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                             O ano de 2015 começou preocupante para os casais homossexuais  pretendentes a adotar crianças e para os movimentos pró-adoção no  Brasil. Eduardo Cunha (PMDB-RJ), presidente da Câmara dos Deputados,  liberou a retomada da discussão do Estatuto da Família, o Projeto  de Lei nº 6.583/2013, que havia sido arquivado em 2014. Em seu  artigo segundo, o Estatuto da Família definia "entidade familiar  como o núcleo social formado a partir da união entre um homem e uma  mulher, por meio de casamento ou união estável, ou ainda por  comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes". Na  prática, o projeto significaria a proibição da chamada "adoção  homoparental", realizada por homossexuais.
  A retomada da discussão do projeto, patrocinado pela bancada  evangélica, causou polêmica. A Associação Nacional de Grupos de  Apoio à Adoção (Angaad) e o Instituto Brasileiro de Direito de  Família (IBDFAM) começaram uma petição online, que reuniu mais de  6.500 assinaturas contrárias ao Estatuto da Família. Durante  entrevista concedida ao programa Roda Viva, da TV Cultura, em  16 de março, Cunha disse considerar errado que casais homossexuais  possam adotar uma criança. "Sou contra, acho que não é a melhor  maneira de educar. Sou a favor de uma educação mais igualitária,  não acho correta a adoção por homossexuais", afirmou.
  Em 5 de março de 2015, o Supremo Tribunal Federal (STF), por meio da  ministra Cármen Lúcia, reconheceu a constitucionalidade da adoção  por homossexuais. No texto em que nega o recurso do Ministério  Público do Paraná, a ministra argumentou que "o conceito  contrário implicaria forçar o nosso Magno Texto (a Constituição)  a incorrer, ele mesmo, em discurso indisfarçavelmente preconceituoso  ou homofóbico". Segundo ela, "a isonomia entre casais  heteroafetivos e pares homoafetivos somente ganha plenitude de  sentido se desembocar no igual direito subjetivo à formação de uma  autonomizada família".
  A decisão de Cármen Lúcia foi baseada na decisão do STF que  reconheceu, em 2011, a união estável para parceiros do mesmo sexo.  O juiz da Vara da Infância e da Juventude de Campinas, Richard Pae  Kim, explica que a união estável homoafetiva foi o divisor de águas  para a adoção homoparental, que acontecia de acordo com o  entendimento de cada juiz. A chamada Lei de Adoção (12.010/09) é  relativamente recente e ainda não reconhece a adoção por  homossexuais. Pae Kim, no entanto, já concedia pareceres favoráveis  à adoção homossexual antes mesmo da decisão do STF. Em 2010, ele  concedeu a guarda de uma criança a um casal de homens. Na época, o  Ministério Público chegou a emitir parecer contrário à decisão,  mas não recorreu da sentença. "Não creio  que tenha havido qualquer contribuição da nova Lei (12.010/09) para  o resultado prático da adoção por homossexuais ou por casais  homoafetivos. O que me parece evidente é que houve uma mutação  constitucional, uma mudança na concepção de que não deve existir  qualquer discriminação em razão da opção sexual", afirma.
  "A união estável ajudou muito, afinal a comprovação de que um  casal homoafetivo é realmente um casal já deixa aberto o caminho  para ter filhos", afirma Náyranoah Larissa, que junto com sua  parceira, adotou duas crianças em agosto de 2014. "Pelo nosso  processo, acho que a adoção por casais homoafetivos está de fácil  acesso. Os procedimentos são os mesmos do que um casal hetero. As  pessoas precisam perder o medo e correr atrás de seus direitos".
  Segundo estimativa da Escola de Direito da  Universidade da Califórnia, entre 2000 e 2009, quase triplicou o  número de casos de adoção por homossexuais nos Estados Unidos.  Aqui no Brasil, de acordo com o Censo Demográfico 2010 do Instituto  Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), existem 60 mil  famílias homossexuais. "É fato que  nenhuma pessoa ou casal homoafetivo possa ser, no regime jurídico  atual, discriminado – ou seja, eliminado de um processo de  avaliação da sua capacidade de adotar pelas equipes técnicas e  pelos magistrados das varas de infância e da juventude do país –  apenas pela opção sexual dos pretendentes à adoção", afirma  Pae Kim.
