O século XXI  � um tempo histórico muito irônico. Nossa ironia particular �  cibernética e plástica, e reside mais do que nunca em nossos corpos  e no entorno planetário. Com o avanço da industrialização das  economias e a rapidez dos procedimentos de produção e comunicação,  a Terra tem se transformado irreversivelmente em um organismo com  mutações sintéticas: a sua própria corporalidade agora inclui  componentes imutáveis organicamente, que transfiguram a nossa  biologia e a consciência individual. Como consequência, as  ecologias e espécies contidas na biosfera sofreram transformações  e viraram “ciborgues�1:seres  orgânicos com componentes sintéticos. 
  Hoje, também  como em todos os tempos históricos difíceis, o ser humano precisa  de mitos2,  para entender o enigma de estar vivo. Joseph Campbell, especialista  em mitologia comparativa, falou que os mitos são importantes “não  porque explicam o significado da vida, mas porque nos ajudam a  entender a experiência problemática de viver�, com todas as suas  contradições, incertezas e maravilhas (Campbell; Moyers, 1988, p.  15). Ele frisa que os mitos precisam mudar com os tempos, porque cada  época traz consigo enigmas e problemas peculiares a seu momento, e  velhas “lições� nem sempre servem a um novo paradigma. 
  O advento  tecnológico dos plásticos, a crise climática e as catástrofes  resultantes, como a aparição dos corpos ciborgues,  estão provocando circunstâncias completamente inéditas, e os  nossos mitos tradicionais não estão dando conta dos grandes  desafios logísticos e morais que, em breve, nós iremos enfrentar.  Este artigo pretende discutir o contexto atual da crise climática e  as suas dimensões culturais, e examinar mitos vivos e futuros, que  podem nos ajudar a navegar nas águas turbulentas do colapso  desesperador da nossa “casa comum�3. 
  Contexto  atual: uma versão mini do megadesastre 
  Em termos  geológicos, estamos vivendo na época Holoceno, que começou com o  fim da última era do gelo (Pleistoceno). Alguns sugeriram que j�  passamos para outra época, chamada de Antropoceno4,  após o domínio dos efeitos humanos no planeta. Esses efeitos são a  consequência direta e indireta dos padrões de consumo de nossa  espécie, nos tempos industriais, principalmente, e refletem a nossa  atitude moral e espiritual perante a natureza. A atividade de consumo  atual da população humana est� ultrapassando a capacidade do  planeta de nos abastecer dos elementos básicos para viver (água  potável, recursos não renováveis) e, ao mesmo tempo, est�  depredando o meio ambiente, de tal maneira, que, em breve, não  teremos equilíbrio suficiente para manter a vida, como a entendemos  hoje. Esse último perigo se deve aos fatores de mudança da  temperatura (principalmente o aquecimento dos oceanos e dos polos) e  a extinção de números massivos de espécies. Para complicar ainda  mais a situação, essa informação, comprovada pela ciência, não  parece suficiente para nos convencer da urgência de mudar o nosso  comportamento, nem na micro nem na macro escala das possibilidades.  Estamos vivendo uma negação mundial, de proporções ilógicas e  mortais. Essa incapacidade atual do ser humano de reconhecer e dar  conta da crise do meio ambiente, criada por nós, tem a ver com  vários fatores, econômicos e sociais, como a dominação econômica  multinacional das indústrias de extração, em nível global (e os  hábitos de consumo de uso único, a ela inerentes), a  sobre-população e suas origens, e o fenômeno da violência  lenta ou invisível,  tão elegantemente definida pelo jornalista Rob Nixon5,  que torna imperceptíveis os danos em nosso entorno natural. A  combinação dessas complexas realidades convergentes dificulta a  consciência de perigo, na maioria das pessoas que conseguem enxergar  pedaços do problema externo e interno aos seus corpos, mas pouco se  organizam para promover mudanças compreensivas em favor de seus  próprios interesses, orgânicos e da biosfera, nesse momento de  extinção eminente. Além de ser uma escolha irônica, no pior  sentido, � uma postura pouco política, que reflete uma insanidade  coletiva. Como podemos penetrar essa borbulha de passividade? 
