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Todos  os dias, milhões de pessoas ao redor do mundo repetem, ao acordar, o  mesmo gesto: desligam o despertador do celular, ligam o wi-fi de  casa, acessam as redes sociais e conferem as notícias recentes,  escolhidas – literalmente – a dedo por aqueles que resolvemos  “seguir”, amigos, amigos da rede, personalidades, jornalistas,  formadores de opinião, colunistas, piadistas. Se o ritual não é  exatamente esse, não foge muito de um roteiro comum. O café da  manhã com as notícias do jornal, selecionadas no dia anterior pelo  editor-chefe da renomada publicação e que congregava o que era  “preciso saber” sobre o que aconteceu no mundo, vai sendo  substituído. A seleção, por um lado, é mais distribuída  (democrática?) e bebe das fontes mais diversas, confiáveis ou não.  Por outro, não obedece a uma ordenação visível, equilibrada ou,  aparentemente, lógica. É feita de acordo com o leitor, de acordo  com sua ficha no sistema ou com algo derivado disso, relacionado ao  perfil, gostos ou interesses das pessoas ou instituições a que está  conectado como amigo, seguidor ou qualquer que seja a palavra que a  rede social escolhe para designar a ligação entre perfis. 
  Essa,  porém, é somente a versão mais simples da situação, do novo  cenário que marca o nosso consumo de notícias, informação e  cultura, a relação mediada que estabelecemos com o mundo, com a  realidade, via meios de comunicação. Nessa relação, o jornalismo  está incluído, mas é apenas uma parte do conjunto de produções  informacionais que nos é entregue diariamente pelo mesmo canal, ou  por um conjunto de canais/redes sociais a partir dos quais somos  indicados a que vídeos ver, que música ouvir, que notícias e  opiniões consumir. Como uma televisão de programação fragmentada,  onde a fronteira entre ficção e realidade é borrada  freneticamente. 
   
  As  questões mais visíveis que se colocam aí – falaremos também de  outras, subterrâneas – dizem respeito a como se tornou emergente a  seleção do que nos é apresentado. Por emergente entende-se algo  que não obedece, a  priori,  um comando total centralizado, um indivíduo ou um conjunto  determinado de indivíduos que escolhe soberanamente o que vai estar  na capa e nas folhas internas do jornal. A escolha passa a se dar “de  baixo para cima”, derivada de uma interação, que varia de acordo  com cada usuário, entre os diversos pontos da rede. O “jornal”  que leio certamente será diferente do jornal que outros leem. Talvez  seja parecido com o de outros palmeirenses, da região de Campinas,  interessados em tecnologia e sociedade. Ainda assim, não idêntico. 
 A  própria ideia de jornal parece cada vez mais como algo do passado.  Os veículos, sejam os jornais e revistas físicos que comprávamos  na banca, sejam os grandes portais dos primeiros anos da internet, se  estilhaçam. Os recebemos aos pedaços, uma matéria, uma coluna, uma  charge. Continuam lá, como estrutura, ainda podemos navegar por  eles. No caso dos portais, foram tornados imensos, na busca  desesperada por cliques, em que tanto faz 100 cliques em 10 matérias  ou 10 cliques em 100 matérias. Mas consumimos os veículos  despedaçados, com o nome do jornal ou do site mais funcionando como  uma referência de confiabilidade e inclinação político-editorial  do que qualquer outra coisa. Uma marca, a se confiar muito, pouco ou  nada. 
 Veículos  de comunicação do mundo todo, e de todos os tamanhos, hoje dependem  das redes sociais para terem seus conteúdos acessados pelo grande  público. Quem está fora delas, ou não as alimenta com verbas  publicitárias dos mais variados tamanhos, dificilmente alcança uma  audiência relevante. Movimentos sociais, que nos últimos anos  apostaram quase todas as suas fichas na mobilização via redes  sociais mais famosas – afinal, todo mundo está lá – hoje estão  praticamente igualados a qualquer empreendimento comercial. O  Facebook, por exemplo, tem uma política ativa de eliminação de  perfis que não sejam de pessoas físicas. O objetivo é fazer a  separação em dois tipos de usuários/postadores de coisas: as  pessoas físicas, cuja relação é dada com outras pessoas que veem  seus posts mutuamente; e as pessoas jurídicas (vale qualquer uma  delas, empresas, movimentos, artistas, intelectuais), que pagam para  terem seu conteúdo distribuído maciçamente – quanto mais  dinheiro, mais distribuição – ou ficam restritos à comunicação  com uma meia dúzia de assinantes, apenas uma fração das pessoas  que manifestaram ativamente quererem acompanhar os conteúdos daquela  fonte. 