  De acordo com os dados do Conselho  Nacional de Justiça (CNJ), que administra o Cadastro Nacional de  Adoção (CNA), existe no Brasil seis vezes mais pretendentes a  adotar do que crianças para adoção. Mesmo assim, existem 5.707  crianças esperando uma nova família, por não apresentarem o perfil  desejado por esses pretendentes. A Corregedoria Nacional de Justiça  disse não saber quantos dos 33.388 pretendentes a adotar são  homossexuais, pois "as únicas informações que importam  são as de pretendentes e crianças e adolescentes, sem qualquer  discriminação de orientação sexual".
  Náyranoah Larissa conta que ela e sua parceira não tiveram  problemas em relação à sua sexualidade, com a adaptação das duas  crianças adotadas, uma menina, hoje com 14 anos, e um menino,  atualmente com 4 anos. "Ela, como tinha 13 anos, já podia escolher  se viria para casa ou não. Então a partir do momento que decidiu  vir, já estava bastante claro para ela nossa sexualidade. O menino  começou a chamar minha companheira primeiro de mãe, e após alguns  dias, minha companheira disse apontando para mim: 'Essa é mãe  também'. E ele disse: 'Mãe?'. A gente respondeu: 'É'.  Ele perguntou: 'Duas mamães?'. Nós dissemos: 'Sim'. Ele  balançou a cabecinha sorrindo e disse 'Tá'... Foi simples  assim". Antes de adotarem esses irmãos, Náyranoah e sua parceira  tentaram adotar dois meninos adolescentes. Um deles, porém, disse  que não se sentiria bem sendo adotado por um casal homossexual e o  processo foi encerrado.
  Os mitos da adoção homoparental
  Para a professora de psicologia e doutoranda em psicologia social  pela PUC-Campinas, Mariana de Oliveira Farias, uma das autoras do  livro Adoção por homossexuais - a família homoparental sob o  olhar da psicologia jurídica, ainda existe preconceito em  relação à configuração de famílias que não têm como núcleo  um homem e uma mulher e existem ainda mitos em relação à adoção  por pais gays ou mães lésbicas. Segundo ela, o preconceito em  relação à homossexualidade gera crenças distorcidas e mitos como  o de que os homossexuais sofreriam desvios biológicos e  psicológicos, viveriam uma vida de promiscuidade e tenderiam,  principalmente os homens, a abusar sexualmente de seus filhos. Há  também o medo da criança se tornar gay e perder a noção de  diferença entre os sexos. A crença errônea de que a criança teria  problemas de desenvolvimento e o preconceito enfrentado também  seriam motivos para a não aceitação desse tipo de adoção por  parte da sociedade.
  "Todos esses mitos caem por terra se pensarmos que a  homossexualidade é considerada uma orientação sexual tão saudável  quanto a heterossexualidade e a bissexualidade e que a constituição  da família e o bem-estar de seus membros independe de orientação  sexual", afirma. A professora argumenta que não existe relação  alguma entre abuso sexual ou qualquer outro tipo de violência e a  orientação sexual dos pais e das mães. "É o vínculo positivo,  o afeto e a colocação de regras adequadas que promove o pleno  desenvolvimento da criança, que nada tem a ver com orientação  sexual", explica.
  No caso das crianças se identificarem como homossexuais quando  adultas, também não há nenhuma comprovação de que essa  probabilidade seja maior no caso dos pais ou mães serem  homossexuais. "E caso houvesse, não teria nenhum problema. Tem-se  uma preocupação excessiva com a orientação sexual dos pais/mães,  quando na verdade deveríamos nos preocupar mais com as questões de  violência e negligência contra as crianças e adolescentes",  argumenta Farias. A psicóloga também é contrária à afirmação  de que crianças e adolescentes perderiam a noção das diferenças  entre os sexos. "Se fosse assim, também existiriam problemas nas  famílias monoparentais. É importante que a criança tenha relação  afetiva significativa com ambos os sexos, mas essa relação pode  existir com uma pessoa da escola e da família, por exemplo",  afirma.
  Adotamos! Mas e a nossa licença parental?
