão popular, 2011. (novela-memória). 
 Tapajós,  Renato. Câmara  lenta.  São Paulo: Alfa-Ômega, 1979. 1977. 
 Foglia,  Rossana; Rewald, Rubens. Corpo.  2008. (filme de ficção). 
 Unidade  3: Explosão/implosão  da linguagem: fragmento, experimento, excesso, silêncio 
 Leminski,  Paulo. Catatau 1975. 3ª. ed. São Paulo: Iluminuras, 2010. (prosa experimental). 
 Guimarães,  Cao. Ex-Isto.  2010. (filme de ficção). 
 Lungaretti,  Celso. Náufrago  da utopia. Rio  de Janeiro: Geração Editorial, 2004. (memórias). 
 Osakabe,  Haquira. "De como viver dentro e fora". São Paulo, MS inédito 2 fls.  datilo., 1973 (Cedae-IEL, Fundo Haquira Osakabe). 
 Souza,  Márcio. Operação  silêncio.  São Paulo: Marco Zero, 1979 (romance). 
 Noll,  João Gilberto. "Alguma coisa urgentemente". In: O  cego e a dançarina.  Porto Alegre: L&PM, 1980. (contos). 
 Salles,  Murilo. Nunca  fomos tão felizes.  1983. (filme de ficção). 
 Unidade  4: O  passado que fica 
 Tavares,  Flávio. Memórias  do esquecimento 1999.  Porto Alegre: L&PM, 2012. (memórias). 
 Tavares,  Camilo. O  dia que durou 21 anos.  2012. (filme documentário).  
 Como  referências gerais de estudos do período e suas obras, foram  indicados ainda os seguintes títulos: 
 Ginzburg,  Jaime; Seligmann-Silva, Márcio: Hardman, Francisco Foot (Orgs.). Escritas  da violência.  Rio de Janeiro: 7 Letras, 2012, 2 v. 
 Sussekind,  Flora. Literatura  e vida literária: polêmicas, diários, retratos.  2ª. ed. rev. Belo Horizonte: UFMG, 2004. 
 Teles,  Edson; Safatle, Vladimir (Orgs.). O  que resta da ditadura: a exceção brasileira.  São Paulo: Boitempo, 2010. 
 Na  segunda edição do curso, no segundo semestre de 2014, ampliamos  significativamente as referências literárias e artístico-culturais,  introduzindo, além de ensaios de memória histórico-política e  obras de jornalismo investigativo, uma seleção de textos teatrais,  gênero usualmente deixado de lado nos cursos de letras, e que, no  período histórico assinalado, tiveram importância decisiva na cena  cultural e política. O roteiro de seções temáticas, com as  respectivas leituras e visões a ser trabalhadas, foi então  o  seguinte: 
 1.  Referência  geral: história, política e cultura 
 Dreyfuss,  René Armand. 1964:  a conquista do Estado – ação política, poder e golpe de classe.  Petrópolis: Vozes, 1981. 
 Fico,  Carlos. O  Grande Irmão: da operação Brother San aos anos de chumbo. O  governo dos EUA e a ditadura militar brasileira.  Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008. 
 Gaspari,  Elio. As  ilusões armadas. (v.1: A ditadura envergonhada; v.2: A ditadura  escancarada). 2ª. ed. revista. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2014. 2002. 
 _______. O  sacerdote e o feiticeiro. (v. 3: A ditadura derrotada; v. 4: A  ditadura encurralada). 2ª.  ed. revista. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2014. 2003. 
 Gorender,  Jacob. Combate  nas trevas: a esquerda brasileira – das ilusões perdidas à luta  armada.  São Paulo: Ática, 1987. 
 Kushnir,  Beatriz. Cães  de guarda: jornalistas e censores, do AI-5 à Constituição de 1988.  São Paulo: Boitempo, 2004. 
 Leme,  Caroline Gomes. Ditadura  em imagem e som.  São Paulo: Unesp, 2013. 
 Ridenti,  Marcelo. O  fantasma da revolução brasileira.  2ª. ed. revista e ampliada. São Paulo: Unesp, 2010. 
 Skidmore,  Thomas. Brasil:  de Getúlio Vargas a Castelo Branco (1930-1964).  Rio de Janeiro: Saga, 1969. 
 2.  Obras  literárias (ficção, memória, depoimento): 
 Callado,  Antônio. Bar  Don Juan.  Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1971. 
 Cony,  Carlos Heitor. Pessach:  a travessia.  Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1967. 
 Fortes,  Luís Roberto Salinas. Retrato  falado.  São Paulo: Marco Zero, 1988. 
 Gertel,  Vera. Um  gosto amargo de bala.  Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2013. 
 Guerra,  Claudio. Memórias  de uma guerra suja:  depoimento a Marcelo Netto e Rogerio Medeiros. Rio de Janeiro:  Topbooks, 2012. 
 Paula,  José Agrippino de. Panamérica. São  Paulo: Papagaio, 2001. 1967. 
 Pompeu,  Renato. Quatro-olhos.  São Paulo: Círculo do Livro, s/d. 1976. 
