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                             Em  setembro de 2012, a revista francesa Charlie  Hebdo publicou sátiras em que o profeta e líder religioso do islamismo,  Maomé, aparece nu e em cenas pornográficas. A publicação ocorreu no contexto de  uma onda de levantes antiamericanos, desencadeada pela exibição do filme A inocência dos muçulmanos nos Estados  Unidos. Em protesto contra o filme, multidões de muçulmanos foram às ruas, o  que resultou em embaixadas fechadas, feridos em vários países e na morte do  embaixador do país norte-americano na Líbia, Chris Stevens. 
O  episódio acabou trazendo à tona um dos debates centrais da contemporaneidade: o  da liberdade de expressão. Afinal, num mundo em que, graças à tecnologia, o  acesso aos meios de comunicação e de publicação não é mais exclusivo de grupos  empresariais e em que a expressão dos pontos de vista dos distintos grupos que  integram a sociedade é um valor, onde fica o limite entre o direito de se dizer  o que se pensa e o respeito à cultura do outro? Quais os contornos da liberdade  de expressão no nosso mundo atual? 
Essa  é uma discussão que remete à história. Forjado em meio às revoluções burguesas  dos séculos XVII e XVIII, o conceito de liberdade de expressão, tal como  conhecemos hoje, foi a pedra fundamental ética e política daquelas revoluções. A  Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão elaborada durante a Revolução  Francesa – marco do pensamento liberal – atesta que a livre comunicação de  pensamentos e opiniões é um dos direitos mais preciosos do homem. Afinal, numa  sociedade em que as hierarquias estavam sendo destronadas, era preciso abrir  espaço para a voz do cidadão. Desse modo, o artigo XI da Declaração afirma: “Todo  cidadão pode falar livremente, sob condição de responder pelo abuso dessa  liberdade nos casos determinados pela lei”. 
No  século XIX, o filósofo e economista inglês Stuart Mill postulou, em reação ao  conservadorismo da sociedade vitoriana e em contraposição à “tirania da  maioria”, a defesa irrestrita da liberdade de expressão – entendida aqui como a  liberdade do indivíduo se manifestar e confrontar seus pontos de vista com os demais  integrantes da sociedade, alimentando, assim, livre fluxo de informações e  mensagens no espaço público. “Na Revolução Francesa, a liberdade de expressão  aparecia mais ligada à ideia de democracia, como manifestação de oposição ao  governo instituído”, explica Maria Cristina Castilho Costa, coordenadora do  Observatório em Comunicação, Liberdade de Expressão e Censura (Obcom) da  Universidade de São Paulo (USP). “A concepção liberalista, de Mill, remete ao  livre fluxo de informações e mensagens. Está ligada à liberdade de mercado”,  complementa. 
O direito à  livre expressão 
  Ao  longo do século XX, a liberdade de expressão se consolidou como um direito. A  Declaração Universal dos Direitos Humanos, proclamada em pleno pós-guerra, em  1948, postula, no artigo 19º, que “todo o indivíduo tem direito a liberdade de  opinião e de expressão, o que implica o direito de não ser inquietado pelas  suas opiniões e o de procurar, receber e difundir, sem consideração de  fronteiras, informações e ideias por qualquer meio de expressão”. É daí que vem  o conceito de direito à comunicação, assim como a valorização e o respeito à  diversidade e às minorias. 
“Livre  expressão, respeito à diferença, diversidade e direitos iguais são axiomas que  pertencem à mesma ordem de conceitos. A  pluralização nasce do múltiplo – as  diferenças dos indivíduos e dos grupos. São vários os grupos sociais que se  diferenciam na comunidade”, postula Maria das Graças Sousa, coordenadora  do Grupo de Estudos de Mídia (Gemini), da Universidade Federal do Rio Grande do  Norte (UFRN). 
É nesse sentido que os conceitos de liberdade de  expressão e liberdade de imprensa se aplicam à ordem mundial contemporânea,  analisa o jornalista e professor da Escola de Comunicação e Artes (ECA) da USP  Eugênio Bucci. Se  originalmente este era um valor típico do liberalismo, no século XX, ela passou  a ter a dimensão de um direito humano fundamental – independentemente de  classes, religiões ou nacionalidades. “É nesses termos que devemos pensar a  liberdade de imprensa hoje: ela é um direito fundamental”, sentencia. 
Para  ele, a liberdade de imprensa pode ser vista como sinônimo de liberdade de  expressão no sentido de que uma contém a outra. “A distinção é de ênfase, pois  quando se fala em liberdade de expressão, tenta-se destacar o direito que cada  um tem de se manifestar livremente, até numa conversa. A liberdade de imprensa  remete ao direito de imprimir sem autorização do Estado, uma ideia que vem de  John Milton, no século XVII. Mas uma não existe sem a outra”, explica. 
Há limites para a  liberdade? 
