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                             Para  uma boa parte dos leitores deste artigo, ir de um lugar para outro  não � muito difícil. Nós acordamos de manh�, colocamos roupa,  escovamos os dentes e saímos de casa. Pegamos um ônibus ou o metr�,  ou vamos de bicicleta, e não � uma grande dor de cabeça. Pode ser  demorado ou desconfortável ser espremido em um vagão, mas tudo bem.  Chegamos aonde queremos ir. Porém essa não � a realidade de todos.  Para alguns usuários do sistema de transporte público, essa  história � bem diferente. � uma história repleta de desafios,  batalhas e, muitas vezes, derrotas. Essas são as pessoas com quem eu  trabalho, aqueles que são frequentemente traídos pelo sistema. Mais  claramente, eu pesquiso acessibilidade para cadeirantes no transporte  público de Londres, um tema geralmente tratado por engenheiros. Eu  escolhi abordar o tema de outra maneira: sou socióloga e quis  entender a questão da acessibilidade da perspectiva desses  passageiros e as táticas dos mesmos para se locomoverem pela capital  britânica. 
  Considerando  “deficiência� e exclusão
  O  mundo de pessoas com deficiência vem sendo estudado no mundo  acadêmico h� tempos, mas, primeiramente, pelas disciplinas médicas.  No hemisfério norte, e particularmente no Reino Unido e nos Estados  Unidos, questões sobre deficiência se intensificaram após a  Primeira Guerra Mundial e a volta de milhares de soldados, muitos dos  quais haviam sofrido perda de membros ou de sentidos (vista,  audição). No início do século 20, as pesquisas se preocupavam  primordialmente com a reabilitação desses veteranos e, assim,  surgiu o modelo médico da deficiência (the  medical model of disability).  Segundo esse modelo, deficiência � uma característica pessoal,  particular, do indivíduo. Dessa maneira, deficiências se tornaram  algo que, ou a medicina � capaz de curar ou solucionar, ou algo com  o qual se “deve lidar�. Isso acabou naturalizando a exclusão  social de pessoas com deficiências, e fez com que a ausência deles  na vida social cotidiana fosse atribuída � inaptidão.  
  Foi  apenas na segunda metade do século 20 que essa percepção começou  a ser desafiada. No Reino Unido, particularmente, grandes fundos de  caridade começaram a se estabelecer, assim como centros residenciais  para pessoas com deficiências, que ofereciam uma alternativa para  famílias que, anteriormente, se responsabilizavam totalmente pelo  cuidado daquelas pessoas. Essas novas instituições permitiram a  organização de grupos de pessoas com deficiência e suas famílias  e reacendeu a discussão sobre o conceito de deficiências e como  estas deveriam ser vistas pela sociedade. Dentro do mundo acadêmico  isso se traduziu pela introdução de narrativas e pesquisas feitas  por estudiosos com deficiências, que deflagraram uma nova maneira de  conversar sobre inclusão social, e as razões pelas quais ocorria  exclusão de modo geral (Shakespeare, 2006). Esses estudos eram  feitos dentro da área de ciências humanas e sociais e nasceu,  então, na década de 1970, o modelo social da deficiência (the  social model of disability).  
  Ao  contrário de seu antecessor, o modelo social define a exclusão  social de pessoas com deficiência não como responsabilidade  particular do(a) indivíduo(a), mas como condicionada por fatores  sociais. Em 1976, a Union of the Physically Impaired Against  Segregation definiu deficiência como sendo “a desvantagem ou  restrição de atividade causada por uma organização social  contemporânea que tem pouca ou nenhuma consideração por pessoas  que têm deficiências físicas e que, então, as excluem da  participação em atividades sociais convencionais� (Tradução  livre: UPIAS, 1976). Ou seja, a característica pessoal (impairment,  ou restrição física) não � a razão da exclusão social; essa se  institucionaliza através de uma série de padrões, normas e  atitudes prevalentes na sociedade.
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  Esse  novo modelo social foi um instrumento importante na luta política  pelos direitos de pessoas com deficiência, que não se propunha como  uma explicação da deficiência, mas sim do processo de invalidação  de corpos e mentes diferentes (Beckett & Campbell, 2015). Foi  pelo uso do modelo social que foi possível realçar como o ambiente  construído, por exemplo, pode ser exclusivo e excludente em sua  concepção, pela falta de elevadores, rampas ou sistemas  audiovisuais (entre outros). Assim foi também possível criar  legislações e orientações que refletem essa exclusão social e  tentam remedi�-la, tal como o Americans with Disabilities Act (1990)  nos Estados Unidos e o Disability Discrimination Act (1995) no Reino  Unido.  
