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                            10/05/2015
                            
 Como  nasceu o núcleo de pesquisas Gema?
 O  grupo foi fundado em 1998 como parte de um projeto social que  Benedito Medrado e eu desenvolvíamos na época na UFPE como parte  das atividades do Instituto Papai, que naquele momento ainda era  apenas um projeto nomeado como Programa de Apoio ao Pai. Esse projeto  também resultou na constituição de uma organização não  governamental, o Instituto Papai. O objetivo tanto do grupo quanto da  ONG era o desenvolvimento de pesquisas e outras intervenções  políticas sobre homens e masculinidade a partir da perspectiva  feminista de gênero, com inspiração nos núcleos de estudos sobre  mulher da década de 1980. Posteriormente, quando nos tornamos  docentes da UFPE, o grupo de pesquisa – que já havia sido  registrado no CNPq desde 1998 –, foi consolidado dentro do  Departamento de Psicologia, abordando questões sobre paternidade,  violência contra a mulher, diversidade sexual e políticas públicas  problematizando os homens no campo da saúde. 
 De  maneira geral, há uma produção de conhecimento expressiva sobre o  tema da paternidade? 
 A  sensação que eu tenho é que ainda falta muito. Nossa percepção é  de que a paternidade não é um tema de pesquisa contínuo. Através  da revisão da literatura e de análises dos currículos Lattes  dos/as pesquisadores/as, notamos, por exemplo, que alguém que fez o  mestrado sobre paternidade não necessariamente deu continuidade à  pesquisa no doutorado. Ou se fez o doutorado, quando ingressa como  docente na universidade, passa a trabalhar com outros temas. A  implicação disso é que a produção do conhecimento tem quebras o  tempo todo. Temos dificuldades de um estudo que desenvolva análises  de continuidade, por exemplo, com uma coorte (um grupo) de  homens/pais, ou algo do tipo. 
 Quais  dificuldades para a pesquisa que isso acarreta? 
 Por  exemplo, uma coisa que adoraríamos fazer, analisando a questão do  pai adolescente, é discutir a fecundidade masculina. Não há  estudos sistemáticos sobre isso, de larga escala. Então, isso gera  uma dificuldade em responder perguntas básicas: se os homens têm  filhos; se querem ter filhos ou não; se não querem, como evitam. Em  larga escala, não é possível conseguir esse tipo de informação.  São informações relacionadas à fecundidade, que, por sua vez, se  conectam a outros campos de pesquisa, como a saúde. Mas nos estudos  sobre saúde do homem, discute-se muito mais (im)potência sexual do  que fertilidade. Sobre outra questão, a licença paternidade, não  temos um banco de dados para cruzar informações como homens que são  pais, homens que são pais e trabalham e pais trabalhadores que  recorrem ao pedido da licença paternidade. 
 Como  conseguir essas informações? 
 Quando  se pensa em larga escala, depende muito da vontade do pesquisador ou  dos recursos disponíveis para a pesquisa. Mas há outra questão,  que acredito ser um reflexo desse campo de pesquisa, que é o  pressuposto de que nós homens não somos sujeitos confiáveis para  responder sobre nossa vida reprodutiva. Isso está no plano cultural,  mesmo que na prática existam homens que queiram participar dos  cuidados dos filhos, que queiram adotar ou sejam pais solteiros, ou  mesmo educadores de crianças pequenas em espaços de educação  pública como as creches e pré-escolas. Então, quando fazemos a  revisão da literatura, encontramos pesquisas com pequenas parcelas  da população, de dois ou três pais, justificando que é difícil  falar com os homens sobre esse assunto. 
 E  isso é verdade? O homem não quer falar sobre sua vida reprodutiva? 
