A  preocupação com a questão da paternidade como um fenômeno  sociopsicológico – e não apenas de ascendência genética – é  um tópico relativamente recente na pesquisa acadêmica. "Do ponto  de vista da ciência, a paternidade, como objeto de pesquisa, vai se  consolidando ao longo do século XX, em paralelo ao crescimento do  leque de atributos que a integram, em especial, as questões de  cuidado", explica a psicóloga Lisandra Espíndula Moreira,  professora da Universidade Federal de Alagoas (Ufal). Ela é  coautora, juntamente com a psicóloga Maria Juracy Filgueiras Toneli,  da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), do estudo  "Paternidade,  família e criminalidade: uma arqueologia entre o direito e a  psicologia" publicado no ano passado pela revista Psicologia  & Sociedade.
 "O  cenário que torna possível esse investimento na paternidade se  compõe por questões econômicas, como a precarização das relações  de trabalho e a dificuldade do sustento familiar ser assumido por  apenas um membro da família, aumentando também a participação das  mulheres no mercado de trabalho, colocando em questão modelos mais  cristalizados do homem provedor financeiro. Além disso, há questões  científicas, como o desenvolvimento de tecnologia que pode  certificar ou colocar em dúvida a filiação biológica e a  possibilidade de contestar, reafirmar ou reivindicar a vinculação  biológica do homem com filhos e filhas e as consequentes  responsabilidades sociais atreladas a essa vinculação. Também há  uma normalização em torno do cuidado infantil protagonizado pela  medicina e pela psicologia do desenvolvimento, definindo modos de  cuidar que são considerados mais adequados. Há, ainda, questões  sociais, como o movimento feminista e seu impacto na persistente  busca de relações pautadas por equidade de gênero, e questões  teóricas, como as reflexões que tomam como central a questão do  gênero", detalha Moreira. 
 Na  percepção da importância da figura paterna no desenvolvimento  psicossocial dos filhos, funda-se a preocupação com seu corolário:  os possíveis efeitos deletérios nesse desenvolvimento diante da  ausência do pai. A pesquisa sobre esse tema tem um histórico ainda  mais recente. Somente a partir da década de 1980 é que passamos a  contar com uma literatura científica mais sólida sobre a função  paterna, a relação dos pais com os filhos e as consequências da  ausência paterna. A inserção desse tema no campo da pesquisa,  aparentemente, refletia uma modificação cultural na sociedade: em  dezembro de 1979, estreava nos cinemas o filme ganhador do Oscar Kramer vs. Kramer, uma adaptação do romance homônimo de  Avery Corman, lançado dois anos antes, sobre o litígio de um casal  pela guarda do filho. 
 Os  especialistas distinguem duas formas de ausência paterna ou, mais  apropriadamente, ausência das funções paternas. Em uma, trata-se  da falta de convivência entre pais e filhos: a ausência física  paterna. Em outra, o pai está presente, até mesmo exercendo o papel  de provedor e de apoio emocional e moral à mãe, além de ter poder  e autoridade diante dos filhos, mas sem se envolver nos cuidados  parentais: a ausência afetiva. No Brasil, segundo levantamento do  Conselho Nacional de Justiça realizado sobre os dados do Censo  Escolar de 2011, mais de 5 milhões de crianças não tinham nem  mesmo o nome do pai em seus registros. A campanha "Pai  Presente", da Corregedoria Nacional de Justiça, lançada em  2010, objetiva promover o reconhecimento da paternidade, tendo  realizado mais de 18,6 mil audiências para garantia do registro  paterno, 23 mil ações judiciais de investigação de paternidade,  12 mil exames de DNA e 14,6 mil reconhecimento espontâneos pelos  pais. 