  Sistemas  rígidos e exclusão
  Os  estudos da deficiência (disability  studies) � um campo interdisciplinar que prioriza as experiências e  narrativas de pessoas com deficiências e, como tal, j� �  interessante por si s�. Porém, em uma pesquisa sobre sistemas de  transporte público � necessário também dar importância ao  processo de desenvolvimento tecnológico. Os estudos da ciência,  tecnologia e sociedade (ECTS) são um campo que permite desenvolver  uma perspectiva social sobre a maneira que artefatos e pessoas  interagem. Argumenta-se que uma tecnologia ou teoria científica não  � independente de seu contexto social, mas sim o resultado deste.  Estuda, então, quais foram os processos que estabeleceram uma  tecnologia com determinado formato e atributos e não outros. Por  exemplo: por que as bicicletas não têm mais uma roda pequena atrás  e grande na frente? No meu trabalho, uso essa abordagem para pensar  sobre o sistema de transporte público e como ele pode reforçar a  exclusão social de pessoas com deficiências, particularmente por  ser exatamente o meio que permite mobilidade e acesso entre a esfera  privada (a casa) e a esfera pública (escola, praça, prefeitura  etc). Se o transporte, e particularmente o transporte público, não  for acessível, muitas pessoas com deficiência se tornam dependentes  e veem seus mundos se tornarem cada vez menores.
  O  provedor de transporte público em Londres, Transport for London  (TfL), divulga com orgulho dados sobre a acessibilidade da rede: 98%  da frota de ônibus tem rampas e um terço das estações de metr�  tem acesso para cadeirantes. Algumas pessoas poderiam at� dizer que  não existe motivo para cadeirantes terem dificuldades para se  locomover em Londres. Apesar desses dados, as reclamações ainda são  constantes. Por exemplo, recentemente a baronesa Brinton teve negado  o acesso a um ônibus porque havia um pai com um carrinho de beb� no  espaço dedicado às cadeiras de rodas (Pettitt, 2015). Mais  recentemente, acompanhei um homem, Alan, para observar suas táticas  enquanto viajava por Londres. Ele disse que aquela tarde tinha sido  tranquila � apenas uma rampa estava quebrada em um ônibus, uma  porta defeituosa em outro, e nenhum passageiro ou motorista reclamou  do atraso causado por isso. Pareceu-me que o retrato descrito pelo  TfL não reflete os relatos destes, e tantos de outros cadeirantes, e  busquei entender as possíveis causas dessa incongruência.
  Na  minha pesquisa, entrevistei 30 cadeirantes sobre suas experiências  com transporte em Londres. Um tema que surgiu dessas mais de 40 horas  de conversa � que acessibilidade � o  resultado de uma combinação de fatores � tecnol�gicos,  espaciais, e sociais. Alguns usu�rios  me contaram hist�rias  sobre terem ficado presos em uma estação subterr�nea  porque o metr� foi  desviado para uma rota inacess�vel.  Outros me contaram sobre quando não havia espaço suficiente para  eles entrarem no �nibus,  como a baronesa Brinton. Pouqu�ssimas  dessas hist�rias  são causadas por apenas um fator, pois a rede de transporte pode ser considerada um sistema  sociotécnico. Na literatura de ECTS, esses sistemas são  caracterizados por serem constituídos por artefatos tecnológicos e  estruturas sociais que se constroem e se moldam mutuamente. Esses  sistemas também são definidos por terem objetivos e solucionarem  problemas ao “reorganizarem o mundo físico de maneiras  consideradas úteis ou desejáveis, ao menos por aqueles que desenham  ou usam o sistema tecnológico� (tradução livre: Hughes, 1987, p.  53).
  Um  momento interessante na vida desses sistemas � o que Hughes chama de  consolidação (consolidation),  uma fase na qual existem poucos sistemas em competição com o mesmo  objetivo. Essa � discutivelmente a etapa na qual se encontra o  sistema de transporte público em Londres, onde o TfL regula todos os  modos de transporte (ônibus, metr�, taxis, bondes etc) e detém  significativo poder decisório. Porém, o mais interessante � como  chegamos a esse momento de consolidação � a história do  transporte em Londres � muito longa e começa a se tornar oficial na  época vitoriana, com o desenvolvimento da primeira linha de metr�,  em 1863. Desde então, passados 150 anos, a rede de transporte se  desenvolveu de maneira muito rápida com uma malha de 402 quilômetros  e uma frota de mais de 8000 ônibus. Para garantir a harmonia de um  sistema de tal tamanho, foi necessário um processo de padronização  para que todas as diversas partes da rede pudessem se comunicar em  uma língua comum. Esse processo necessita, e também causa, uma  certa rigidez no sistema.  