 Não  é verdade, mas é óbvio que o acesso a eles não é fácil.  Acabamos de realizar uma pesquisa conjunta entre o Gema e o Instituto  Papai com uma amostra quantitativa de 400 homens, seguindo o modelo  metodológico do Censo do IBGE. Não foi fácil. Eles não estão  disponíveis para chegarmos e falarmos sobre esse assunto. Isso está  relacionado com todo o processo de constituição da paternidade e da  masculinidade em nossa sociedade. Por isso, a nossa chave analítica  para essas questões é a perspectiva feminista, pensando o conceito  de gênero como algo relacional. Ou seja, as concepções sobre o que  é ser homem e o que é ser mulher são culturais. Costumamos dizer  que o sexo está para o homem assim como a reprodução está para a  mulher. E o cuidado afetivo dos filhos compete à mulher e o cuidado  financeiro aos homens. Essas concepções, além de criar  polaridades, criam e mantêm desigualdades, pois estamos falando de  relações de poder. E isso, ao nosso ver, é um problema de  pesquisa, é um problema político a ser trabalhado. A partir do  olhar sobre as questões de gênero, nós vamos problematizar essas  concepções e dizer que a resistência em conversar sobre esses  temas, a ausência paterna ou a falta de participação dos pais nos  cuidados com os filhos não é natural. Não é algo da vontade  individual de cada homem. É um processo de construção no nível  individual, institucional e cultural/ideológico. Por exemplo, a  licença maternidade é de seis meses, enquanto a licença  paternidade é de cindo dias. Então, está se dizendo,  institucionalmente, a quem compete o cuidado dos filhos. A própria  ampliação da licença maternidade de quatro para seis meses foi  resultado de uma articulação política da Sociedade de Pediatria,  que estava preocupada com o aleitamento das crianças e não  necessariamente com as mães ou com a pouca ou nenhuma segurança dos  direitos previdenciários/trabalhistas das mulheres, em sua maioria  jovens, pobres e negras. Essas ideias e proposições não são  nossas, aprendemos isso com o diálogo com o movimento brasileiro de  mulheres e feministas. 
 Os  serviços públicos de saúde relativos a pré-natal, parto e  pós-parto colaboram para esse processo de construção da  paternidade? 
 Há  uma série de discussões, como o parto humanizado e a ideia de um  pré-natal masculino, que abrem espaço para o acolhimento do homem e  sua participação no processo de nascimento do filho. Mas isso é  algo em construção, ainda está lento. O que encontramos, de  maneira mais sistemática, é a dificuldade em haver um espaço para  o homem nos serviços de saúde relativos à gestação e ao parto. A  representação simbólica disso é algo muito simples: a existência  de apenas uma cadeira no consultório do obstetra. Além disso, há a  dificuldade do pai ter acesso ao momento do parto, apesar da Lei do  Acompanhante. Essa lei já existe há dez anos, mas ainda não há um  componente de punição, caso não seja cumprida. 
 Como  a pesquisa sobre paternidade influi nesse processo? 
 Nós  escrevemos um artigo buscando problematizar como a ciência constrói  a paternidade, a partir da revisão da literatura produzida sobre o  tema. E nós também fizemos o nosso processo de autocrítica e  reflexão. Também estamos reproduzindo paternidades à medida que  contribuímos para a construção de, no mínimo, um sujeito de  pesquisa, o pai adolescente. Mas nós fomos percebendo que não é  apenas um sujeito de pesquisa. A ciência fala pouco sobre a assunção  e o exercício da paternidade. As ações políticas são voltadas  para o controle da natalidade. Fala-se mais em como evitar filhos do  que como se cuida dos filhos. Dizemos que para ser um bom homem é  preciso assumir os filhos, mas há um contra discurso dizendo “não  tenha filhos”. Para os homens, ter um filho, é ocupar um lugar que  é atribuído à vida adulta, a ser responsável. Esses discursos, em  termos psicossociais, no plano da subjetividade, criam uma dupla  mensagem: tenha e não tenha filhos. E esses conflitos estão na  produção de conhecimento. A ciência não é neutra, não está  apenas pesquisando esses homens. Ela constrói sentidos. Durante os  anos 1980, há uma produção científica muito grande sobre a  ausência paterna e suas consequências: se o filho ia bem na escola,  se era violento. Essas pesquisas contribuíram para impregnar a ideia  de que a ausência do pai biológico implicaria em uma criança sem  figura paterna. Mas, sob o ponto de vista da teoria psicanalítica e  psicossocial, que utilizamos em nossas pesquisas, as figuras  femininas e masculinas de referência não estão necessariamente  coladas a um corpo dito feminino e um corpo dito masculino. Estou  falando sobre o campo de referências simbólicas, que envolvem quem  é importante na vida da criança e com quem ela vai aprendendo as  coisas. E isso não está colado a um corpo masculino do pai  biológico. Essas figuras podem ser um professor, tio, cantor ou  jogador de futebol, alguém que seja referência para essa criança. 