  O ciborgue e as dialéticas impossíveis 
  Aqui  inter-relacionamos algumas das ideias seminais da escritora,  feminista e bióloga, Donna Haraway e seu Manifesto  ciborgue (2000), refletindo sobre a dominação da indústria dos plásticos,  reconhecendo algumas características dos arquétipos da sereia e da  mitologia da deusa do mar Iemanj�, e propondo finalmente a narrativa  mítica, como anedota, a essas negações. Assim, Haraway, no Manifesto  ciborgue,  define uma das utilidades da ironia, como ferramenta narrativa: “A  ironia � sobre contradições que não se resolvem em conjuntos  maiores, mesmo dialeticamente, sobre a tensão de manter o humor e  jogar sério. � também uma estratégia retórica e um método  político, aquele que eu gostaria de ver mais honrado� (Haraway,  2000, p. 291). 
  Cabe explicar  que o Manifesto de Haraway se preocupa com a interface da tecnologia e o feminismo  socialista, na última parte do século XX, e ela constrói uma  definição de seres ciborgues como  “organismos cibernéticos, híbridos de organismo e máquina, uma  criatura de realidade social tanto quanto de ficção científica�  (Haraway, 2000, p. 291). Na concepção de Haraway, ciborgue corresponde  a um pensamento de tradição racista, machista e capitalista, que  incorpora (literalmente: d� corpo) a uma “tradição de progresso  e apropriação da natureza como recurso para a produção de  cultura� (Haraway, 2000, p. 292). � também, nessa visão, que um  ser irônico representa uma dialética impossível. Um ser condenado  às contradições biológicas e ideológicas do tempo político e  industrial em que vive. 
  Trazendo a  ideia de Haraway (2000) at� os dias atuais, vemos que ainda estamos  incorporando, de maneira ciborgue,  as modalidades tecnológicas que essa autora assinalou, h� quase 40  anos atrás, mas temos componentes cibernéticos, em forma de  plásticos, e j� presentes em todas as partes de nosso organismo e  no organismo do planeta. (Onde Haraway (2000) apontava para um  militarismo patriarcal, como o instrumento de deformação do  natural, eu aponto para a presença dominadora da indústria dos  plásticos, que interfere em nossa existência política e econômica,  mas também ao nível celular para construir o novo ciborgue.)  Vejamos agora porque os plásticos são frutos de uma incorporação  de dominação das indústrias, que têm nos levado ao ponto de  transformação e extinção massiva irreversível de muitas  espécies: eles estão no topo da hierarquia de consumo e provocam  essa nova dialética impossível, em nossos próprios corpos e na  Terra.Extruder Machine 
  A  supremacia dos plásticos 
  Essa  supremacia � uma herança da dominação global das indústrias de  extração, que não podemos conceber fora da história mundial do  imperialismo colonialista e do multinacionalismo industrial; um  projeto econômico que usou a mitologia crist� e sua moralidade  antro-centrista para justificar os seus fins. A raiz da grandeza  petroquímica est� no oportunismo hegemônico humano sobre a  natureza e no genocídio dos povos indígenas, como um movimento  capitalista de superioridade, que gera sub-economias de guerra, ao  nível global, para manter o acesso e o controle sobre o petróleo.  Isso garante o futuro de produtos novos, cada vez mais baratos, para  entrar no ciclo vicioso de um mercado inesgotável de compradores de  todas as classes sociais6. 
