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                            09/03/2015
                            
 Lançado originalmente  em 1981, A falsa medida do homem (The mismeasure of man),  do paleontólogo, biólogo evolutivo e ensaísta americano Stephen J.  Gould, rapidamente tornou-se um best seller, vendendo mais de  125 mil cópias da primeira edição. Em 1996, em plena polêmica  provocada a respeito das medidas de inteligência, com o lançamento,  dois anos antes, de A curva do sino (The bell curve),  de Richard J. Hernstein, psicólogo, e Charles Murray, cientista  político, ambos também americanos, veio uma segunda edição do  livro de Gould, na qual um subtítulo foi apensado: “a refutação  definitiva ao argumento de A curva do sino, revista e  ampliada, com uma nova introdução”. Esta resenha baseia-se nessa  segunda edição.
 Gould procura  demonstrar os erros fundamentais da investigação científica da  inteligência humana escorada no quociente de inteligência (QI). Em  suas palavras: “(O livro lida com) o argumento de que a  inteligência possa ser abstraída, e ainda fazer sentido, como um  único número capaz de classificar todas as pessoas em uma escala  linear de valor mental intrínseco e inalterável”. O título da  obra de Gould é uma alusão à máxima do antigo pensador grego,  Protágoras: “o homem é a medida de todas as coisas”, e uma  crítica ao pensamento cientificista que o retomou, na qual “o  homem” tem um significado eminentemente de “homem, indivíduo do  sexo masculino, europeu”.
 A obsessão por medidas  científicas de um fenômeno complexo e multifacetado como a  inteligência humana e sua redução a um único valor usado para  comparações e classificações encontra um eco não apenas  metafórico no tema em discussão desta edição da ComCiência,  as medidas de produção científica e seus índices numéricos,  inclusive no quesito androcêntrico dessa visão metrológica: não  faltam críticas apontando que tais índices de produtividade não  levam em conta as condições desiguais de produção, nas quais as  mulheres são francamente prejudicadas – a dupla jornada, o efeito  Matilda, os preconceitos e discriminações, entre outros fatores.
 O estilo gouldiano –  citações literárias, uso de arcaísmos e termos rebuscados e pouco  usados, emprego intensivo e extensivo de aspas, ironia mordaz,  referências ao beisebol – está marcantemente presente e dá as  cores características de sua prosa. O detalhismo chega a ser  cansativo e repetitivo, mas, por outro lado, confere profundidade,  permitindo ao leitor um mergulho na perspectiva histórica do tema.  Gould, na verdade, atém-se basicamente ao passado da craniometria e  da psicometria do século XVIII ao início do XX: de argumentos  pré-evolucionistas sobre a diferença entre as raças (incluindo  características intelectuais e já moldados em uma escala  natural/divina de perfeição), passando pela inserção dentro de um  arcabouço de justificativa evolutiva (os negros representariam uma  etapa inferior da evolução humana – com o homem branco europeu do  norte em seu ápice) e a “matematização”, com o desenvolvimento  das técnicas estatísticas, e a posterior reificação de entidades  matemáticas abstratas (como o fator “g”, de Spearman), que, de  algum modo, mediriam a inteligência em pretensas características  (partes ou modos de funcionamento) cerebrais. Na visão do  paleontólogo, o desenvolvimento posterior dessas áreas, no que se  refere à defesa da tese de que há diferenças inatas imutáveis na  cognição entre as diferentes raças, não trouxe nenhum argumento  novo desde então.
 Sua intenção em A  falsa medida do homem era combater os fundamentos filosóficos,  mais do que os dados científicos, ainda que ele tenha procurado  refutar alguns casos de erros e fraudes. Isso valeu à época uma resenha  bastante forte por parte do polêmico psicólogo britânico  naturalizado canadense, John Philippe Rushton (1943-2012). Para o  psicólogo, Gould comete nada menos do que assassinato de reputação  (character assassination) contra vários pesquisadores há  muito falecidos, entre os quais, Samuel George Morton (1799-1851),  médico e naturalista americano.
 Analisando os dados  craniométricos de Morton, Gould concluiu que houve uma  tendenciosidade inconsciente para provar que os caucasianos possuíam  um maior volume cerebral – ele toma o cuidado de dizer que não  detectou nenhum indício de fraude, imputando as inconsistências a  um erro honesto. Contra as acusações de Gould, Rushton cita  trabalho de John  S. Michael de 1988, que reanalisou os dados originais (Gould  valeu-se apenas das tabelas publicadas) e concluiu que Morton cometeu  apenas pequenos erros, não comprometendo sua conclusão geral. O  trabalho de Michael, porém, foi considerado por muitos como eivado  de erros (não fornecer comparação entre as novas medidas  individuais e as obtidas anteriormente; restringir a análise aos  dados correspondentes a uma única das várias tabelas fornecidas por  Morton, ausência de indicação da população à qual pertencem os  crânios reavaliados). Uma investigação mais recente a respeito dos  dados de Morton, feita por Jason  E. Lewis e colaboradores (2011), também concluiu que não há  problemas no trabalho do médico naturalista. Mas Jonathan  M. Kaplan e colegas. (2015) concluíram que a análise de Lewis e  colaboradores está errada! E Michael  Weisberg, em 2014, também conclui que as críticas de Gould são  procedentes. Aparentemente a contenda Gould x Morton estabeleceu uma  subárea própria dentro da psicometria e da história das ciências.  