 Syrkis,  Alfredo. Os  carbonários: memórias da guerrilha perdida.  São Paulo: Global, 1979. 
 Souza,  Márcio. Operação  silêncio.  São Paulo: Marco Zero, 1979. 
 3.  Teatro,  poesia e cinema: 
 Castro,  Consuelo de. À  flor da pele.  1969. 
 Marcos,  Plínio. Quando  as máquinas param.  1967. São Paulo: Global, 1978. 
 Gullar,  Ferreira. Poema  sujo.  Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1976. 
 Foglia,  Rossana; Rewald, Rubens. Diretores. Corpo.  2007. 
 Giorgetti,  Ugo. Diretor. Cara  ou coroa.  2012. 
 Tapajós,  Renato. Diretor. Corte  seco.  2014. Filme inédito cuja projeção contou com a presença do  diretor. 
 Finalmente,  na atual edição neste primeiro semestre de 2015, damos continuidade  a esse projeto, com forte presença de textos teatrais e obras  fílmicas, articulados à literatura tomada sempre em sentido amplo,  o que inclui, além da prosa de ficção, a memória, o depoimento, a  reportagem historiográfica, o ensaio histórico-político. Aqui,  segue o novo roteiro: 
 1.  Referência  geral: história, política e cultura 
 Costa,  Cristina (org.). Censura,  repressão e resistência no teatro brasileiro.  São Paulo: Annablume/Fapesp, 2008. 
 Jatobá,  Roniwalter. A  crise do regime militar.  São Paulo: Claridade, 2013. 
 Markun,  Paulo. Brado  retumbante (v.1: Na lei ou na marra: 1964-1968).  São Paulo: Benvirá, 2014.  
 ______. Brado  retumbante (v. 2: Farol alto sobre as diretas: 1969-1984). São Paulo: Benvirá, 2014. A discussão desta obra contou com a  presença do jornalista Paulo Markun no IEL, graças ao apoio do  Labjor. 
 2. Obras  literárias (ficção, memória, ensaio, depoimento): 
 Carvalho,  Apolônio de. Vale  a pena sonhar.  Rio de Janeiro: Rocco, 1997.  
 Espinosa,  Antonio Roberto. Abraços  que sufocam – e outros ensaios sobre a liberdade.  São Paulo: Viramundo, 2000. 
 Gonçalves,  Vanessa. Eduardo  Leite Bacuri.  São Paulo: Plena, 2011. 
 Kucinski,  Bernardo. Você  vai voltar pra mim e outros contos.  São Paulo: Cosac Naif, 2014. 
 Patarra,  Judith Lieblich. Iara.  (Reportagem biográfica). 3ª. ed. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 1992. 
 Santos,  José Anselmo dos. Eu,  cabo Anselmo:  depoimento a Percival de Souza. São Paulo: Globo, 1999. 
 3.  Teatro e cinema: 
 Assunção,  Leilah. Sobrevividos.  In: Feira  Brasileira de Opinião.  São Paulo: Global, 1978. 
 Escobar,  Carlos Henrique de. A  caixa de cimento.  Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978. 
 Escobar,  Maria Clara. Os  dias com ele.  2013 – filme documentário. 
 Escorel  Filho, Lauro. Libertários 1976;  Cooper, Adrian. Chapeleiros 1983. São Paulo: IMS, 2014 DVD – documentários  curtas-metragens. 
 Frederico,  Flavio; Pamplona, Mariana. Em  busca de Iara.  2013 – filme documentário. 
 Grisotti,  Stela; Böhm, Rudi. Vale  a pena sonhar.  2003 – filme documentário. 
 Guarnieri,  Gianfrancesco. Um  grito parado no ar.  1973. In: O  melhor teatro - Gianfrancesco Guarnieri.  São Paulo: Global, 1986. 
 Leandro,  Anita. Retratos  de identificação.  2014 – filme documentário. 
 Marcos,  Plínio. Dois  perdidos numa noite suja.1966.  São Paulo: Círculo do Livro.  
 Medeiros,  Maria de. Repare  bem.  Orig.: Les  yeux de Bacuri.  2012 – filme documentário. 
  
 
 Para  encerrar esta breve notícia, cabe dizer que, tanto os textos  estudados, como os estudos usados como referência para os debates  nos três cursos realizados até agora, não representam senão uma  parcela muito pequena da já extensa produção, nas várias áreas  das humanidades, que tematiza o período da ditadura militar  brasileira. Para dar uma ideia aproximada do que estamos falando,  como esforço de constituição de uma biblioteca física das obras a  respeito do assunto, contamos já com um acervo de cerca de 500  títulos, o que é ainda um número longe do exaustivo, até pela  onda recente de produções vindo à luz, mas que pode sugerir a  fecundidade do assunto e a variedade de seu repertório.  
  
 
 Francisco  Foot Hardman é professor do Instituto de Estudos da Linguagem (IEL) da Unicamp. 
 Alcir  Pécora é  professor do Instituto de Estudos da Linguagem (IEL) da Unicamp. 
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