| 
                             A universidade é, no imaginário brasileiro,  uma instituição completa: nela, são relevantes as dinâmicas e os interlocutores  internos: os seus professores, os seus estudantes e os seus funcionários. Daí a  concepção arraigada de que, para democratizá-la, basta estabelecer canais que  permitam vocalizar os interesses, vontades e ideais presentes no interior dessa  instituição. Entretanto, essa instituição está longe de ser completa, e, cada  vez mais, as pressões que vem de fora dos muros desse mundo fechado são mais  fortes, não só no Brasil mas em toda parte do mundo. Daí o interesse da  sociedade em saber o que acontece dentro dos muros dessa torre de marfim, e a  pressão por avaliar os resultados das atividades acadêmicas e de pesquisa.  Quais as razões dessa mudança profunda de atitude por parte dos governos e das  sociedades do mundo atual?
 Essas razões são múltiplas, mas duas delas se  destacam. Em primeiro lugar, elas estão associadas à mudança de escala dos  custos do ensino superior para as sociedades. No passado, o ensino superior era  para poucos. Em todos os países, apenas cerca de um a dois por cento dos  jovens, entre 18 e 22 anos, tinham acesso a esse nível de ensino. Então,  qualquer que fosse o custo unitário da educação recebida por esses poucos  privilegiados, o valor total de recursos públicos comprometidos com a educação  superior representava apenas uma migalha nos gastos totais dos governos. Hoje,  não é mais assim: o acesso ao ensino superior se massificou – em alguns países,  como a Coreia, mais de 90% dos jovens estão na universidade –, e os custos para  manter as universidades funcionando consomem uma fatia expressiva dos recursos  que os governos arrecadam da população sob a forma de impostos.  
 Em segundo lugar, os resultados das pesquisas  realizadas nas universidades constituem um dos fatores mais importantes para  garantir vantagens competitivas para a economia de um país, dentro de um cenário  cada vez mais globalizado. A “descoberta” da importância do conhecimento para o  desenvolvimento econômico é uma história longa e bastante interessante, mas que  não vamos tratar aqui. Entretanto, basta assinalar que desde pelo menos meados  dos anos oitenta do século passado, economistas de todas as vertentes começaram  a apontar para o conhecimento, e para a capacidade diferencial do uso desse  conhecimento, como um dos principais fatores que ajudam a entender as  diferenças no desempenho das economias dos países. Também por essa porta,  aumentou o interesse das sociedades e dos governos sobre o que acontece dentro  das universidades, de que forma elas usam o dinheiro público que para lá é  canalizado, e qual a qualidade dos resultados obtidos com o uso dele .  
 Mas a universidade é uma caixa preta. Uma  instituição complexa, com um modelo de governança muito peculiar, onde a  capacidade decisória substantiva tende a estar concentrada nas unidades mais  baixas na hierarquia institucional, os departamentos e centros de pesquisa.  Nesse ambiente, as decisões são produto da pressão cruzada entre os interesses  dos diferentes grupos locais e uma obscura “comunidade de pares” que, pelo  menos nos países mais maduros, controla uma parte relevante dos recursos de  prestígio ligados à carreira acadêmica. Nesse ambiente, é difícil para alguém  de fora avaliar o que de fato acontece dentro das universidades. Um bom ponto  de referência teórica para entender essa dificuldade é o modelo da relação de  delegação, aquela que se estabelece entre aquele que contrata um serviço  especializado e aquele que executa esse serviço: quem contrata não tem a expertise necessária para avaliar se, de  fato, contratou o melhor profissional, ou se esse profissional está levando em  conta os interesses do cliente quando desenvolve seus projetos. Esse é o dilema  básico da relação entre demandante-representante, ou o conhecido modelo  “principal-agent”.   
 Esse modelo foi desenvolvido para analisar  situações em que um ator – o demandante (principal) – delega a responsabilidade por uma ação a outro ator em troca de  recursos. É, portanto, um modelo que busca entender os dilemas e tensões que  acompanha um tipo específico de relação social – a delegação – onde o  demandante dispõe de recursos, mas não aqueles necessários para a realização de  seus objetivos (por exemplo, tem dinheiro, mas não as habilidades necessárias  para realizar um empreendimento). Para alcançar seus objetivos, ele precisa  mobilizar outro ator – o agente (ou representante) – que aceita agir em favor  do principal em troca dos recursos disponibilizados pelo principal.  