 Mas  o que leva certos pais a se afastarem dos filhos? A psicóloga  Sabrina Daiana Cúnico, doutoranda da Pontifícia Universidade  Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS), juntamente com a também  psicóloga Dorian Mônica Arpini, professora associada da  Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), estudou alguns casos de  rompimento conjugal. Em 2014, os resultados de sua pesquisa foram  publicados pelo periódico Psicologia: Ciência e Profissão no artigo "Não  basta gerar, tem que participar? – um estudo sobre a ausência  paterna". Um relato comum, por parte dos homens entrevistados  na pesquisa, foi a ideia de que foram vítimas do "golpe da  barriga", quando a esposa, na visão deles, engravida na tentativa  de manter o casamento já em fase de dissolução. Cúnico aponta que  a percepção, real ou ilusória, de que foram enganados pelas  ex-companheiras "fez com que os pais entrevistados nesse estudo  abdicassem, quase que por completo, do exercício da paternidade  desses filhos". A renúncia à paternidade não foi completa, pelo  fato de cumprirem os requisitos legais mínimos: o registro dos  filhos e o pagamento da pensão alimentícia. Porém, não tomaram  parte de qualquer outro aspecto da criação dos filhos e  desenvolvimento de vínculos afetivos. "Isso parece refletir uma  concepção de paternidade – que há muito perdura – de que a  função primordial do pai é a provisão material dos filhos, como  se a função de cuidado fosse secundária ou uma escolha dos  homens", observa a pesquisadora. Embora o tamanho reduzido da  amostra, cinco entrevistados, não permita uma generalização, o  estudo, de acordo com Cúnico, fornece elementos importantes para  "pensarmos de que forma alguns pais estão se implicando no  exercício da paternidade ao final de uma relação conjugal". 
 Mesmo  nos casos em que os filhos são gerados antes da fase de conflitos  entre os cônjuges, o histórico posterior da relação também pode  afetar a relação dos pais com os filhos. Segundo estudos atuais,  relata Cúnico, após a separação, "diante de uma relação  conflituosa com a ex-companheira, muitos pais tendem a se afastar  também dos filhos, por não conseguir separar os conflitos  resultantes dessa relação conjugal do relacionamento parental". 
 Efeitos  e mecanismos 
 Em  2010, a psicóloga Ilciane Maria Sganzerla Breitenbach, doutora em  educação pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos),  publicou o estudo "Ausência  paterna e suas repercussões para o adolescente: análise da  literatura", em coautoria com a também psicóloga Daniela  Centenaro Levandowski, professora da Universidade Federal de Ciências  da Saúde de Porto Alegre, no periódico Psicologia em Revista.  De acordo com essa revisão bibliográfica, que envolveu 2 artigos  brasileiros e 14 americanos, a ausência paterna duradoura  constituía-se um fator contribuinte para comportamentos de risco de  adolescentes: porte de armas, uso de álcool e outras drogas,  conflitos familiares, mau desempenho escolar, brigas na escola e  início precoce da vida sexual. A obesidade também esteve  correlacionada nesses estudos sobre a ausência paterna. 
 Segundo  Sganzerla, o comportamento adolescente delinquente diante da ausência  paterna está relacionado a uma "carência afetiva exagerada".  Nesse quadro, crianças e adolescentes buscam chamar a atenção por  meio de atos que podem ter repercussões negativas. "Através de  pesquisas empíricas que realizamos, foi possível detectar que não  havia relação direta (da delinquência) com famílias de menor  renda e sim um disfuncionamento do seu papel, muitas vezes,  atravessado pelo papel da mãe superprotetora ou que domine toda essa  dinâmica", complementa. O efeito negativo não acontece quando há  alteração do papel "tradicional" do pai. Se ele está presente  e compartilha tarefas tradicionalmente atribuídas à mãe, como  cozinhar, lavar louças e roupas, isso não é percebido como uma  distorção do papel paterno. No entanto, um pai fisicamente  presente, mas em situação economicamente dependente à mulher pode  produzir situação parecida. "Sabemos que dinheiro é poder e quem  gerencia, no casal, o dinheiro, geralmente tem poder nas relações.  Nesse último exemplo, percebemos um domínio de espaço maior por  parte da mulher, ocasionando, sim, efeitos semelhantes à ausência  paterna". 
