| 
                            
 O termo imunidade deriva da  palavra latina immunitas, que definia  a isenção ou dispensa das atividades civis e proteção contra a instauração de  processos legais que eram oferecidos ao senador romano durante o desempenho de  seu cargo público. Extrapolada para a área médica, imunidade representava a  proteção que o sistema imune exercia contra os processos infecciosos.  Imunologia é a disciplina que estuda os eventos moleculares e celulares da  resposta imune, associada ou não às infecções, e as doenças que podem ser  geradas em consequência dessa ativação imune (doenças imunomediadas). As  doenças autoimunes surgem em decorrência do desequilíbrio ou quebra da  tolerância imunológica, quando o sistema imune passa a responder contra as  células e moléculas que pertencem ao próprio indivíduo. A tolerância  imunológica pode ser quebrada em várias situações, como por exemplo, fatores genéticos,  vacinações, infecções, entre outros. 
A resposta imune pode,  grosseiramente, ser comparada a uma peça teatral: há os atores principais e  coadjuvantes e todo uma enormidade de participantes não visíveis de imediato  que, trabalhando de forma coordenada, fazem com que a apresentação seja um  sucesso. Entretanto, a falha de algum membro desse grupo pode comprometer, em  maior ou menor grau, o sucesso da peça. O elenco da resposta imune é  constituído por diversos tipos celulares (diferentes classes de linfócitos T e  B, macrófagos, entre outras) e uma enormidade de moléculas (citocinas,  quimiocinas, moléculas de adesão, entre outras) que atuam na resposta imune  protetora ou agressora. 
O termo "neuroimunologia" surge  na literatura médica a partir de 1980 e em sua definição mais ampla é a  disciplina que estuda mecanismos imunológicos e doenças cujo órgão deflagrador  ou alvo principal da agressão imune é o sistema nervoso. Porém, muitas vezes o  termo é utilizado num contexto mais restrito para representar o estudo das  doenças autoimunes do sistema nervoso (SN). 
Histórico 
  Em medicina, o conceito de imunidade  era conhecido pelos antigos chineses que indicavam a inalação de pós que eram  obtidos a partir de crostas de lesões cutâneas oriundas de pacientes que se  recuperavam da varíola. A primeira menção a essa imunidade como proteção a uma  infecção ("praga") é creditada a Thucydides no século V a.C. e o primeiro  exemplo claro dessa imunidade protetora foi fornecido por Edward Jenner em 1798  com a vacinação contra a varíola. 
Acreditava-se que o SN (central e  periférico) era um órgão privilegiado que estava protegido das agressões  imunológicas devido à existência de barreiras biológicas (barreiras  sangue-nervo e sangue-cérebro) e que era desprovido de células e moléculas  capazes de responder imunologicamente. Entretanto, essas crenças começaram a se  modificar no século XIX pelos achados patológicos que mostraram inflamação no  tecido nervoso em autópsias de pacientes falecidos em decorrência de doença  neurológica e com a ocorrência dos "acidentes neuroparalíticos" que eram  observados em pacientes que fizeram profilaxia (vacinação) contra a raiva pela  técnica de Pasteur, considerados como reações alérgicas contra algum componente  neural presente na vacina. 
As três mais conhecidas doenças  imunomediadas do SN tiveram suas caracterizações clínicas relatadas há muito  tempo. Cronologicamente, a miastenia gravis (MG), que se expressa por fraqueza  muscular flutuante, teve seu primeiro caso descrito em 1672; e a hipótese de  distúrbio imunológico surgiu com Nastuk, em 1959. A teoria imunológica,  pela qual o agente deflagrador da resposta imune era o receptor de acetilcolina  presente na membrana pós-sináptica da placa mioneural, foi firmada por Simpson  em 1960. 
A esclerose múltipla (EM) é a  doença imunomediada do SN mais divulgada e, por isso, talvez a mais conhecida  do público leigo. Na maioria dos casos, afeta jovens em episódios de  surto-remissão de disfunções do SN central (cérebro, tronco cerebral, medula  espinhal, cerebelo, nervo óptico). O primeiro caso clínico foi relatado por von  Frerichs, em 1849, que a nomeou "esclerose cerebral". Porém, a clássica  descrição de desmielinização em vários pontos do SN central é atribuída a  Charcot, que em 1865 a  chamou de "esclerose em placas". O mecanismo imunomediado foi primeiramente  suspeitado por Glanzmann em 1927. 
A terceira doença desse grupo é a  síndrome de Guillain-Barré (SGB), que é uma paralisia flácida aguda por  acometimento do SN periférico (raízes nervosas e nervos periféricos) e que na  maioria dos pacientes ocorre cerca de 2 semanas após infecção intestinal ou de  vias aéreas superiores. Os primeiros cinco pacientes foram descritos em 1859  por Landry. Em 1916, Guillain, Barré e Strhol descreveram dois pacientes com as  manifestações neurológicas e alertaram para as clássicas alterações do líquido  cefalorraquidiano. A suposição de que o mecanismo imune era a causa da doença  surge em 1969, com Asbury e colaboradores. 