De todo modo, estando certo ou não, a própria existência e  persistência dessa discussão indica que Gould tinha motivos, ainda  em 1996, para desconfiar dos dados (não da pessoa) de Morton.
 Em sua resenha à obra  de Gould, portanto, Rushton parece demasiadamente incisivo em  considerar essa desconfiança como um ato de assassinato de  reputação. Mas talvez Rushton tenha razão em sua crítica à  decisão de Gould de essencialmente desconsiderar a literatura  produzida entre os 15 anos que separam a primeira da segunda edição  de seu livro – ainda que os termos do psicólogo não sejam nada  gentis: “desonestidade acadêmica”. Na segunda edição,  Gould ainda mantém um forte ceticismo a respeito da correlação  entre inteligência e tamanho cerebral. Na crítica a Gould, Rushton  cita estudos com ressonância magnética que mostram a ligação  entre volume do cérebro e QI. Deve-se ter em mente, porém, que isso  não chega a ser central na argumentação geral de Gould. Por um  lado, um de seus questionamentos era exatamente se o QI mediria mesmo  a inteligência. De outro, para ele, o problema é a caracterização  da inteligência como um pacote “descritível como um único  número, capaz de classificar pessoas em uma ordem linear, com base  genética e efetivamente imutável”. Na visão de Gould, mesmo que  a craniometria (e sua correspondente moderna de medição do volume  cerebral por meio de ressonância magnética) e a psicometria  (essencialmente os testes de QI) sejam eficazes em medir algo que  chamamos de inteligência e que a inteligência seja algo herdável,  isso não significa que seja algo imutável. Assim como a  inteligência, ele exemplifica, mesmo a miopia sendo uma  característica herdável, podemos efetivamente fazer algo para  eliminar seus efeitos: usar lentes corretivas. No caso da  inteligência, ainda que possua componentes genéticos (como estudos  recentes tendem a confirmar; a exemplo do trabalho da equipe  de Gail Davies, de 2011), ela pode ser cultivada e melhorada por  conta de fatores ambientais: boa  alimentação na infância e acesso a uma boa educação. Gould se voltava  justamente contra a conclusão de que, sendo hereditária e imutável,  a medição do QI (ou do tamanho craniano) indicava o destino  certeiro das potencialidades dos indivíduos. Nesse sentido, sua  decisão de não se ater excessivamente a questões factuais de  natureza científica – se a inteligência é ou não herdável, se  ela pode ou não ser medida por um único índice, o que significa o  fator “g” de Spearman – parece justificada. Ao deter-se mais a  respeito da ideologia por trás dos fundadores da visão  biodeterminista da inteligência e de como ela molda os argumentos  pretensamente objetivos, o cerne de obra se mantém de pé mesmo  hoje, 34 anos após a primeira edição (19 anos após a segunda). Guido  Barbujani, em um artigo de 2013, sobre o trigésimo aniversário  de A falsa medida do homem, reconhece a contribuição de  Gould (e outros como Richard Lewontin, biólogo evolutivo, e Frank B.  Livingstone, bioantropólogo, ambos americanos) em questionar a  utilidade de “raça” como um conceito aplicável à espécie  humana – quando a diversidade dentro de cada grupo (“raça”)  tende a ser maior do que a diversidade entre os grupos. A declaração do  nobelista americano James Watson ao jornal inglês The Times,  em 2007,  de que os negros são inerentemente menos inteligentes, e a exibição,  em 2009,  de documentário no canal inglês Channel 4 com cientistas ecoando  Watson também nos convidam a revisitar a obra clássica de Gould,  ainda que alguns detalhes factuais possam não ter resistido ao teste  do tempo.
 No que toca ao tema  desta edição da ComCiência, o livro de Gould leva-nos a  questionar vários aspectos das avaliações da produção  científica: se ela pode ser avaliada por valores numéricos em  escala linear, o que significam realmente os diversos índices  propostos, os perigos de nossas preconcepções várias afetarem  nosso olhar sobre as diferenças detectadas.
  
 A falsa medida do homem – 3ª edição Autor: Stephen J.  Gould WMF Martins Fontes Ano: 2014 384 páginas 
 
 
 The mismeasure of man –  2ª edição Autor: Stephen J. Gould W.W. Norton & Company Ano: 1996 448 páginas 
 
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