| Resenhas | 
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                    |  O fantasma do carro elétrico |  
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                    | Dirigido e roteirizado por Chris Paine, o documentário Quem matou o carro elétrico?, lançado em  2006, apresenta a experiência do Eletric Vehicle 1. 
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                    | Ana Paula Camelo, Daniela Camila de Araújo e Jean Carlos Ferreira dos Santos |  
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                            10/11/2015
                            
	
		
	
	
		
			Dirigido  e roteirizado por Chris Paine, o documentário Quem  matou o carro elétrico? (em inglês, Who  killed the electric car?),  foi lançado  em janeiro de 2006 e apresenta a experiência do carro elétrico EV1  (Eletric  Vehicle 1),  um automóvel movido a eletricidade concebido pela General  Motors (GM)  dez anos antes, em 1996. O modelo que circulou pela Califórnia, nos  Estados Unidos, nesse período, foi cedido na forma de leasing a um grupo bastante restrito de clientes que puderam utilizá-lo por  um período predeterminado. No entanto, a partir de 2001, a GM passou  a recolher os exemplares sem dar a possibilidade de compra aos  usuários interessados, levantando muitos questionamentos acerca das  possíveis razões que justificariam tal decisão. Em 2005, todos os  modelos do EV1 já haviam sido destruídos. Foi um caso inesperado em  que a companhia agiu contra o seu próprio produto. 
	
		
	
	
		
			 A narrativa construída pelo  documentário mostra que o desenvolvimento do projeto EV1 foi marcado  por uma série de conflitos políticos, ambientais, culturais,  institucionais e tecnológicos que ocasionaram, conjuntamente, o  encerramento do projeto e a destruição dos carros. Levando em conta  essa conjuntura, fica evidente que o seu repentino encerramento não  aconteceu meramente por escolhas tecnológicas em torno do modelo  mais eficiente, mas envolveu questões econômicas, mudanças na  legislação e a crescente preocupação com o meio ambiente. Dessa  forma, o documentário destaca que esse foi um processo socialmente  construído, no sentido de que a  tecnologia não determina a ação humana unilateralmente, e que,  além disso, ela também é moldada pelos atores, pelo contexto e  pelos condicionantes políticos e institucionais aos quais está  vinculada. Logo, para se compreender as razões para a aceitação ou  rejeição do carro elétrico naquele período, não é suficiente  aceitar o argumento de que o EV1 (não) era "o melhor", "o  mais adequado" automóvel para as demandas da época. Faz-se  necessário dar especial atenção para toda a dinâmica da  controvérsia,  considerando os critérios e os  grupos envolvidos na definição dos problemas apresentados e de suas  respectivas  soluções; os diferentes significados e interpretações que cada  grupo atribuía àquela opção tecnológica; e como a polêmica foi,  ainda que momentaneamente, encerrada com a destruição dos carros. 
	
		
	
	
		
			 O carro elétrico surgiu como  uma promessa em um momento em que ganhavam força as medidas para  conservação do meio ambiente, em especial aquelas que reduzissem as  emissões de gases de efeito estufa. Na década de 1990, o estado da  Califórnia promulgou uma lei que restringia a produção de  automóveis poluentes e definia cotas progressivas para que as  montadoras fabricassem veículos de emissão zero. O desenvolvimento  desse modelo específico foi estimulado a partir dessa determinação  legislativa, que obrigou as empresas automobilísticas a encontrarem  opções mais limpas para o abastecimento dos automóveis produzidos. 
	
		
	
	
		
			 Dentre  importantes questões relacionadas a esse desenvolvimento tecnológico  específico, não podemos deixar de apontar duas controvérsias  associadas e igualmente relevantes para a indústria automobilística  em diferentes momentos da história: 1) o papel e as possibilidades  das energias renováveis e 2) o desafio do desenvolvimento  sustentável pela redução da dependência dos derivados do  petróleo. O carro elétrico correspondia não somente  à  redução de gases poluentes, mas também atendia a uma alternativa  de maior eficiência energética, uma vez que usando eletricidade,  fazia uso de recursos renováveis. O carro elétrico seria, nessa  conjuntura, o veículo do futuro: um automóvel silencioso, veloz e  ecologicamente correto, visto por muitos como uma solução para  reduzir a poluição atmosférica. Ele permitiria superar, ou ao  menos diminuir, a dependência do petróleo; oferecia maior  praticidade, porque a recarga das baterias poderia ser feita em casa,  dentre outras características que  proporcionariam uma experiência  totalmente nova aos usuários em relação aos modelos disponíveis  no mercado. 
	
		
	
	
		
			 No  entanto, como o documentário também explora de forma intensa, todas  essas promessas não foram suficientes para que o carro elétrico  conseguisse aceitação e se tornasse de fato uma opção ao veículo  movido a combustíveis fósseis. Ao contrário, o que pode ser visto  é a tecnologia sendo progressivamente desconstruída, ou mesmo  “esvaziada” de sentido, pelos atores envolvidos. Pode-se dizer  que com o documentário, é possível traçar como a tecnologia  aciona uma rede de atores e de elementos contextuais em torno de  escolhas tecnológicas. Em outras palavras, traz à tona os fatores  que permitem que uma tecnologia (sobre)viva e que condicionam sua  difusão e os modos de apropriação. Nesse sentido, ao buscar  constituir um dossiê sobre a morte do EV1, o documentário revela,  sobretudo, uma teia onde se enredam atores com perfis e interesses  muitas vezes diversos, mas que acabaram convergindo para o fracasso  do veículo e de um novo conceito de automóvel. 
	
