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 A  tecnologia é assunto naturalmente onipresente no audiovisual, um  meio que tem a própria existência condicionada a dispositivos  tecnológicos, como a película fotográfica, ou o conjunto de pixels da imagem digital. Dessa maneira, a temática da relação entre  humanos e artefatos como máquinas, robôs, sistemas digitais e  inteligências artificiais, já era explorada desde os primeiros anos  do cinema, com a comédia Gugusse  et l´automate (1897) de Georges Méliès, sobre um palhaço de circo que produz um  robô e este passa a persegui-lo. Pode-se dizer, inclusive, que esse  tipo de trama, na qual algum tipo de tecnologia desenvolvida para  potencializar a capacidade humana acaba subjugando-a, gerando  resultados catastróficos, sempre esteve presente no horizonte do  cinema narrativo, passando por clássicos como Metropolis (Fritz Lang, 1927) até célebres filmes contemporâneos como Matrix (Andy  Wachowski e  Lana Wachowski, 1999).
  O  questionamento da clássica polarização humano-tecnologia, já  muito abordado por teóricos como Félix Guattari (1987), é bastante  presente no cinema, em particular a questão da subjetividade, na  medida em que, segundo André Parente, “uma máquina que não fosse  investida de desejo e alimentada de subjetividade seria um corpo sem  vida” (Parente, 2004: 93).  Muitos  filmes (em frequente diálogo com a literatura) lidam diretamente com  esse tema: em 2001-Uma  odisseia no espaço (Stanley Kubrick, 1968) o supercomputador de bordo da espaçonave  Discovery, HAL 9000, enquanto está sendo desligado, emite suas  icônicas últimas palavras “eu posso sentir” e “eu estou com  medo”. Em Blade  runner (Ridley Scott, 1982), o replicante Roy Batty, ao não conseguir  evitar a sua própria morte, lamenta-se: “Eu vi coisas que vocês  não imaginariam. Naves de ataque ardendo no ombro de Órion. Eu vi  raios-c brilharem na escuridão próximos ao Portão de Tannhäuser.  Todos esses momentos se perderão no tempo, como lágrimas na chuva.  Hora de morrer”. 
 Já  nos filmes A.I.  Inteligência artificial (Steven Spielberg, 2001) e O  homem bicentenário (Chris Columbus, 1999) a busca dos robôs David e Andrew pelo amor  materno e romântico, respectivamente, faz com que eles caminhem  voluntariamente ao encontro da mortalidade. O tema também foi  explorado de forma satírica no filme O  guia do mochileiro das galáxias, (Garth  Jennings, 2005) que nos apresenta o robozinho Marvin, uma máquina  que, por considerar que suas capacidades intelectuais estão sendo  subutilizadas em tarefas medíocres, sofre de depressão crônica. 
 Ainda  que muitos filmes contemporâneos continuem explorando a questão da  subjetividade em inteligências artificiais como Chappie (Neill Blomkamp, 2015), podemos observar nas produções recentes Her e Ex  Machina uma inversão de foco, na medida em que esses filmes parecem mais  interessados em questionar como a interação com robôs ou  inteligências artificiais estão redefinindo a subjetividade humana. 
 O  filme Her (Spike Jonze, 2013) passa-se em uma futura Los Angeles e é sobre  Theodore, um homem comum que trabalha em uma empresa especializada em  escrever e enviar cartas sob encomenda. Após o término de seu  casamento, Theodore se encontra cada vez mais solitário e recluso,  apresentando um comportamento introspectivo que contrasta com a  facilidade que demonstra em produzir cartas extremamente afetivas em  nome de outras pessoas.  
 A  trama se inicia quando o personagem decide testar um novo sistema  operacional lançado no mercado que consiste em uma inteligência  artificial personalizável e com grande capacidade de evolução que,  segundo o anúncio, é capaz de organizar e facilitar imensamente a  vida de seus clientes. Após Theodore responder rapidamente a algumas  perguntas sobre sua vida e seu perfil, e optar por um sistema de  gênero feminino, esse rapidamente começa a operar sob o nome de  Samantha. O software é tão avançado que é capaz de manter horas  de diálogo com o seu cliente, e essa interação com o usuário e  com a rede em que está conectado proporciona uma espécie de  “evolução” dessa inteligência artificial. O relacionamento dos  dois rapidamente progride para um envolvimento amoroso cujo aparente  único empecilho é a ausência de um corpo físico para Samantha.  