  Ao nível mais  básico, a indústria petrolífera � a fonte de energia para a  grande maioria das indústrias e de uso doméstico mundial, controla  a locomoção das pessoas e os produtos que consumimos. � a base da  maioria dos agrotóxicos e de toda a produção de plásticos �  substância irreversível na biosfera, uma vez consolidada em sua  composição estável. Fisicamente, o plástico não pode ser  biodegradado ou reaproveitado no ciclo orgânico da biosfera. Jamais!  O plástico mantém a mesma estrutura molecular, e s� �  fotodegradado, com tempo, em contato com o sol, dissolvendo-se, aos  poucos, numa substância cada vez de menor tamanho, que se dispersa  no meio ambiente, com mais facilidade, normalmente através da água,  at� chegar um dia aos mares (Moore, 2011). 
  Destacamos  que, no âmbito dos avanços tecnológicos, industriais, médicos e  estéticos, os plásticos proliferam em nossas vidas, e são  milagrosos. Não podemos existir ou passar um dia sem eles, no  paradigma atual, pois todos os tipos de plástico estão integrados  completamente � existência humana � at� no nível molecular,  como substância ingerida e absorvida pelo próprio organismo. 
  A permanência  e a predominância do plástico em nossas vidas � uma ironia, porque  se trata de uma substância com uma duplicidade em seu uso: a sua  conveniência e eficácia material � vista como um progresso, mas a  curta validade de seu uso e a alta toxicidade desse produto, uma vez  fora da circulação, no seu uso pelo consumidor, o transforma em uma  arma passiva e lentamente letal, que vem acompanhada de um preço  alto, em termos de resíduos tóxicos, no meio ambiente e no corpo  humano e animal. A nossa identidade ciborgue,  hoje, tem tanto a ver com as tecnologias e com as máquinas quanto  com a composição sintética de nossos corpos, cada vez mais  pronunciada, de elementos de plástico. Isso vai muito mais além de  implantes e próteses, por questões estéticas e funcionais. Por  exemplo, a maioria dos fertilizantes e agrotóxicos usados no cultivo  de vegetais e frutas comerciais, � de origem petrolífera. Mamíferos  e peixes que comemos ingerem esses resíduos e partículas de  plástico, que acabam em nossos corpos, modificando-nos, sem  possibilidade de reverter o processo (Pollan, 2007). 
  Basta entender  que j� não temos como voltar atrás, e que, por muito, os  arquitetos dessa supremacia estão apostando na nossa dependência  dos plásticos, mas temos de reconhecer o papel cúmplice individual  e social que a permite. Com a evidência montada na frente (e no  corpo) de cada ser humano dessa existência ciborgue,  chegar� o momento de encarar a probabilidade da nossa própria  extinção, e cogitar uma esquiva coletiva? As ciências são claras  sobre esse assunto, mas isso ainda não � suficiente para despertar  grandes ações, por parte dos governos e indústrias, com a rapidez  necessária. A idade da ciência e da razão trouxe consigo a ideia  de que o ser humano podia dominar a natureza para nosso uso completo,  e isso logramos, mas essa prerrogativa moderna tem extinguido a  maioria das sociedades que veneraram a natureza, e que tinham uma  “mitologia da natureza� (Campbell; Moyers, 1988), resultando numa  desvalorização da sua sabedoria vital, com métodos e crenças  inúteis ou ineficazes. As ciências nos deixaram sem um imperativo  moral (as ciências, a propósito, não se importam com a  moralidade), enquanto a nossa relação com o entorno orgânico e a  nossa espécie se encontram, ambas, naufragando num mar de plástico,  sem guias éticos para corrigir essa relação necessária com o meio  ambiente. Quais são os mitos existentes que podem nos guiar at� uma  mudança viável, que abra novas perspectivas para o cuidado de nossa  “casa comum�, sem voltarmos para a Idade da Pedra? Ser� que  existem, ou cabe ao mundo imaginário criar novas narrativas, para  nortear a existência, usando, como base, a sabedoria ecológica, j�  que as ciências não dão conta? 