		
	
	
		
			 O mérito  do documentário, nessa questão, é mostrar que não houve um único responsável pela morte, mas vários, agindo cada um  à sua maneira.  É possível identificar o papel da indústria petrolífera e toda a  geopolítica por trás desse setor reificando a superioridade, em  termos de autonomia e de viabilidade, do motor movido a combustão  interna. Ao mesmo tempo, a morte do EV1 data de um período em que  ocorreu um barateamento da gasolina motivado pela descoberta de novas  jazidas de petróleo, trazendo significativo impacto sobre o  desenvolvimento e utilização de motores movidos a tecnologias  renováveis e limpas. Ressalta-se também a atenção que os  protótipos de motores híbridos ou então movidos a células de  hidrogênio passam a ganhar das montadoras e das políticas do  governo norte-americano em detrimento das baterias elétricas. A  inércia e o descompasso entre os discursos e objetivos dos governos  estaduais e federais nesse momento favoreceram também um cenário em  que as montadoras puderam agir através de diversos tipos de pressões  e coalizões para revogar a lei estabelecida pelo governo  californiano, bem como para insistir que não havia demanda pelo  veículo elétrico. 
	
		
	
	
		
			 O que se  percebe como peculiaridade na atuação das montadoras,  especificamente da GM, é a sua indiferença em relação ao próprio  produto, no sentido de autossabotagem, a partir do momento em que o  veículo foi colocado nas ruas. Para a GM, o EV1 parecia representar  um intruso causador de inúmeros desconfortos, como a possibilidade  de reestruturação de uma cadeia produtiva já consolidada e  estabelecida (e lucrativa) do setor automobilístico. Por imposição  legal, a empresa viu-se obrigada a aceitar esse “intruso” entre  seus modelos tradicionais. Era preciso, portanto, por fim à sua  circulação. Para tanto, a empresa teria se utilizado de uma  estratégia  particular na qual, ao mesmo tempo em que produzia e colocava nas  ruas o veículo elétrico, conforme determinação do governo,  produzia comerciais pouco atrativos, em que o veículo parece mais  uma criatura de outro mundo do que propriamente uma tecnologia do  futuro. Ou ainda, enfatizava os problemas em vez de apresentar as  qualidades ou benefícios do mesmo. 
	
		
	
	
		
			 Nesse  contexto, contudo, aos próprios consumidores também foi atribuída  culpa pelo desfecho do projeto, sobretudo sob o argumento de que não  houve compradores interessados suficientemente que tornassem viável  a fabricação dos veículos. Segundo os fabricantes, esses mesmos  consumidores não teriam aceitado a ideia do EV1 e suas limitações. 
	
		
	
	
		
			 É  importante destacar que, ainda que pareça contraditório, um dos  pontos mais importantes da trajetória do EV1, e do documentário,  foi a decisão da GM de retirá-lo das ruas, o que foi viabilizado  graças ao modelo diferenciado de comercialização do veículo  utilizado pela empresa. Os veículos não eram vendidos diretamente,  mas sim financiados através do modelo leasing,  isto é, os clientes faziam um contrato de locação de direito de  uso do automóvel com a empresa e, ao fim do contrato, teriam a opção  de comprá-lo ou não. Esse fator foi fundamental para facilitar que  a GM desaparecesse com os carros em um espaço curto de tempo, visto  que, ao final do contrato, não foi permitida a compra dos veículos  pelos usuários e eles foram simplesmente recolhidos dos clientes, o  que gerou protestos e várias tentativas dos usuários para tentar  reaver os automóveis. O destino traçado para o EV1, naquele  momento, tem como ponto de chegada um desmanche onde os exemplares  foram completamente destruídos, em uma tentativa de acabar de vez  com qualquer vestígio material do veículo que a empresa havia  colocado nas ruas. 
	
		
	
	
		
			 Diante  disso, talvez resida no conjunto da obra o mérito desse  documentário: explorar o processo de estabelecimento  de uma controvérsia em cima de um desenvolvimento tecnológico,  desde a sua concepção até o seu encerramento (ainda que  temporário). Pois, como o próprio documentário argumenta, aquela  não tinha sido a primeira, e talvez não seria a última, morte de  um automóvel elétrico. Enfatizamos que para se compreender esse  episódio, é necessário reconhecer que em qualquer processo  decisório, sobretudo os que envolvem escolha e desenvolvimento  tecnológico, o conceito de solução está longe de ser um consenso  e, portanto, para o sucesso ou fracasso de uma tecnologia, não  existe apenas um verdadeiro “culpado”. O desenrolar de um produto  tecnológico só é definido a partir da sua conexão com diferentes  atores, interesses, condições materiais, naturais, políticas,  institucionais, tecnológicas, culturais, como o filme bem retratou.  E isso revela a complexidade do assunto, atravessado por muitas  dúvidas, incertezas e disputas, que às vezes são ignoradas ou  invisibilizadas. O caso EV1 materializa bem essa realidade e se  mostra uma boa oportunidade para se refletir sobre isso: a  conformação de uma agenda política pública e um desenvolvimento  tecnocientífico que se constituem em meio a processos  intrinsecamente sociotécnicos. 
	
		
	
	
		
			 Filme: Who  killed the electric car? 
 Ano: 2006 
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