  A Constituição brasileira prevê a licença maternidade para as  mães gestantes, um benefício que garante o afastamento remunerado  de 120 dias corridos, contrastando com o direito dos pais a apenas  cinco dias corridos de licença paternidade. Essa divergência  continua gerando muito debate no campo da igualdade trabalhista e  levando a dúvidas quanto às responsabilidades dos pais e à forma  como lidar com os casos de adoção, principalmente, quando se trata  de um casal de dois homens. No caso das adoções, anteriormente se  dava às mulheres o direito de licença remunerada por até 120 dias  para que o filho de até um ano de idade e a mãe adotante pudessem  criar vínculos. Mas até o ano passado, a legislação brasileira  desamparava pais solteiros ou casais de dois homens que decidissem  adotar.
  A mudança ocorreu em janeiro de 2014, com a aprovação da Lei nº  12.873/2013 que propôs novas regras para uma licença remunerada  como um direito menos desigual, ou seja, a Previdência Social, não  importando a idade da criança adotada, deve assegurar a um dos  responsáveis o direito de 120 dias de "salário maternidade",  mesmo sendo um pai solteiro adotante ou um homem casado com outro  homem. O advogado Rafael Lara Martins destaca que a justificativa da  lei é que a criança recém-chegada tenha o direito de um tempo de  convivência maior com a nova família.
  Sobre o tema, a advogada Sílvia Ozelame Rigo Moschetta, autora do  livro Homoparentalidade - direito à adoção e reprodução  humana assistida por casais homoafetivos, esclarece outros  pontos: "Sendo a adoção conjunta, somente um dos adotantes poderá  usufruir esse benefício previdenciário. Tal situação também se  confere ao homem em caso de falecimento da genitora, pelo tempo  restante que teria a mãe". A advogada também aponta que o termo  mais adequado seria "licença parentalidade", por contemplar a  pluralidade familiar.
  Outra mudança que continua em tramitação é sobre a extensão de  dias da "licença paternidade", proposta pelo Projeto de Lei  6583/13 como forma de amadurecimento da licença parental, para que  os dois responsáveis pela criança possam participar mais de seu  crescimento e seus cuidados.
  Alguns países já permitem a divisão dos dias da licença parental  entre o casal, como é o caso da Suécia, onde a licença pode chegar  a 480 dias, sendo que cada um dos pais é obrigado a tirar pelo menos  60 dias para cuidar e criar laços com a criança. Na Alemanha, a  licença maternidade tem duração de dois meses, porém, mais 12  meses podem ser solicitados e divididos entre o casal. No Canadá, os  245 dias de licença podem ser divididos a critério de cada casal. A  advogada Sílvia Moschetta argumenta que essas medidas são as mais  indicadas, por colocar a criança, a maior beneficiária dessa  licença parental, no centro das preocupações jurídicas. "Conviver  com a criança nos primeiros meses de vida é sem dúvida estabelecer  vínculos que perdurarão eternamente", afirma. No entanto, segundo  o advogado Rafael Martins, no Brasil, ainda se tem o obstáculo do  custo dessa ausência no trabalho. "Se o Estado brasileiro fosse  capaz de custear os afastamentos, não se distribuiriam esses custos  aos empregadores. Sem esta solução, dificilmente haverá o  necessário progresso nesse assunto".
  Famílias homoparentais e as escolas: um conflito?
  As diferentes configurações familiares estão ganhando visibilidade  social e agora as escolas devem se adaptar às estruturas em que o  núcleo pode ser um homem e uma mulher casados e que morem juntos,  como também suas variações desde avôs criando seus netos, tios e  sobrinhos, uma casa apenas com pais divorciados e as famílias  homoparentais que podem ocorrer por meio da adoção, inseminação  artificial e por filiação homoparental, quando o cônjuge possui  filho biológico, por exemplo.
  Segundo Alexandre Bortolini, mestre em educação que coordenou por  seis anos o projeto "Diversidade Sexual na Escola", da  Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), e hoje trabalha na  área de direitos humanos do Ministério da Educação, é difícil  analisar como as escolas, de uma forma geral, estão agindo, por  existirem no Brasil mais de 190 mil delas, com realidades diferentes  umas das outras. Muitos estudos, porém, apontam uma dificuldade e/ou  despreparo, na maioria dos casos, em lidar com questões sobre gênero  e sexualidade. Esse contexto contribui com uma invisibilidade das  famílias "não-tradicionais" no ambiente escolar, principalmente  as homoparentais.