  O oceano �  a mãe de todos nós   
  Desde a teoria  da evolução de Charles Darwin, que propôs o mar como a origem da  “vida�, o oceanógrafo Jaques Cousteau � que levou ao público  moderno as profundezas do mar, em seus programas e filmes televisivos  �, a importância, a maravilha e o mistério do mar estão  sedimentados em nossas consciências. E, se acreditamos na  consciência coletiva de Carl Jung (1964), a humanidade tem  internalizado a simbologia do mar, nos milhares de anos de nossa  evolução, para que o significado dele viva sempre em nossas  consciências. O mar físico domina o território do planeta e também  fica, na maior parte, invisível, e s� existe no imaginário do ser  humano como um espaço primordial. Inabitável pelo ser humano e  conhecido, s� superficialmente, exceto pelos cientistas experts,  o mar � um mundo � parte, que nos brinda com o sustento básico e  guarda ainda muitos segredos. 
  O capitão  Paul Watson, intervencionista ambiental canadense e fundador da Sea  Shepherd Conservation Society, passa a maior parte da sua vida no  mar, defendo-o como ativista. Ele sublinha o nível de depredação  atual que atinge, de maneira vital, essa ecologia: 
  A  acidificação e o aquecimento do oceano são muito sérios, e  plásticos são parte disso. As Nações Unidas dizem que toda a  pesca mundial entrar� em colapso no ano de 2048 e recifes de coral  poderão ter ido embora at� 2025 ... a mensagem que eu tento  passar o tempo todo � simples: se os oceanos morrem, vamos morrer.  Não vivemos neste planeta com um mar morto, pois � a base de nossa  existência. 80% do nosso suprimento de oxigênio vem do  fito-plâncton; os oceanos regulam a temperatura e o clima.Proteger a  diversidade biológica em nossos oceanos � a coisa mais importante7. 
  O dilema  particular da saúde debilitada dos nossos oceanos e da poluição de  plástico nos mares e hidrovias ressalta e simboliza o nível de  sobrecarga que estamos causando nesse ecossistema, e, paralelamente,  a nossa dependência do comércio de “coisas�, que � alimentada  pela indústria do petróleo. Sem a saúde dos nossos oceanos, nossa  verdadeira origem ficar� prejudicada, seremos, então, uma espécie  com um futuro sombrio. Reintroduzimos a ideia da narrativa mítica  com relação às profundezas marítimas, porque acreditamos que �  difícil encontrar uma cultura que não usa a mitologia para explicar  os poderes e segredos dos mares. 
  Iemanj� �  a deusa do mar 
  Iemanj� ou a  deusa do mar foi trazida da África, através de grupos étnicos  negros, durante a colonização do Brasil. A mitologia e a  manifestação de Iemanj� aparecem nas Américas. Na Bahia, o mito  de Iemanj� foi trazido pelos povos, principalmente, da etnia ioruba.  No seu livro sobre a mitologia de Iemanj�, o professor e filho de  santo, Armando Vallado, define as suas origens: 
  Os  mitos dos orixás constituem certamente a fonte básica para o  conhecimento de Iemanj�.  Esses mitos, que fazem parte da tradição  oral dos diversos povos que formam o complexo linguístico-cultural  ioruba, foram preservados nos países da diáspora africana,  especialmente Brasil e Cuba..levados pela expansão das diferentes  modalidades americanas da religião dos orixás. (2011, p. 17) 
  Nos mitos  reunidos por Vallado (2011), Iemanj� aparece como mãe, esposa,  filha e amante, mas a sua característica mítica (sagrada) est� na  associação com “as águas dos rios e suas desembocaduras, a  fertilidade das mulheres, a maternidade e, principalmente, ao  processo de criação do mundo e da continuidade da vida... Seu nome  � Yemonja (Yeye  Omo Eja),  Mãe dos Filhos Peixes, divindade regente da pesca� (2011, p. 24). 
