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 Será o golpismo um traço constitutivo da cultura  política no Brasil? 
  Se olharmos com atenção para a história republicana  do país, a resposta pende mais para o sim do que para o não. 
   De fato, desde o seu  nascimento, a nossa república é marcada por esse traço de distinção que envolve  sempre o protagonismo militar associado ao desempenho ambíguo de parte da  sociedade civil representada, especialmente, nos políticos, às vezes na  imprensa e quase sempre em segmentos importantes do empresariado e, mais  recentemente, em organizações sindicais e/ou movimentos sociais de centro, de  direita ou de esquerda, ou de nenhuma e de todas essas posições que se perfilam  ou se associam a partidos políticos nos embates cotidianos das lutas pelo  poder. 
   A República nasce em 1889 de um golpe e de uma  mentira para sustentar o golpe. Como escreve Paulo Markun: 
 “Nascida de uma  precária aliança entre o minoritário Partido Republicano e dirigentes do Clube  Militar, a República tivera um parto sem povo e sem sangue e podia muito bem  ser entendida como um golpe militar. O primeiro de uma série. A figura que a  encarnou, Manuel Deodoro da Fonseca, um marechal em fim de carreira, resistiu  até a última hora  ̶  era amigo pessoal do imperador e só admitia  um novo regime depois da morte de D. Pedro II. Foi convencido a liderar o  movimento por uma mentira  ̶  a de que o Exército teria sido dissolvido  naquele dia.” 
 Deodoro não aguenta as  pressões e entrega o cargo, ao vice, Floriano Peixoto, em 23 de novembro de  1891, que, por sua vez, não convoca a eleição que a Constituição mandava  convocar, estica sua permanência até 1894 e não vai à posse de Prudente de  Morais, seu sucessor.   
 Feitas as contas, em  pouco mais de oitenta anos, a República conhece e vive a experiência de seis  golpes e contragolpes, segundo a contabilidade de Markun, que inclui: 1930, com  a deposição de Washington Luís, o impedimento da posse de Júlio Prestes e a  assunção da presidência do governo provisório por Getúlio Vargas; 1937, com a  instauração do Estado Novo, tendo novamente Getúlio Vargas como protagonista;  1955, quando o marechal Henrique Teixeira Lott barrou o golpe da União  Democrática Nacional (UDN) com o golpe da deposição do presidente da Câmara,  Carlos Luz, a quem Café Filho, que sucedera Vargas como vice-presidente,  entregara, por doença, a Presidência da República, dentro do enredo que  impediria a posse de Juscelino Kubitschek de Oliveira e de seu vice, João Goulart,  na Presidência da República; 1961, com a renúncia de Jânio Quadros e a  tentativa de impedir a posse do, mais uma vez, vice, João Goulart, com a  negociação política que, em decorrência, instalaria, no país, o  parlamentarismo, tendo Tancredo Neves, como primeiro ministro até 1963, quando um  plebiscito faria o país retornar ao presidencialismo e os plenos poderes  executivos do governo ao presidente João Goulart; 1964 e 1968, formam em dois  movimentos, a sequência de um golpe dentro do outro: o primeiro, que derruba  Jango e instala a ditadura em nome da defesa da democracia contra o comunismo e  pretende devolver o poder aos civis logo no ano seguinte, e o segundo, que fortalece a permanência dos  militares no poder com a promulgação do Ato Institucional nº 5 (AI 5) em nome  de sua própria permanência, com o recrudescimento da repressão e o  enfraquecimento da institucionalidade democrática da nação e dos direitos  fundamentais de sua população à liberdade. 
   O que era para durar  pouco como transição benfazeja para o estado de graça da democracia plena durou  mais de vinte anos, sempre em nome de uma liberdade que o obscurantismo  autoritário do regime se encarregou de negacear aos cidadãos do país. 
   Se não há bem que longo  dure, não há mal que o tempo não cure, como diz o poema. Ao menos, é o que nos move, em nossa otimista  esperança, a crença na democracia e no rol de liberdades que a acompanha. 
 A atuação da sociedade  civil foi surtindo efeito e os indícios de enfraquecimento do regime militar  foram aparecendo, entre eles o da Lei da Anistia, em 1979, e o Movimento das  Diretas Já, em 1983-1984. 
 A eleição que trouxe  novamente um civil à Presidência da República, Tancredo Neves, não foi ainda  direta, mas consagrou a vitória da institucionalidade democrática sobre a  excepcionalidade dos governos militares. 
 Por fatalidade,  Tancredo não viria a tomar posse, vitimado que foi pela doença que o abateu e  abateu também a euforia da população brasileira, que, se não pudera votar  ainda, depositara nele seu entusiasmo e sua alegria pelos novos tempos que se  anunciavam na vida política nacional. 
 Mais uma vez o vice  tomou posse! 
 De lá para cá, as  eleições se sucederam, com um impeachment pelo caminho  ̶ o do presidente Fernando Collor  ̶ ,  e  o país, passando por transformações necessárias,  pareceu vir consolidando as bases  institucionais que alicerçam o edifício de sua democracia. 
 Há, contudo,  recentemente, uma situação crítica que tem dado indícios de aprofundamento e  tem gerado um sentimento, muitas vezes difuso e confuso, de insatisfação  crescente da população com o governo e com os poderes constituídos, a ponto de  generalizar-se, nas redes sociais e nos encontros públicos, com tratamento  muitas vezes desrespeitoso e vulgar da presidente e da própria instituição da Presidência  da República. 
   O tema do impeachment  tem voltado à baila como recurso para resolver os problemas que, neste momento  enfrentamos e que, por serem grandes e de consequências graves, constituem  ingredientes ativos da crise política, econômica e moral que o país atravessa,  ou que atravessa o Brasil. 
 Neste cenário, não  faltam vozes que chamam pela volta dos militares e por soluções de intervenções  heterodoxas. 
 Neste caso, é preciso  ter cautela e ser cuidadoso com a mistura dos ingredientes que cozinham a  feitiçaria no caldeirão das insatisfações. 
 No final de 1963, como  relata em seu livro Paulo Markun, o general Carlos Luís Guedes, comandante da  Infantaria Divisionária da IV Região Militar, em Minas Gerais, reuniu-se com um  grupo de empresários para discutir a situação política de então e desfiar suas  queixas contra o governo de João Goulart. O general ouviu e se pronunciou: 
 Os senhores são  homens de inteligência, de prestígio, de dinheiro: tomem a rua de Jango! Se  preciso, gastem do próprio bolso, já que eles o fazem tirando recursos do povo  através dos órgãos de governo; mobilizem a opinião pública, que sabemos  insatisfeita e apreensiva, mas abúlica. Quando o povo estiver nas ruas  manifestando sua discordância, nós, como parte do povo, portando armas, nada  mais faremos que usá-las para aquilo que fomos criados  ̶ a segurança interna, a defesa dos  princípios constitucionais  ̶  e mais uma vez, como mostra a nossa história,  afinados com a vontade popular, agindo de acordo com os seus interesses.  Entretanto, esta é a indispensável condição: tomem as ruas de Jango. Do  contrário, permaneceremos impassíveis, de braços cruzados. 
      