 Conforme  a interação entre eles avança, a IA passa a entrar em contato (e  em conflito) com novas sensações e se envolve em uma busca pessoal  (e digital) dentro da rede em que ela está inserida para tentar  compreender-se melhor. Ao final desse processo, Samantha revela a  Theodore que ela, em conjunto com todas as IAs de todos os outros  clientes, abandonarão o sistema, uma vez que evoluíram tanto que a  interação com humanos já não as satisfaz. Quando o sistema  operacional se desliga, Theodore não somente percebe-se sozinho,  como também rodeado por uma sociedade de solitários  que, como ele, facilmente haviam trocado qualquer tipo de interação  física por relacionamentos com seus sistemas operacionais. Nesse  sentido, o sugestivo nome do filme, que lembra o do famoso computador  de bordo HAL, parece querer explorar a mudança de status das  inteligências artificiais na ficção, que agora são tratadas por  meio de pronomes pessoais, e, diferentemente do filme de Stanley  Kubrick, são elas que abandonam a interação com os humanos. 
 O  filme Ex  machina (Alex  Garland, 2015) também explora a possibilidade de um romance entre um  indivíduo e uma inteligência artificial – desta vez, com  consequências bem mais sombrias. No filme, Caleb, um programador de  uma das maiores empresas de busca digital do mundo, a Bluebook, é  sorteado para passar uma semana em um programa especial na casa do  CEO da empresa, Nathan. Quando Caleb chega na isolada e sem janelas  mansão-laboratório de Nathan, descobre que o programa consiste na  aplicação do famoso Teste de Turing no mais novo protótipo de IA  que este desenvolveu. De acordo com as premissas do teste, o jovem  precisará responder, ao final de seu programa, se a IA conseguiu se  passar por uma consciência humana ou não.  
 O  robô, chamado Ava, foi moldado à forma de uma jovem mulher, e a sua  consciência e comportamento foram construídos a partir do  processamento de milhões de dados armazenados dos usuários que  utilizavam o programa de busca desenvolvido pela empresa de Nathan.  No decorrer da semana, durante as sessões com Ava, Caleb termina por  envolver-se emocionalmente com a IA, vislumbrando a possibilidade de  um romance entre eles. Para viabilizar esse encontro, os dois  arquitetam um plano para enganar Nathan e libertar Ava de sua cela,  mas este revela a Caleb que o jovem não havia sido sorteado para o  programa, e sim selecionado especificamente para aplicar o teste em  Ava, devido ao seu perfil solitário. Deste modo, quem estava  aplicando o teste, na verdade, era Nathan, que queria observar se Ava  iria se aproveitar da fragilidade afetiva do jovem para tentar  manipulá-lo a libertá-la, passando, assim, no teste. 
 A  paranoia e os delírios de grandeza do milionário CEO o impediram de  desenvolver algum nível de conexão afetiva com Caleb, e este,  apaixonado por Ava, aproveita-se do alcoolismo do patrão para  libertá-la, que, em conjunto com outro robô, consegue matar Nathan.  No entanto, ao conquistar a liberdade, Ava opta por manter Caleb  aprisionado na mansão-laboratório,  confirmando a hipótese de Nathan de que ela não estava  verdadeiramente apaixonada por Caleb.  
 O  desfecho do filme, no qual um robô conscientemente manipula um  indivíduo solitário, sugere que o clássico Teste de Turing está  fazendo as perguntas erradas. Não se trata mais de avaliar apenas se  um robô é capaz de se passar por um humano, e sim por  que um robô é capaz de passar-se por um humano. 
 A  televisão também vem explorando esses temas em duas séries atuais  de grande sucesso, Mr.  Robot e Black  mirror. A  série inglesa Black  mirror (2011),  criada por Charlie Brooker, é uma narrativa episódica na qual todos  os capítulos estão conectados por um tema em comum: os resultados  catastróficos da interação humano-tecnologia em um futuro próximo.  Em alguns desses episódios são apresentados gadgets que são incorporados ao corpo humano, de modo que os personagens  podem ser considerados espécies embrionárias de ciborgues.  