 Mas  poderia haver um efeito benéfico na ausência paterna? Os filhos  poderiam desenvolver uma maior independência, por exemplo? De acordo  com Sganzerla, a resposta é negativa. "Não foi averiguado nada de  aspecto positivo. A propensão de tornar-se mais independente é  atravessada em função do papel que a mãe vai exercendo de modo  exagerado para compensar a falta do pai. E toda essa configuração  acaba prejudicando essa possibilidade de fazer os jovens tornarem-se  independentes". 
 No  entanto, é preciso interpretar essa associação descrita na  literatura científica com cuidado, especialmente quando, para além  do mero comportamento rebelde ou mesmo delinquente, há associação  entre a ausência paterna e a ilicitude, como atos infracionais, de  crianças e adolescentes, ou criminais, de adultos jovens. Essa  associação é enunciada em muitas peças jurídicas, como as  analisadas por Moreira e Toneli. "Primeiro, cabe ressaltar que é  uma articulação muito falha e frágil. Há filhos sem pai que não  se envolvem em atividades ilícitas e há filhos com pais que cometem  crimes", alerta Moreira. "O fato dessa associação ser tão  utilizada atualmente para explicar a criminalidade responde a alguns  interesses, em especial a permanente criminalização de determinada  parcela da população que, no Brasil, está atravessada  principalmente pelos marcadores da raça e da pobreza", pondera. "O  maior risco dessa associação entre ausência paterna e  criminalidade são as intervenções na família, determinando modos  de cuidar e criar filhos. É necessário questionar historicamente os  interesses em medir, diferenciar e classificar indivíduos, que nem  sempre buscam a igualdade social e garantia de direitos",  complementa. 
 E  quanto aos diferentes arranjos familiares, amplamente comuns na  sociedade ocidental dos dias de hoje? De acordo com a Síntese de  Indicadores Sociais de 2012 do Instituto Brasileiro de Geografia e  Estatística (IBGE), em 2011, dentre as famílias com filhos o  Brasil, somente 60% correspondia ao arranjo tradicional: isto é, o  pai, a mãe e os filhos. A cada cinco famílias com filhos, duas são  compostas por mães ou pais solteiros, avós e outros parentes ou por  pessoas sem parentescos. Arranjos como esses são ilustrados em obras  como o multipremiado seriado cômico Modern family, que  estreou na TV americana em 2009. Os casais divorciados,  reconstituídos e as relações homoafetivas com filhos adotivos  presentes na série contrastam com as representações familiares  televisivas de décadas passadas, como I love Lucy, Os  Flintsones, A feiticeira e outros dos anos 1950 a 1970.  (Até mesmo A família Addams, constituída por elementos  socialmente pouco adequados, trazia a configuração do núcleo  formado pelo pai, a mãe e os filhos.) Para Sganzerla, o que importa  é se a família é funcional ou disfuncional – a classificação  entre estruturada e desestruturada é ultrapassada. "A figura do  pai pode, sim, ser compensada ou substituída, mas precisa haver um  bom funcionamento, com autonomia, mas com limites, com afeto e  segurança emocional. Faz-se esse mesmo entendimento quanto à adoção  por casais homoafetivos", afirma. 
  A dissolução do casamento não necessita, no entanto, resultar na  ausência paterna. "Poderíamos pensar em políticas públicas  direcionadas às famílias, que incluíssem e reforçassem a presença  paterna no cenário familiar, assim como ações em serviços de  saúde que objetivassem inserir o futuro pai na dinâmica do processo  gestacional, fazendo com que ele perceba e reconheça a importância  do seu papel na vida dos filhos", sugere Cúnico. "Além disso, o  desenvolvimento de projetos em varas de família ou em núcleos de  assistências judiciárias, que auxiliem os pais em processo de  separação e acolham suas demandas referentes ao exercício da  parentalidade no contexto da família pós-separação, são  importantes de serem realizados", prossegue. Isso seria, porém,  suficiente? "Evidentemente, não posso afirmar que esse conjunto de  ações evite, de fato, o afastamento do pai. No entanto, penso que  pode ser um começo para evitarmos a 'naturalização' da ausência  paterna, em especial, nos casos em envolvem divórcio ou separação",  conclui. 
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