  "De modo geral, os currículos de formação docente não estudam  essa questão. Então, o conhecimento do docente segue a lógica do  conhecimento social e cultural em que está inserido/a. Isso  significa dizer que o conhecimento sobre famílias homoparentais é  inexistente, com raras exceções. Existe uma racionalidade  preconceituosa e excludente. Pode-se afirmar, então, que as escolas  ainda não conseguem lidar com essa questão", diz a pedagoga Noeli  Gemelli Reali, mestre em educação e professora da Universidade  Federal da Fronteira do Sul (UFFS).
  Náyranoah Larissa conta que ela e sua companheira também se  preocuparam com essa realidade e, no começo, questionavam bastante  se sua filha sofria preconceito na escola por ter "duas mães".  "Deixamos claro que ela poderia nos contar sem problemas. Mas até  o momento, não tivemos nenhuma barreira. A escola, em si, se mostra  muito receptiva", afirma.
  Mariana Farias reconhece que o preconceito enfrentado por esses  filhos pode ser maior, mas argumenta que o preconceito não se  restringe à sexualidade. Ela também destaca pontos positivos sobre  o convívio das crianças com a diversidade familiar, pois as  crianças podem se sentir mais à vontade para ter comportamentos  menos estereotipados em relação ao gênero, como as brincadeiras  restritas a meninos ou meninas. "Não há brincadeiras que devam  ser exclusivas para meninas ou para meninos. São apenas  brincadeiras, que são importantes para a aprendizagem de regras e  para o desenvolvimento psicossocial. Família não é definida pelo  gênero ou pela orientação sexual, mas pelo afeto e vínculos  estabelecidos entre seus membros", afirma.
  Bortolini destaca que "a  escola precisa rever seu jeito de funcionar, abandonando um modelo  ideal de família, que nunca existiu, e aprendendo a trabalhar com  diferentes configurações familiares. Isso pode significar rever  procedimentos, formas de tratamento e até algumas festas  comemorativas".  Reali também defende o fim dessas datas, como "dia  das mães" ou "dia dos pais", para que "o mundo entre na  escola", porque, segundo a pesquisadora, via de regra, a  diversidade familiar não aparece nesses contextos. Além disso, ela  considera invasiva a forma como se dão as festividades nesses  espaços. "Família  é uma vivência e uma experiência muito pessoal e íntima de cada  pessoa. Nem todas as crianças têm o que comemorar", afirma,  acrescentando que a escola deve ocupar esses dias com outras  atividades, como música, literatura e teatro. Sobre a  importância dessa discussão entre os professores, a pedagoga  destaca que o problema não é só o despreparo, mas também o "não  querer se preparar" sobre a temática por parte da escola e  docentes, que muitas vezes transmitem valores e crenças no discurso  curricular que desconsideram a multiplicidade de experiências e  possibilidades dos alunos.
  Adoção no Brasil
  De acordo com o CNJ, em abril de 2015, existiam 5.707 crianças e  adolescentes registrados no Cadastro Nacional de Adoção (CNA), mas  a maioria termina seu ciclo de infância e adolescência em abrigos.  Na contramão, existem 33.373 famílias na lista de espera para  adotar. O CNA justifica que a principal causa dessa discrepância é  a incompatibilidade entre a vontade dos pretendentes à adoção e as  crianças que aguardam uma família. Dos cadastrados para adoção,  18% são negros, 77% possuem irmãos e 91% possuem quatro anos de  idade ou mais. Já entre os pretendes a futuros pais, 27% assinalaram  somente aceitar crianças brancas, 78% não aceitam adotar irmãos e  apenas 35% aceitam adotar crianças de quatro anos ou mais.
  Em 2012, as jornalistas Fernanda Domiciano, Karina Pilotto e Raquel  Hatamoto produziram o videodocumentário (X) Não faz restrição:  um retrato da adoção tardia e especial, que pode ser visto no  youtube. Em fevereiro de 2015, o vídeo  passou a ser utilizado por psicólogos e assistentes sociais do  Serviço de Assistência à Infância e à Juventude (SAIJ), por meio  do projeto "Adote um novo motivo", que envolve todas as varas da  infância e da juventude do estado do Paraná.
 
  
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