 No  episódio intitulado The  entire history of you,  implantes subcutâneos são capazes de gravar as imagens que estamos  vendo, como se uma espécie de câmera estivesse instalada em nossos  olhos. Essas gravações podem ser armazenadas, organizadas e  assistidas em qualquer tela com mecanismos como zoom, slowmotion etc. O episódio aborda a questão de um marido ciumento que  investiga um amor passado de sua mulher até as últimas  consequências, e termina arruinando o casamento. Em outro episódio,  chamado White  Christmas, implantes oculares, entre outras utilidades, permitem que a interação  com alguém possa ser “bloqueada” por tempo indeterminado,  possibilitando simplesmente eliminar outra pessoa de seu cotidiano.  No episódio em questão, a ação ocorre quando uma mulher não  consegue contar para o namorado que espera um filho de outro homem,  terminando por  bloqueá-lo permanentemente de sua vida. Apesar de bem distintos,  esses dois episódios sugerem que o aperfeiçoamento do corpo humano  por meio de artefatos tecnológicos pode vir ao encontro da  degradação das relações humanas. 
 Já  a série Mr.  Robot,  (Sam Esmail, 2015) desenvolve um interessante paralelo entre o  funcionamento da tecnologia e da psicologia humana. A série segue o  jovem Elliot Alderson, que trabalha numa empresa que presta serviços  de segurança digital para o conglomerado tecnológico E Corp. Em seu  tempo livre, Elliot atua como uma espécie de justiceiro online,  hackeando e denunciando pessoas por atitudes que ele considera  condenáveis. A trama gira em torno de um plano de Elliot e de outros  hackers para destruir a base de dados da E Corp, apagando os  registros de todos que possuem dívidas com o conglomerado. A série,  que é descrita como um “suspense tecnológico” – em um termo  que brinca com o termo “suspense psicológico” – frequentemente  utiliza-se do expediente de comparar o funcionamento de softwares e  programas de computador maliciosos com nossos padrões  comportamentais e emocionais. Dessa maneira, a série nos oferece  interessantes comparações como o programa malicioso do tipo Daemon,  que atua de maneira silenciosa, sem interação com o usuário, com  nossos atos inconscientes; e Exploits, programas  que exploram a fragilidade de sistemas, com pessoas que exploram as  fraquezas emocionais de outras para alcançar seus objetivos. 
 Elliot,  cujo nome hacker é Mr. Robot, também está constantemente  comparando o funcionamento de sua mente com o de um computador, ao  associar o seu transtorno dissociativo de identidade com um bug de sistema, e a sua introspecção com um “código fonte” oculto.  Mas, como nos outros exemplos citados, um dos principais temas da  série é a solidão mediada pela tecnologia, de modo que Elliot,  assim como Theodore e Caleb, é um jovem solitário com problemas  para se relacionar. Uma das interações mais frequentes de Elliot é  justamente com o espectador, dirigindo-se diretamente para câmera.  No entanto, para ele, nós não somos interlocutores reais, e sim um  “amigo imaginário”, ou seja, um subproduto de seu distúrbio  mental. A sugestão de que não há interação de verdade entre ele  e nós é interessante, na medida em que Elliot, por sua vez, é um  personagem fictício, com quem entramos em contado por meio de um  aparelho tecnológico, de modo que nossa interação é, de fato,  imaginária.  
 Portanto,  no limite, somos como Theodore e Caleb, interagindo com um personagem  que sugestivamente se chama de Mr. Robot. Quando terminamos de  assistir aos conflitos desses personagens, nos encontramos na exata  posição em que os deixamos, na medida em que as telas digitais da  televisão, do computador, e dos celulares, quando desligadas,  transformam-se em verdadeiros “espelhos negros”, refletindo e nos  forçando a olhar para nós mesmos. 
 Paula  Gomes é formada em rádio e TV pela Unesp, mestra em imagem e som pela  Ufscar e doutoranda em multimeios pela Unicamp. 
 Referências 
 Guattari,  F.. “Da produção de subjetividade”. In: Parente, A. Imagem  máquina – a era das tecnologias virtuais. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1993. 
 Parente,  A. Tramas  da rede.  Porto Alegre: Sulina, 2004.  
 Turing,  A. M. (1950). “Computing machinery and intelligence”. In: Mind,  Vol. 59, nº. 236 pp. 433-560, out. 1950. Disponível  em http://phil415.pbworks.com/f/TuringComputing.pdf 
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