  Os tempos e as  circunstâncias históricas são outras, mas não deixa de ser importante estar  atento e prestar ouvidos, além das vozes das ruas, às estrelas de nosso céu de  anil. 
  Recentemente, no dia 10  deste mês de março, o general Clovis Purper Bandeira, editor de Opinião do  Clube Militar publicou, no site da  entidade, um artigo intitulado “Dilma e o panelaço”. Nele, há considerações e  comentários do autor sobre a conjuntura difícil do momento, com foco nas  manifestações programadas para os dias 13, a primeira, teoricamente a favor de  Dilma, e 15, a segunda, contra ela, inclusive com grupos, que carregam  ostensivamente a bandeira do impeachment, e alguns outros que propugnam a  intervenção militar, embora a grande maioria dos cerca de 2 milhões presentes à  manifestação estivessem, como mostraram as pesquisas posteriores, mobilizados  sobretudo pelo repúdio à corrupção e a seus agentes e pacientes no país.  Felizmente, as manifestações do dia 13 e do dia 15 – esta muito maior do que a  outra – foram pacíficas e sem nenhum registro de incidente mais grave. 
   De qualquer modo, vale  pena atentar para o que conclui o artigo do general Bandeira:  
 Os  ânimos estão se exaltando. 
  As  redes sociais convocam os pelegos do governo   ̶  centrais sindicais, petistas e  partidos de extrema esquerda  ̶  para manifestação “em defesa da Petrobras” no  próximo dia 13 de março. Ora, para defender a Petrobras, a primeira e mais importante  medida é que eles tirem suas mãos sujas da empresa e parem de roubá-la como vêm  fazendo.
  No dia  15, será a vez da passeata convocada por entidades liberais e democratas, que  pretendem manifestar sua decepção com o governo e dar força à ideia do impedimento  da presidente, por seu envolvimento mais que provável nos escândalos de  corrupção da Petrobras, por ação ou por omissão. 
  Há  temores de que black blocs e camisas  vermelhas da tropa de choque petista tentem tumultuar a manifestação para  afastar o povo da rua por meio da violência, como conseguiram no ano passado.  Ou, como já ameaçou o semideus pernambucano, o “exército de Stédile” apareça em  cena para agredir quem pensa de maneira diferente de seus cânones. 
  Caso se  inicie a violência, ninguém mais tem razão e as ideias perdem importância. No  entanto, não há dúvida de que quem for agredido tem o direito de se defender. 
 Como se vê, todos  estamos preocupados com a crise e nunca é demais exigirmos, de nós mesmos e de  nossas preocupações, que a busca urgente para a solução de nossos problemas  mantenha firme o curso da nau da nação no sentido do aprimoramento de nossa  democracia e dos desfechos institucionais que ela apresenta. 
 
 
  
      MARKUN, Paulo. Na lei ou na marra 1964 - 1968. In:  ______. Brado retumbante. São  Paulo: Ed. Benvira, 2014. v. 1. p.18.  
   
  
      MARKUN, Paulo: op. cit. p.110-111. 
   
 
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