 Existem dois dilemas de ação coletiva  associados ao processo de delegação: o risco moral (moral hazard) e erros de seleção (adverse selection). O risco moral decorre das dificuldades que o  demandante tem para garantir que seus objetivos sejam de fato alcançados por  meio da ação do representante. Uma vez que o representante tem objetivos e  interesses próprios, que nem sempre coincidem com os objetivos do demandante,  há sempre a possibilidade de que o representante opte por priorizar seus  objetivos. Os erros de seleção, como o nome indica, estão associados à  dificuldade que o demandante tem para assegurar que o agente escolhido é a sua  melhor opção – porque realmente tem o melhor perfil de competências e  habilidades – para alcançar seus objetivos.  
 Ora, não é difícil visualizar que a relação  da universidade com a sociedade (e com os governos) se reveste justamente  dessas características. Nossas sociedades assumem que as universidades são necessárias,  e que fazem algo bom, útil, e potencialmente relevante para todos. Por isso se  justifica usar recursos arrecadados de todos, por meio dos impostos, para  sustentá-las. Enquanto essa percepção dos resultados positivos da universidade  permaneceu difusa, e os custos dessa instituição eram pequenos, foi possível  preservar aquilo que alguns autores chamam de delegação cega (blind  delegation), em que o governo e a sociedade – no papel de demandantes –  partem do princípio de que há uma completa coincidência entre aquilo que a  universidade quer e faz e os interesses maiores da sociedade (do país, do  Estado etc., etc.). Daí o entendimento absoluto da autonomia universitária: a  universidade faz o que mais lhe convém, porque o que lhe convém é também aquilo  que melhor atende às necessidades da população e do Estado.  
 Entretanto, quanto maior o custo da  universidade, e mais precisas as expectativas que a sociedade tem sobre ela,  maior é a dificuldade para se manter esse entendimento, até certo ponto  ingênuo, sobre os benefícios advindos. Exatamente por isso, em diferentes  partes do mundo, se assiste hoje à derrocada do antigo “contrato social” entre  a universidade e a sociedade. Em seu lugar, diz a literatura internacional, se  impõe um modelo de delegação mais complexo (e menos amistoso para a  universidade), no qual essa instituição é chamada a prestar contas dos  resultados de suas atividades e dos custos de sua operação. Isso é o ponto  nevrálgico da assim chamada avaliação das universidades. 
 O formato dessa avaliação difere de país para  país. Inicialmente, essas avaliações estavam focadas na qualidade dos inputs: o tamanho das bibliotecas, a  qualidade dos equipamentos de pesquisa e de ensino, a qualificação do corpo  docente. Nos modelos mais primitivos, essas avaliações tinham uma lógica  fiscalizadora: demandavam para todas as universidades, de forma homogênea, a  apresentação de um certo número de indicadores simples, tais como o número de  livros nas bibliotecas, a proporção de professores titulados, o número de  artigos publicados por esses pesquisadores etc. Com o tempo, alguns países  elaboraram modelos de avaliação mais complexos, tendo por base contratos  específicos, negociados com cada universidade, e centrados nos resultados das  atividades dessas instituições: número de alunos formados e empregados, a  qualidade desses empregos, o impacto das atividades de pesquisa de seus  professores etc.  
 Questões dessa natureza também estão  presentes na experiência brasileira. Também aqui avançamos para a criação de  estruturas bastante complexas de avaliação. Entretanto, na realidade  brasileira, o problema da avaliação do ensino superior se mistura com a  necessidade de fiscalizar o nosso imenso setor privado, responsável pela  formação de mais de 70% de nossos jovens. Com isso, a avaliação do ensino  superior permanece encalacrada num modelo híbrido que mistura o papel de fiscal  e avaliador. De um lado, temos instrumentos bastante avançados de avaliação,  por outro lado, o uso que fazemos deles é muito primário. Nossa avaliação ainda  está centrada na exigência de um conjunto relativamente pequeno de indicadores,  que são impostos homogeneamente a todas as instituições de ensino, sejam elas  grandes universidades públicas de pesquisa, ou pequenas escolas do interior. O  problema desse modelo de avaliação é que ele alimenta estratégias  diversionistas, tanto nas instituições públicas como nas instituições privadas.  No setor privado, ela alimenta a tendência à concentração em megainstituições,  capazes de arcar com os custos de produzir os indicadores demandados sem que  isso atrapalhe seus negócios. No setor público, esse modelo de avaliação não  altera a configuração de forças dos diferentes interesses presentes na  governança da instituição. As manobras internas para responder às demandas da  avaliação terminam por contribuir para aumentar a percepção da sociedade de que  essas instituições fazem menos do que poderiam, mesmo quando isso não é  verdade. 
 Elizabeth  Balbachevsky é  professora do Departamento de Ciência Política da Universidade de São Paulo e  pesquisadora associada ao Penses – Fórum de Pensamento Estratégico da Reitoria  da Unicamp e associada ao Lees, Laboratório de Estudos em Ensino Superior, da  Unicamp. 
                         |