  A antropóloga  cubana Lydia Cabrera (1996) identifica sete manifestações de  Yemanj�. Estas variam em seus papéis protagonistas de matrona, às  vezes ela aparece como guerreira e protetora, outras vezes  manifestada com uma doçura maternal e serena. Cabrera destaca uma  entrevista com um santeiro notável, na sua introdução sobre a  entidade: 
  Yemanj�  � a rainha universal porque � a água, a salgada e a doce, o mar  (la  mar),  a mãe de tudo criado. Ela alimenta a todos, pois sendo o mundo terra  e mar, a terra e quantos vivem nela, graças a Ela se sustenta. Sem  água, os animais, os homens e as plantas morrem.  (Cabrera, 1996, p.  21) 
  Enquanto isso,  Martins (2008), pesquisadora baiana e professora de dança, estudou a  dança de Yemanj�, no Candombl�, e aponta para as manifestações  contemporâneas e populares da divindade, 
  na cultura  baiana: 
  A popularidade  de Yemanj� como um fenômeno cultural tem influência marcante na  vida cotidiana dos baianos. Ela est� presente de maneira viva nos  corações e nos pensamentos do povo baiano, que habita um estado  rico em águas fluviais e a Baía de Todos os Santos. De fato, ela �  muito popular como um orix� feminino, onipresente e poderosa força,  sendo cultuada por mais de trezentos anos, desde o tempo em que os  africanos chegaram no Brasil ...e que simboliza fertilidade e  fecundidade. A sua figura popular est� associada ao símbolo  universal da sereia, ou seja, uma morena de traços latinos, como  resultado da fusão com as mães-d’água europeias, indígenas e  africanas. (Martins, 2008, p. 59) 
  Usando como  base essas identificações dos poderes sagrados da deusa do mar, uso  como referência contemporânea a mitologia de Iemanj� ou Yemanj�,  e inter-relaciono-a com a sereia profana porque � uma das deusas  mais associadas aos oceanos e mares � ecologia de importância  fundamental para a minha pesquisa sobre performance e meio ambiente.�  um ser mítico, sendo muitas vezes associada ou representada como uma  sereia � arquétipo universal que atravessa fronteiras culturais e  existe em um estado híbrido ou ciborgue,  no contexto da sociedade moderna; e � uma deusa venerada em culturas  próximas a mim, tanto a cultura brasileira quanto a cubana. 
  As sereias  como símbolo universal de nossa relação com mares e água 
  A sereia �  uma figura da mitologia humana, não necessariamente sagrada, e  existe como um modelo em nossa consciência coletiva, sem ter sempre  a dimensão de uma deusa. As pesquisas de Carl Jung (1964) sobre  arquétipos, em mitologia, símbolos e na psicologia humana,  evidenciam a presença recorrente, nas culturas do mundo, do “animus�  que, frequentemente, aparece como uma sereia. Além disso, ela vem  acompanhada de características femininas, maternas, eróticas e  fantásticas, que contêm em si as possibilidades de nossos desejos  carnais e existenciais, em relação a pertencimento e segurança.Essa  figura também tem um lado negativo, ou moralmente comprometido, e  pode significar uma queda de esforço moral. A sereia tem aparecido  nas narrativas folclóricas como um ser sedutor, que controla os  ventos e os mares, e atrai os marinheiros para possu�-los,  levando-os para o fundo do mar (Milne, 2008).Campbell (1988) fala que  o mito tem quatro funções: a mística, a cosmológica, a  sociológica e a pedagógica. Segundo ele, � a quarta � a função  pedagógica � que nos est� fazendo falta agora, porque não temos  mitos que nos deem pistas ou exemplos para entender como lidar com a  complexidade das ironias � as dialéticas impossíveis � de  nossos tempos plásticos. 