Do passado recente ao presente 
  A expansão do conhecimento em "neuroimunologia"  foi e continua sento imensa e secundária aos avanços nas técnicas laboratoriais,  com melhora na detecção de anticorpos, culturas celulares, utilização das  técnicas de recombinação de ácidos nucleicos, bioquímica de proteínas, além da  criação de modelos experimentais diversos. Ante todos esses avanços, o que  aconteceu com as clássicas doenças acima descritas? 
Apesar da MG ter sido a primeira  e mais bem investigada doença autoimune do SN e com mecanismo imunológico  melhor esclarecido, seu tratamento continua centrado em drogas  imunossupressoras que estão presentes no arsenal médico há muitas décadas.  Entretanto, a descoberta da associação de anormalidades tímicas fez surgir a  timectomia como adjuvante terapêutico específico para essa doença. Certamente  os estudos sobre MG foram a base para as recentes descobertas de outras  canalopatias autoimunes. 
Sem sombra de dúvida, a EM foi  alvo de grandes descobertas, pois foram identificados vários possíveis  auto-anticorpos contra diferentes constituintes da bainha de mielina central. Dentro  do intricado jogo de moléculas inflamatórias e anti-inflamatórias, foram  identificados alvos terapêuticos que culminaram com o uso de interferon beta e  acetato de glatiramer como primeiras opções terapêuticas para essa doença e,  nos dias atuais, já há outras opções (fingolimod, anticorpos monoclonais). Como  benefício dessa ampla investigação em EM, outras doenças desmielinizantes do SN  central foram melhor definidas, como, por exemplo, a doença de Devic ou  neuromielite óptica. 
Em relação à SGB, não só as  variantes na apresentação clínica foram identificadas, mas também os diversos  constituintes da bainha de mielina periférica e uma enormidade de anticorpos.  Infelizmente, na maioria deles, não se conseguiu confirmar o papel  fisiopatogênico, porém, eles permitem entender o racional da terapêutica  inespecífica que é plasmaferese ou imunoglobulina humana intravenosa.  Diferentes doenças inflamatórias crônicas do nervo periférico receberam maior  atenção médica. 
Atualmente, temos observado a  descoberta e identificação em número crescente de diferentes anticorpos antineurais  associados ou não a tumores. Esses anticorpos reconhecem estruturas da  superfície da membrana (proteínas, receptores, canais iônicos) ou do interior  celular (proteínas do citoplasma ou núcleo) e que têm permitido o  reconhecimento e classificação de muitas doenças que até então eram  consideradas como degenerativas. Como exemplo, cita-se a revolução que ocorreu  com as encefalites límbicas, síndrome do homem rígido, entre outras. 
O futuro 
  Apesar das clássicas doenças  acima descritas serem conhecidas há vários séculos e terem apresentado  inegáveis avanços tanto em diagnóstico como em compreensão dos mecanismos  autoimunes, várias lacunas merecem atenção. Como exemplos, a necessidade de  terapêutica mais específica e possivelmente mais eficaz, a busca por marcadores biológicos que permitam diagnóstico precoce ou que permitam o seguimento  clínico, entre outros. 
As atenções têm se voltado para o  estudo das interações entre os sistemas imune, nervoso e endócrino. Apesar das primeiras  observações nesse campo terem surgido com a possível influência da função  gonadal sobre a celularidade do timo em 1898 e da descoberta, nas décadas de  1960 e 1970, de que as emoções podiam influenciar a saúde, o interesse  ressurgiu com os estudos recentes de que a reatividade imune pode ser  modificada por manipulações no sistema nervoso autonômico ou no eixo hipotálamo-hipofisário.  No futuro, deverão ser esclarecidos os achados de alterações na regulação imune  cerebral em cérebros humanos e em modelos animais em doenças psiquiátricas  (depressão, esquizofrenia, autismo) e neurodegenerativas (Alzheimer,  Parkinson). Possivelmente, estudos serão centrados na heterogeneidade autoimune  de uma mesma doença e na investigação sobre de que forma isso influencia a  resposta à terapêutica (farmacogenômica). 
Em conclusão, os conceitos  básicos que regem a neuroimunologia são os mesmos da imunologia geral. Essa área do conhecimento deve ser analisada criticamente, pois certamente as doenças  englobadas por essa terminologia vão muito além do que simplesmente EM, doença  de Devic, MG ou SGB. 
Angelina Maria Martins Lino é neurologista, médica supervisora da Divisão de Clínica Neurológica do Hospital  das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP) e médica  assistente da Divisão de Clínica Médica do Hospital Universitário da (USP). 
Referências  bibliográficas 
Fipp F, Aktas O. "The brain as a target of  inflammation: common pathways link inflammatory and neurodegenerative diseases". Trends Neurosci 2006; 29: 518-27. 
Haddad J. J. "On the mechanisms and putative  pathways involving neuroimmune interactions". Biochem Biophys Res Commun 2008; 370: 531-5. 
Lawrence D.A., Kim D. "Central/peripheral  nervous system and immune responses". Toxicology 2000; 142: 189-201. 
                         |