 Casais  homossexuais que têm filhos estão mudando a ideia que temos sobre  paternidade? 
 A  princípio, deveria ser a experiência que nos traria de antemão a  possibilidade de ruptura com todos esses discursos que estão  colocados, pois romperia com a ideia de obrigatoriedade de se ter  filhos. Na relação heterossexual, dentro da lógica do ciclo da  vida, o filho está posto em algum momento, seja de maneira casual ou  planejada. A ideia do casamento seguido dos filhos para completar a  noção de família nuclear ou "família tradicional", como  mais recentemente tem sido nomeado pelos religiosos fundamentalistas,  é uma noção impregnada em nosso imaginário, em nossa ideologia.  Na experiência homossexual, isso não está no script.  Quando um homem homossexual decide ser pai, é uma escolha, ou a  princípio deveria ser. Essa escolha levaria a mudanças na maneira  como os homens percebem a paternidade, como se relacionam com sua  vida produtiva. Mas, analisando pesquisas que vêm sendo realizadas,  noto que o modelo heterossexual ainda está presente na experiência  dos homens homossexuais, seja em casais tentando repetir o mesmo script ou na cobrança em terem filhos. Vivo há 22 anos com o Benedito e há  uma pergunta, a mesma que se faz principalmente para as mulheres, que  sempre ouvimos: quando vocês vão ter filhos? Essa expectativa das  pessoas relaciona-se com a ideia de que uma família completa é uma  família com filho. Passa pelas famílias heterossexuais como modelo  de referência. Benedito usa essa frase: você sai do armário e  entra em uma gaveta. Porque você, muitas vezes, é forçado a se  enquadrar de novo. Outra coisa que é muito inquietante para mim:  como vamos promover mudanças quando as pessoas se voltam para  modelos marcados pela heteronormatividade, que para serem alcançados  necessitam de recursos financeiros? Em Pernambuco, por exemplo, houve  repercussão na mídia sobre um casal de homens que tiveram dois  filhos a partir de inseminação artificial de seus espermas em  barrigas solidárias (as ditas barrigas de aluguel). Conseguiram  registrar os filhos no nome dos dois e um deles ainda conseguiu  licença paternidade de seis meses. Mas quando paro para analisar  essa situação, independentemente da história vivida por esses  homens, pois não os conheço pessoalmente, não tem como não ficar  pensando que são dois homens brancos, esclarecidos e com dinheiro.  Nós fazemos esse trabalho de desconstrução dessas experiências  para gerar perguntas, porque ainda não temos respostas. Fazer essas  críticas não significa dizer que esse casal não esteja fazendo  algo diferente. É um casal de homens que têm filhos, consegue  licença paternidade dentro do contexto da sociedade pernambucana,  que é extremamente tradicional. Mas a partir do nosso compromisso de  discussão crítica e política do campo das masculinidades e das  paternidades, estamos o tempo todo fazendo perguntas para as coisas  que estão acontecendo para poder ver se essas experiências estão  se permitindo ser diferentes e não apenas novas, pois nem sempre o  velho é ruim e o novo é bom. 
  
 
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