 
No  entanto, o mais relevante, e politicamente mais importante, é o que  não sabemos sobre o modo como se dá essa distribuição de  conteúdos. Os critérios subterrâneos, como dito anteriormente.  Continuemos a usar o Facebook como exemplo, embora isso valha para  qualquer sistema de recebimento de conteúdo via feed (linha do tempo, no caso do Facebook) governado por algoritmos. A  interação entre as pessoas é intermediada por uma fórmula fechada  (secreta) que estabelece critérios sobre de que “amigos”  receberemos conteúdos, de quais tipos e com que frequência. Isso  significa que o usuário não estabelece uma relação direta com  quem segue, que não há garantias de que o que posta em seu perfil  será entregue a todos os seus seguidores. Isso dependerá de razões  que não conhecemos, que a princípio se relacionam com as  micro-redes estabelecidas (os subconjuntos de amigos que conversam  entre si), mas que são bem mais complexas do que isso e mudam ao  sabor dos interesses do dono da estrutura. 
 A  manipulação invisível 
 Em  meados do ano passado, usuários e instituições que se preocupam  com o gerenciamento da internet foram surpreendidos com a notícia de  que o Facebook alterou o feed de aproximadamente 700 mil usuários para se estudar o que se chama  de “contágio emocional”. Lê-se no artigo publicado sobre o  estudo: “Estados emocionais podem ser transferidos a outros via  contágio emocional, levando as pessoas a experimentarem as mesmas  emoções sem sabê-lo. O contágio emocional é um fenômeno bem  estabelecido em experimentos de laboratório, com as pessoas  transferindo emoções positivas e negativas umas às outras”. O  experimento ocorreu durante uma semana, em 2012, comprovando a tese  sobre o contágio. Realizado pelas Universidades de Cornell e da  Califórnia, nos Estados Unidos, a manipulação dos feeds desses usuários contou, como não poderia deixar de ser, com o apoio  do Facebook, interessado nos resultados. Mais, ele não teria  ocorrido a pedido dos pesquisadores, mas após o Facebook realizar a  manipulação. Os cientistas apenas trabalharam com os dados  fornecidos pela empresa. As informações são de matéria da The  Atlantic,  uma das primeiras a divulgar o estudo. 
 Embora  tenha sido criticado por sua falta de ética, o estudo não fez nada  ilegal, já que os termos de uso aceitos pelos usuários do Facebook  permitem esse tipo de manipulação. 
 
Além  de questões óbvias envolvendo a manipulação dos usuários de  redes sociais para esse tipo de experimentação, o caso traz  preocupações políticas bastante claras. Segundo Susan Fiske  (editora da revista que publicou o artigo, o Facebook manipula o feed de notícias de seus usuários o tempo todo. Ela teria sido informada  disso pelos autores do estudo, após questioná-los sobre a ética do  experimento. Isso significa que esse tipo de manipulação não é  eventual e provavelmente continua sendo feita. O sentimento de humor  estragado após aquela entrada matinal no Facebook pode não ser um  acaso, uma ilusão emocional ou reflexo de que é preciso refazer sua  lista de amigos. Pode estar ligado ou a algum teste, como no passado,  ou a algum objetivo consciente, ainda que não público. 
 Para  além do caso relatado, podemos imaginar um tipo de manipulação  emocional mais focalizada, com impactos possivelmente maiores e  consequências práticas complicadas. Os usuários das redes sociais  estão ali para interagirem e obterem informações, seja dos amigos  ou do mundo. O que capturam a partir dali, as informações que  obtêm, influenciam inegavelmente em suas ações no dia a dia. O  factual ainda pode ser refutado ou checado. As emoções, não. De  modo diverso, elas também impactam as ações concretas, porém são  menos verificáveis. Por mais que isso pareça um cenário de ficção  científica é preciso pensar: e se for possível alterar o clima de  confiança de uma região inteira?; que impactos políticos e  econômicos isso teria? 
