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 Por  América pré-colombiana entendemos todas as sociedades que viviam no continente  americano antes da chegada dos europeus no século XVI, em especial os espanhóis,  em decorrência do processo de expansão mercantilista originário na Península  Ibérica. Denominados de índios, pelo fato de Colombo ter acreditado que havia  chegado às Índias, as sociedades humanas que viviam no continente americano  apresentavam diferentes níveis de organização social, política, econômica e  religiosa. Diferentemente do que se tende a pensar, essas sociedades eram  bastante heterogêneas e complexas. Por exemplo, no caso da civilização Maia,  esta alcançou o nível estatal, com hierarquização e centralização do poder  político evidenciado por uma complexa burocracia, divisão do trabalho,  construção de edifícios arquitetônicos, como é o caso das pirâmides, formando  grandes cidades governadas por um único chefe que reivindicava uma origem  divina. Por outro lado, existiam sociedades que não haviam construído cidades  e, portanto, trilharam outros caminhos de organização sociopolítica. 
No  entanto, grande parte das sociedades pré-colombianas estava interessada no  mundo celeste. Qual a importância de se observar o céu? Qual a função social ou  religiosa desse fenômeno? Com relação à Mesoamérica, ou seja, as sociedades que  viviam nos territórios que atualmente compreendem do México até Honduras, como  os maias e astecas, observar os astros tinha uma importância vital para a  organização da sociedade. Em primeiro lugar, isso ocorria porque os astros,  principalmente o Sol e a Lua, estavam associados às divindades criadoras do  cosmos, ou seja, a astronomia pré-colombiana estava associada diretamente ao  seu mundo religioso. Logo, a observação astronômica leva ao conceito de  cosmologia, que é a formação do universo por parte de divindades que estavam relacionadas  ao plano celestial. 
Observar  os astros era observar a sociedade. Os povos pré-colombianos realizavam  diversas atividades sociais a partir da observação dos corpos celestes. Em  primeiro lugar, os deuses se transformam em astros e, por sua vez, se tornam  metáfora do poder político do governante. É comum encontrar governantes  retratados na iconografia cujas peles pintadas de cor laranja-avermelhada são  uma alusão direta ao Sol. Ademais, o astro solar era alimentado com sangue  humano e animal. O sacrifício, para nós, pode parecer uma forma de crueldade,  mas para muitos povos da América pré-colombiana, tinha uma grande importância  religiosa, fazia parte da sua cultura. O sacrifício humano baseava-se em  preceitos de honra, reverência aos ancestrais e, principalmente, na manutenção  da vida humana sobre o planeta. Na cosmovisão indígena mesoamericana, um dos  elementos da criação primordial foi o sangue, que necessita ser constantemente  ofertado às divindades com o objetivo de a vida não cessar. Os sacrifícios  ocorriam, geralmente, associados a fenômenos do mundo celeste, como os eclipses.  Já que o sangue garantia a manutenção da vida, e a vida por excelência era o  Sol, representado pelo governante, que também oferecia o seu sangue aos deuses  em rituais de autossacrifício. Com frequência, a iconografia revela imagens em  que o rei se autossacrifica, em rituais que envolviam perfuração da língua, da  orelha e até mesmo dos órgãos sexuais. 
Os  astros também estavam associados ao calendário. Como sabemos, o calendário é um  sistema complexo de registro do tempo, geralmente baseado em um sistema  numérico. Nesse sentido, a observação celeste é fundamental para a organização  desse processo de organizar o tempo. Mas qual a função do calendário para essas  sociedades? Podemos apontar, prioritariamente, duas. A primeira é  cívico-religiosa, serve como coesão social através de eventos religiosos importantes  e acontecimentos governamentais, como os matrimônios e as guerras. Na concepção  mesoamericana de tempo, havia um calendário de 260 dias que era formado por 13  meses de 20 dias cada, que era conhecido entre os maias como Tzolkin. Já o  calendário solar possuía 18 meses com vinte dias cada um, sobrando cinco dias,  formando um mês curto com esses dias. A segunda importância do controle do  tempo se referia a questões econômicas. Ao calcular o início e o fim das  estações do ano é possível medir com maior precisão quando plantar e colher.  Além disso, o calendário era um instrumento de importância no controle  econômico através da tributação de mercadorias, já que muitas dessas sociedades  ameríndias eram inimigas e estavam em constante conflito. Por exemplo, a  Matrícula de Tributos, já do século XVI, é um documento histórico que registra  como e quando os produtos eram tributados pelo império Asteca, baseando-se,  muitas vezes, no conhecimento da sazonalidade da produção das mercadorias. De  significado cívico-religioso ou econômico, vale frisar que o calendário  permeava grande parte das atividades sociais. Ele podia até mesmo ser  manipulado politicamente. Nesse sentido, por exemplo, os reis maias,  “preferiam” nascer em datas associadas a fenômenos celestes, como um  instrumento simbólico religioso de poder, já que lhe daria muito mais prestígio  como governante semi-divino. Assim, muitas vezes, é difícil para os  epigrafistas, os estudiosos da escrita, saber com exatidão a data de nascimento  dos governantes. 
Mas,  por outro lado, como os planetas e demais corpos celestes interferiam na vida  dessas sociedades pré-colombianas? Vejamos alguns exemplos significativos. O  planeta Vênus, conhecido entre os maias como Chak Ek’, foi um dos mais  conhecidos pelos mesoamericanos e seu movimento no plano celeste foi registrado  minuciosamente. É um dos planetas mais brilhantes do sistema solar, e é  possível visualizá-lo a olho nu no céu à noite e no fim da madrugada.  Geralmente, estava associado à guerra. O astro também revelava situações de  bons ou maus augúrios. Os maias, por exemplo, realizavam suas incursões  militares dependendo da posição em   que Vênus aparecia no céu. O planeta Marte e o satélite  natural da Terra, a Lua, também tiveram seus movimentos registrados na América pré-colombiana.  Entre os maias, a Lua era Ix Chel, uma divindade importante. 