  Uma  questão se impõe, contudo: em sociedades plurais e múltiplas, como se propõem a  ser as contemporâneas, como definir a fronteira entre a liberdade de expressão e  o respeito ao outro? É justamente esse o debate suscitado pela polêmica em  torno das charges anti-islâmicas. O professor Murilo Ramos, da Faculdade de  Comunicação da Universidade de Brasília (UnB), postula que o limite da  liberdade de expressão é o ataque mentiroso à integridade do outro. “Sempre foi  assim. É preciso assegurar o direto à privacidade, o direito de uso da imagem”,  analisa. 
Essa  demarcação, no entanto, se torna mais “pantanosa” quando o assunto é religião e  moral – caso em que se enquadram as charges publicadas na revista satírica  francesa. Como se trata de uma questão que envolve fé, cultura, valores, o  debate precisa ser contextualizado. “É uma disputa que envolve uma série de  variáveis. Os limites são elásticos, pois o que é normal para uma cultura, não  é para outra”, diz Ramos. Desse modo, ele vê o bom senso como a saída para o  impasse. “Não se pode baixar uma lei nem regras gerais e, ao mesmo tempo, não  se pode demonizar o chargista”, conclui. 
A  legislação é, na opinião de Eugênio Bucci, a dimensão que demarca os limites da  liberdade expressão, já que, em sua concepção, a liberdade deve ser plena. “Se  não for plena, não pode ser chamada de liberdade. O limite é dado pela própria responsabilização  do autor”, defende. Em outras palavras, se um jornalista – ou um cidadão  qualquer – ofende ou calunia outra pessoa, ele deve responder por isso nos  termos da lei. “Mas a liberdade não será alterada. O abuso deve ser punido, mas a posteriori, sempre e somente a posteriori”. 
As  normas de convívio social são outra via pela qual se pode regular a livre  expressão do pensamento, defende a coordenadora do Gemini/UFRN. “A liberdade de  expressão, por si só, não garante a equidade e o equilíbrio social em uma  sociedade democrática”, afirma Sousa. Assim, de acordo com ela, são as regras  de convívio – que surgem em pactos sociais e depois são ratificadas por  representantes dos grupos sociais e transformadas em leis – que asseguram a  liberdade plena no contexto de uma democracia. Isso porque são elas que  promovem a equidade. 
Nessa  medida, avalia Sousa, não é possível defender liberdade de expressão para  comportamentos que diferem dos pactos sociais estabelecidos por determinadas  culturas. Então, na prática, não existe liberdade de expressão se não há  liberdade de comportamento. Contudo, no caso das charges sobre Maomé, a questão  é mais complexa, exigindo estudos mais aprofundados. “Vivemos, na  contemporaneidade, num mundo cada vez mais interligado, onde as culturas  interagem e se pluralizam. E as charges foram publicadas fora dos países  islâmicos”, pondera. 
Ao  mesmo tempo, é preciso colocar a discussão sob a ótica do preconceito, propõe a  coordenadora do Obcom/USP. “Para identificar se uma piada é preconceituosa,  basta trocar a categoria que está sendo alvo. Será que algum jornalista  ocidental faria uma charge sobre o Holocausto nos mesmos termos adotados no  caso das charges sobre Maomé?”, provoca Costa. 
O impacto da  tecnologia 
  Paralelamente à ascensão da valorização da diversidade, a internet impõe  uma série de desafios à liberdade de expressão. Se, por um lado, não existem  muitas dúvidas quanto a seu impacto no sentido de ampliar a liberdade de  expressão, por outro, a internet confunde papéis e lugares – tornando menos  tênue a distinção entre liberdade de expressão e liberdade de imprensa. “Um blog pode  ser considerado imprensa? Como estabelecer responsabilidades por um conteúdo  publicado?”, questiona Costa.  
Mais  do que um debate conceitual, defende a coordenadora do Obcom/USP, essa é uma  discussão que diz respeito a todo e qualquer cidadão, na medida em que a  internet está dando voz a quem nunca teve. “Há 40, 50 anos, o debate sobre  liberdade de expressão interessava aos profissionais de comunicação, a  artistas. Hoje, é diferente, interessa a todo mundo que está gostando e tendo  prazer em falar, em escrever, em se comunicar por meio da internet. As pessoas  não querem perder mais isso”. 
Ao  mesmo tempo, algum tipo de regulação se faz necessária, pois, assim como  ocorria no passado, continua não sendo aceitável caluniar, difamar ou expor a  privacidade de uma pessoa na internet. A diferença é que há muito mais atores  envolvidos e atuando num meio que facilita e favorece a expressão individual.  Por isso, de acordo com Costa, o debate sobre a liberdade de expressão na  atualidade ultrapassou a esfera política e passou a envolver a dimensão ética  para toda a sociedade. “Todo mundo quer saber até onde se pode ir. O que é  permitido? O que é válido? E muitas vezes, por falta de clareza, a decisão  acaba recaindo sobre o indivíduo. Com base no seu conhecimento e nos seus  valores o indivíduo acaba decidindo o que é adequado, o que pode ser feito,  publicado”, analisa a professora da USP. É nesse cenário que ganha força o  debate em torno da regulação da internet, entendida aqui não como uma ação  isolada de governo e, sim, como uma atuação do Estado, envolvendo, amplamente,  a sociedade civil. 
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