  Novos mitos  híbridos 
  Historicamente,  um dos papéis da arte � proporcionar estratégias para desmontar  supremacias e levantar contradições. A arte forma-se em nossos  sonhos coletivos e manifesta os medos, possibilidades e urgências,  que se tornam visíveis e têm chances de mudar a realidade,  ressaltando outros valores. Olhando de novo para Haraway (2000),  consideramos algumas características subversivas dos ciborgues,  que vislumbram um futuro irônico e talvez nos ajudem a construir  narrativas míticas alternativas, da deusa do mar e da sereia.  Haraway indica a blasfêmia como uma postura prudente para um ciborgue:  “Blasfêmia não � apostasia�. Esta nos protege de uma hegemonia  moral e, ao mesmo tempo, “insiste em comunidade� (Haraway, 2000,  p. 291). A blasfêmia fala contra algo � um tabu � e rejeita o  sagrado que também internalizamos. No contexto atual, o sagrado não  são as figuras míticas tradicionais (a Iemanj� ou a sereia), mas a  supremacia artificial que nos absorve, o deus do shopping e  dos produtos baratos e sintéticos. A blasfêmia maior de nossos  tempos ser� rejeitar a dominação dos plásticos � esse deus  falso � que ainda carregamos dentro de nós. Temos que começar a  recusar e transformar os milhões de toneladas de lixo plástico que  j� existem na biosfera para reposicionar os nossos corpos em uma  construção alternativa. 
  Nessa junção,  precisamos da blasfêmia e de um novo sentido do sagrado, ao mesmo  tempo. O velho deus do progresso s� gera lixo. Reciclagem não �  suficiente. Que tal reciclarmos as deusas que foram mortas ou tão  mal amadas, que nos abandonaram? Tomemos a sereia como um animal da  mitologia, da ciência e da ficção, mas, agora, em virtude de morar  no mar, ela também � composta de plástico, e � um ciborgue que transita em um lugar contemporâneo. Ela tem relação direta com  a deusa do mar. Ela � a mulher maravilha, com escamas e calda, uma  sereia vigilante, membro da milícia de uma “Iemanj� pós-moderna�.  Nas palavras de Haraway, ela � “resolutamente comprometida com a  parcialidade, a ironia, a intimidade e a perversidade. Ela �  oponente, distópica e completamente sem inocência� (2000, p.  292). 
  A sereia  vigilante tem uma missão: “desmascarar o irracionalismo�, usando  uma mitologia ciborgue para imaginar poeticamente um futuro onde nós não seremos extintos,  mas onde conseguiremos reviver os mares, reconstruindo nossas  comunidades dos escombros plásticos, talvez erguendo pirâmides  feitas de copos descartáveis, lixo eletrônico e garrafas PET. Ela  ser� capaz de resistir, porque ela ainda não pode ser codificada.  Ela � pós-internacional, pós-marxista, pós-eco-feminista,  pós-folclore e pós-plástica: � a mulher-peixe, que transcende o shopping,  e nos faz lembrar a reverência que devemos ter para com a mãe das  águas. 
  A criação de  novos mitos existe no contexto de arte e ativismo, em um mundo  globalizado, em tempos de mudança climática, impostos por múltiplos  esforços, além do controle e do tempo do próprio artista, como a  supremacia dos plásticos. Apesar dessas dificuldades, menciono a performance  ambiental como uma estratégia artística real, cuja foco principal � criar  metáforas visuais e performáticas, para sublinhar o impacto que o  lixo, no seu sentido mais amplo, tem sobre o ambiente natural (praias  e mares) e no próprio ser humano.Estou criando uma “sereia  vigilante�: um arquétipo-super-heroína que � blasfema sobre os  antigos seguidores, aqueles que poluem e sujam as praias e os mares.  Ao mesmo tempo, isso representa várias espécies, utilizando os  métodos modernos para chamar a atenção para a falta de respeito  com a nossa mãe dos mares. Enfim, somos todos filhos-peixes. 
  Elizabeth  Doud � performer, escritora, gestora na área de artes cênicas, e  trabalha nas áreas de colaboração cultural e crise climática.  Mestre em escrita criativa, pela Universidade de Miami (Estados  Unidos), atualmente cursa o doutorado no Programa de Pós-Graduação  em Artes Cênicas da Universidade Federal da Bahia. 
 
 
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