  Observatório astronômico de  Chichén Itzá. Foto: Alexandre Guida Navarro. 
  
  
Os  ameríndios, em alguns casos, chegaram até mesmo a construir observatórios astronômicos,  como o que está localizado no sítio arqueológico de Chichén Itzá, que fica na  península do Iucatã, no México. Ele conta com uma forma abobadada, aliás,  parecida com a dos observatórios atuais. Essa semelhança se dá justamente  porque a forma circular é a mais apta para reconhecer os movimentos dos astros.  As diferentes aberturas que existem nessa abóbada miram diferentes astros que  os maias quiseram observar. As constelações igualmente foram estudadas e, como  na observação dos planetas, tinham funções sociais importantes. Por exemplo, a  aparição das Plêiades anunciava o início da temporada das chuvas no hemisfério  norte. Esse exemplo em particular é importante para entender como a observação  dos astros incidia na vida ameríndia diretamente porque, ao saber que a época  das chuvas chegava, era mais fácil controlar o estoque de alimentos, pois,  quando findada a época da chuva, vinha a seca e conseguir alimentos ficava mais  difícil. 
Os  eclipses e passagens de cometa eram, em geral, temidos. Aparecem registrados  com frequência tanto nos documentos propriamente indígenas como nas fontes  escritas após o período da conquista da América. Por exemplo, em muitas  crônicas do século XVI, os astecas acreditavam que o eclipse perturbava e  alterava o movimento do Sol, sendo que as pessoas, diante do fenômeno, choravam  e gritavam, recorrendo aos sacrifícios humanos para que o Sol voltasse a  brilhar. Os cometas, dentro da cosmovisão mesoamericana, geralmente estão  associados à morte de um personagem importante, como o próprio rei. Em um  episódio especial, a passagem de um cometa observada pelos astrônomos teria  anunciado a queda do império Asteca ante os espanhóis. Nas crônicas, o último  rei asteca, Montezuma, fez uma consulta aos astrônomos que predisseram que “o  tão velho e antigo sinal no céu” destinaria ao fim o reino Asteca. Os cometas  também estavam associados aos maus augúrios, como a ocorrência de terremotos,  frequentes em uma grande porção da Mesoamérica. 
Agora,  poderíamos perguntar: mas como esse sistema matemático, calendárico, de  associação com os deuses e plano celeste foi organizado? Em primeiro lugar, há  que comentar onde esse sistema foi registrado. O modo mais recorrente de  registro foram os edifícios arquitetônicos, como as pirâmides, e,  principalmente, as estelas. Estas últimas eram monumentos verticais feitos de  pedra e que continham a genealogia de um determinado governante. Como as ações  dos reis estavam relacionadas com os astros, é possível estudar a astronomia  pré-colombiana na Mesoamérica através dessas construções. No entanto, com  relação aos maias, uma das civilizações que mais preocupação deu a esse tipo de  registro, os cálculos astronômicos e demais características do plano celeste  foram registrados em documentos chamados de códices. Eles eram confeccionados  sobre uma pasta de origem vegetal que, depois de seca, recebia uma camada de  cal para ser pintada, resultando na forma de um livro em biombo, semelhante a  uma sanfona. Podiam ser pintados também sobre a pele do veado, que também recebia  a mesma camada de cal. Esses livros são importantes porque foram escritos pelos  próprios indígenas e, portanto, não têm interferência dos europeus. Mas, por  terem sido associados a obras demoníacas pelos missionários cristãos, dado as  formas que as divindades maias possuíam, a maioria deles foi queimada,  causando, desse modo, uma grande perda do entendimento da vida astronômica, e  também religiosa, dos maias. No entanto, sobraram somente três deles, cujos  nomes estão associados aos locais onde estão depositados: museus de Dresden  (Alemanha), Paris (França) e Madri (Espanha). Muitos códices também foram  escritos no período colonial, sobretudo na área asteca, e são importantes pelo  teor de informação que apresentam. Muitos desses livros também foram almanaques  de adivinhação e eram produzidos pelos escribas que pertenciam à hierarquia  sacerdotal. 
A  observação dos astros com fins religiosos, econômicos ou políticos está  documentada em praticamente todas as sociedades pré-colombianas. Na região de  Nazca, no Peru, a fotografia aérea evidenciou surpreendentes linhas retilíneas  e geométricas que se prolongam por vários quilômetros no deserto, formando  animais como aranhas, beija-flores, macacos e seres antropomórficos. Muitas  dessas linhas estão orientadas para o nascente e poente, sendo que muitas delas  puderam representar constelações. Assim, era um recurso diferente de observação  astronômica: a utilização do próprio meio ambiente. No Brasil, especula-se que  as pinturas rupestres existentes nos paredões rochosos também tivessem um  significado associado à observação celeste. Aliás, esse campo de estudo,  chamado de arqueoastronomia, vem ganhando muitos adeptos no continente  americano. Ao observar o céu, os povos pré-colombianos, além de interagir com o  sobrenatural, no sentido de suas práticas religiosas, e fazer associações com o  mundo pragmático e cotidiano, também estavam em total sincronia com o seu  entorno físico, com o meio ambiente. Desse modo, estudar o céu é conhecer a si  mesmo. 
Alexandre Guida  Navarro é professor da Universidade Federal do Maranhão (UFMA) e coordenador  brasileiro do Projeto Arqueológico Chichén Itzá com financiamento do CNPq (Processo  478108/2008-7). 
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