 Dos  mecanismos de busca aos feeds obscuros 
 A  questão é que, nos últimos anos, o perfil de uso da web mudou.  Passamos de um modelo em que tínhamos os motores de busca como  centrais para outro em que somos governados/administrados pelos feeds que recebemos. Nossa atenção é constantemente chamada, procuramos  muito menos pelos conteúdos. 
 O  impacto disso seria muito menor e muito mais relativo se esses  algoritmos fossem públicos e mais administráveis por quem os usa.  Mas, muito pelo contrário, são secretos, têm propriedade  intelectual e caminhamos para uma internet muito mais centralizada,  comandada por poucas empresas de tecnologia, ainda que espalhada por  diversos servidores ao redor do globo, que agregam todos os serviços  que usamos: redes sociais, e-mail, plataformas de publicação de  textos e vídeos. 
 Desde  meados da década de 1950, após o grande trauma da Segunda Guerra  Mundial, confiamos na comunicação como meio para a paz e  estabilidade. Nossa utopia orientadora, de raiz iluminista, nascida  no meio do século passado, mas vigorosa no século XXI, diz que é  possível resolver quase todas as nossas diferenças pela via da  comunicação, pequenas ou grandes. Guerras seriam evitadas se os  povos tivessem maior entendimento mútuo. Conflitos de classes  poderiam ser resolvidos pela negociação e pelo entendimento. A  comunicação científica poderia melhorar as relações entre  ciência e sociedade, pavimentando um futuro de progresso científico  para todos. 
 A  internet, surgida pelas mãos e ideias de pesquisadores que foram  fundamentais na construção dessa utopia, encaixou-se como uma luva.  Para a luta pela democratização da comunicação ela apareceu como  fórmula mágica, como saída não conflitiva para a concentração  dos meios. Não seria mais preciso brigar por uma divisão justa do  espectro eletromagnético (aquele em que se distribui desde os canais  de televisão, de rádio, aos sinais de celular), a internet  multiplicaria exponencialmente os canais, cada pessoa, grupo ou  coletivo poderia ser um canal. Mas pouca gente se atentou que esses  cabos, domínios, IPs, servidores, têm dono, são privados. E quem é  dono manda. Com as redes sociais esse cenário parece ter se  agravado, as pessoas estão concentradas em “jardins murados”, em  ambientes restritos da web que se parecem com condomínios privados.  Por um lado, aqueles que não têm voz nos canais tradicionais  motivam-se a disputar espaço e a falarem para muita gente ali  reunida. Por outro, vivem as limitações materiais e de software de  um espaço que não controlam. 
 É  preciso politizar a internet e entender seu uso e funcionamento  material na atualidade. Ao mesmo tempo, é preciso recuperar e  analisar criticamente as utopias da comunicação que nos informam.  Assim, poderemos entender as mudanças pelas quais passam o sistema  informativo do mundo, podendo agir conscientemente sobre ele em  direção a estruturas democráticas de comunicação. A ação e a  cultura política não são decorrências mecanicamente determinadas  por essas estruturas, mas podem tender para cenários desagregadores,  autoritários e contrários aos direitos humanos se assim forem  manipuladas. 
 Rafael  Evangelista é doutor em antropologia social e professor do Mestrado  em Divulgação Científica e Cultural do IEL-Unicamp. 
 Bibliografia 
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 Kanashiro,  M. ; Bruno, F. ;Evangelista, R. ; Firmino, R . “Maquinaria da  privacidade”. Rua (Unicamp) , v. 2, p. online, 2013.  (http://www.labeurb.unicamp.br/rua/pages/home/capaArtigo.rua?id=211) 
 Breton,  P. (1995) Norbert  Wiener e a emergência de uma nova utopia.  Disponível em http://cibercultura.fortunecity.ws/vol1/breton.html  Acesso em 20/08/2011 
 Barbrook,  R. Futuros  imaginários: das máquinas pensantes à aldeia global.  Ed. Peirópolis, 2009 
 Pequeno,  V. “Nos subsolos de uma rede - sobre o político no âmago do  técnico”. Dissertação de mestrado. MDCC-IEL-Unicamp. 2015. 
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