  �  justamente essa rigidez que pode ser considerada a alma do problema  da acessibilidade. Durante o processo de padronização do sistema,  os conceitos sociais que definiam quem era, ou seria, um passageiro  do transporte público, não incluíam pessoas com deficiências. Ou  seja, escolhas foram feitas durante esse processo o que, segundo os  autores Susan Leigh Star e Geoffrey Bowker, “não � inerentemente  ruim � certamente � inevitável. Mas � uma escolha ética, e,  como tal, � perigosa � não ruim, mas perigosa� (tradução  livre: Bowker & Star, 2000). O perigo aqui � que as escolhas  foram feitas em uma época quando ainda seguiam o modelo médico da  deficiência, que abordamos acima, e a rede não foi concebida com a  necessidade de pessoas com deficiência em mente. Se o transporte em  Londres pode ser tido como estabilizado e consolidado, ele não o �  para esses passageiros, que ainda se sentem marginalizados pela  experiência.  
  Pensando  em um futuro brasileiro inclusivo
  Propostas  para solucionar essa exclusão sistêmica de pessoas com deficiências  s� começaram na década de 1990. O DDA, mencionado acima, foi uma  das chaves para tentar melhorar o nível de acessibilidade �  começaram com a substituição, em fases, do antigo ônibus  Routemaster, que tinha degraus, por uma nova geração, com o piso  rebaixado e uma rampa. Porém, essa substituição demorou at� 2005,  com a meta de aderência total at� 2009 (com a exceção de algumas  rotas históricas para turistas). No caso do metr�, apenas a  extensão da linha Jubilee, inaugurada em 1999, foi desenhada com  acessibilidade em primeiro plano, e, das 270 estações, apenas 67  são consideradas acessíveis (das quais apenas metade não precisa  de uma rampa manual para entrar no trem da plataforma). A  modernização de plataformas e estações antigas tem um custo  altíssimo, e o TfL projeta conseguir a remodelação de mais 28  estações nos próximos 10 anos. Então, o que podemos aprender do  caso londrino, para aplicações concretas no Brasil?
  A  questão da inclusão social de pessoas com deficiências não �  mais uma questão do “politicamente correto�, mas sim de lei. Em  2015 foi sancionado o Estatuto da Pessoa com Deficiência. Diferente  do Disability Discrimination Act britânico, a legislação  brasileira colocou peso na questão de acessibilidade e “desenho  universal�, tido como “concepção  de produtos, ambientes, programas e serviços a serem usados por  todas as pessoas, sem necessidade de adaptação ou de projeto  espec�fico,  incluindo os recursos de tecnologia assistiva�  (Lei n� 13.146). Ou seja, as necessidades de pessoas com  deficiências têm que ser incluídas desde a fase de concepção de  novos projetos.
  Ao  contrário do sistema de transporte londrino, as redes de transporte  no Brasil ainda estão em uma fase maleável. No Metropolitano de São  Paulo, pelo menos três linhas estão em fase de projeto. No Rio de  Janeiro, pós-Jogos Olímpicos, fala-se da expansão de trilhos at�  a Barra da Tijuca e o Recreio dos Bandeirantes. Essas, e outras, são  oportunidades para execução do novo estatuto e começar a moldar os  sistemas de transportes brasileiros de maneira inclusiva. Isso seria,  de fato, um passo em direção a uma sociedade igualitária.
 
 
 Raquel Velho � doutoranda em estudos sociais da ciência e da tecnologia pela University College London (Reino Unido) com bolsa pelo programa Ciência Sem Fronteiras (Capes) e mestre pela Imperial College London (Reino Unido). E-mail: raquel.velho.12@ucl.ac.uk 
 
  Referências
  Beckett,  A. E.; Campbell, T. "The social model of disability as an  oppositional device". Disability  & Society 30(2): 270-283,  2015.
  Bowker,  G. C.; Star, S. L. Sorting things  out: classification and its consequences.  Cambridge, Mass., The MIT Press, 2000.
  Hughes,  T. P. “The evolution of large technological systems�. In: Bijker,  W. E.; Hughes, T. P.; Pinch, T. J. (Eds.). The social construction of  technological systems: new directions in the sociology and history of  technology (pp.51-82).  Cambridge, Mass., The MIT Press, 1987.
  Pettitt,  J. “Wheelchair-bound Lib Dem peer barred from boarding near-empty  bus by father with a pram�. Evening  Standard, 29 de abril de 2015. Disponível em:  http://www.standard.co.uk/news/london/wheelchair-bound-lib-dem-peer-barred-from-boarding-near-empty-bus-by-father-with-a-pram-10212583.htm.
  Shakespeare,  T. "The social model of disability." The  disability studies reader 2:  197-204, 2006.
  UPIAS.  "Fundamental principles of disability." Reprinted in edited  form in Oliver, M., Understanding  disability: from theory to practice:  19-29, 1976.
 
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