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 As  chamadas democracias modernas – das experiências incipientes às  mais longevas e profundas tradições políticas – nunca deixaram  de ter imperfeições comprometedoras e, ironicamente, continuam  pouco democráticas, com sinais de piora. Dentre os problemas que  limitam ou inviabilizam uma experiência democrática digna do nome,  o desequilíbrio na produção, circulação e acesso à informação  e ao conhecimento há muito tempo é objeto da atenção de  pensadores que se dedicaram a atenuar a concentração de poder e  universalizar, de fato, a cidadania. Para atacar o problema, pelo  menos desde John Dewey (1859 - 1952) intelectuais e cientistas de  diferentes áreas têm estabelecido vínculos estreitos entre o  sucesso do projeto de uma sociedade democrática e a ampla  disseminação de um ethos científico e de uma maneira científica de pensar. Um eloquente  defensor dessa visão foi o astrônomo estadunidense Carl Sagan (1934  - 1996), um dos mais conhecidos e bem sucedidos divulgadores da  ciência do século XX. 
  A  obra de divulgação de Sagan é um exemplo dos esforços dos  pensadores humanistas em utilizar a comunicação do discurso  científico e metacientífico para incrementar a cultura política  com valores democráticos. O  mundo assombrado pelos demônios (publicado em 1996), seu livro mais abertamente político e um dos  mais conhecidos no Brasil, pode ser definido como um guia de  aplicação da racionalidade científica para iniciantes.  
 À  moda de intelectuais públicos como Noam Chomsky, que tenta inocular  no público estadunidense  a capacidade de “defesa pessoal intelectual” contra estruturas de  poder que controlam a circulação e o acesso à informação, Sagan  mostra acreditar que intelectuais e cientistas podem e devem  desempenhar função de democratização do saber e do poder.  Acredita, também, que ciência e democracia têm valores  concordantes, ou mesmo indistinguíveis. Que a ciência dá certo em  parte porque possui valores democráticos, e que a democracia só  pode dar certo, especialmente numa era tecnocientífica, se os  cidadãos souberem pensar cientificamente. Tenta evitar que se  perpetue o desastroso arranjo das sociedades modernas: baseadas no  conhecimento científico a que a esmagadora maioria da população  não tem acesso e não faz ideia de como é produzido.  
 Tudo  isso compõe parte fundamental de sua visão, que também pode ser  exemplificada pelo seguinte trecho:
  Tanto a ciência como a  democracia encorajam opiniões não convencionais e debate vigoroso.  Ambas requerem raciocínio adequado, argumentos coerentes, padrões  rigorosos de evidência e honestidade. A ciência é um meio de  desmascarar aqueles que apenas fingem conhecer. ... Se formos fiéis  a seus valores, ela pode nos dizer quando estamos sendo enganados.  Ela fornece a correção de nossos erros no meio do caminho (Sagan,  2006, p. 59).  
 Previsivelmente,  ganha perceptíveis contornos políticos uma divulgação científica  que tem como objetivo não somente o de anunciar os resultados e  conteúdos das ciências, mas também o de propagar pela sociedade  aquilo que é comumente chamado de pensamento científico. Assume-se  que a ciência, baseada na aplicação sistemática do ceticismo e na  abertura à crítica, é a melhor forma de separar o joio do trigo na  tarefa de estabelecer conhecimento válido sobre o mundo. O papel que  esse modo de pensar científico desempenharia no aprofundamento dos  valores democráticos na cultura política é claro: “a ideia da  aplicação democrática do ceticismo é que todos deveriam ter as  ferramentas essenciais para avaliar efetiva e construtivamente as  alegações de quem se diz possuidor do conhecimento” (Sagan, 2006,  p. 100).
  A  ciência como guia. Mas que ciência? 
 Embora  mantivessem a confiança num progresso social e político capaz de  ser impulsionado pelo pensamento científico, o que humanistas como  Dewey tinham em mente como guia tem pouco a ver com a imagem  cientificista de uma ciência neutra, canalizadora de um conhecimento  objetivo, puro, livre de valores. Ao contrário, tratava-se de uma  ciência profundamente relacionada com o processo de transformação  da sociedade em direção à democratização, por meio da  disseminação de uma ética científica, que Dewey considerava  essencialmente democrática. Mas a imagem pública de uma ciência  livre de valores e desconectada da política nunca foi embora, e  ainda habita com muita saúde o atual horizonte ideológico. 
 Naturalmente,  essa ideia deve ser vista com muita desconfiança. Principalmente a  partir da década de 1960 – das profundas mudanças na filosofia da  ciência, simbolizadas pelas obras revolucionárias de Thomas Kuhn e  Paul Feyerabend, à proposta do programa  forte pela radicalização da amplitude das explicações sociológicas  sobre a produção de conhecimento científico – emergiram  tempestivas críticas que demoliram, pelo menos para a maior parte do  mundo intelectual, a imagem de uma ciência pretensamente neutra e  objetiva.  
 A  ciência passou a ser cada vez mais vista como subserviente à ordem  social e econômica estabelecida, um instrumento de manutenção de  hipertrofiados complexos industriais-militares, mais produtora de um  discurso legitimador do poder das elites dominantes do que propulsora  de uma sociedade verdadeiramente democrática. Mais, diziam os  críticos: o próprio funcionamento interno da ciência não é  exatamente democrático e liberal, como se acreditava. A  inacessibilidade das melhores universidades à maioria da população  perpetua um processo de reprodução de elites intelectuais. A  produção de conhecimento responde às interações com a malha de  relações de poder. As próprias teorias científicas passaram a ser  caracterizadas como resultados mais dessas relações do que da  experimentação e do exercício da racionalidade. Intencionalmente  ou não, essas críticas ajudaram a desacreditar a ciência como  norte da construção de uma sociedade aberta e democrática. E, de  fato, têm razão em fazê-lo, se por ciência entendermos essa  pretensão a um conhecimento neutro, a um processo técnico alheio ao  mundo ao seu redor, desligado de seu papel público e pronto para  atender às demandas do poder. Se já é difícil considerar como  modelo de conhecimento uma ciência cujo pensamento crítico adormece  e cuja função social – que poderia ser a de aprofundar a  experiência democrática – encontra-se esmaecida, que espécie de  projeto político poderia ela integrar e inspirar? 
 A  visão propagada pelas obras de divulgação de Sagan é a de uma  ciência democrática e liberal, comprometida com a liberdade de  expressão, de pensamento e de imaginação, mas também, e  fundamentalmente, com a abertura ilimitada à crítica e o exercício  sistemático do ceticismo. Sagan começou sua carreira de divulgador  no final da década de 60, justamente quando aquelas salutares  críticas à ciência começaram a permear o meio intelectual. No  entanto, suas obras não refletem os mesmos níveis de ceticismo e  criticidade exercitados quanto à própria ciência, como proposto  por estudiosos da ciência contemporâneos a ele. Sagan descreve  menos como a ciência de fato é do que como ela deveria ser. Algo  que não é descartável e que, indiretamente e a seu modo, aponta  para a mesma direção do projeto democrático científico que Dewey  projetava. Mas que precisa ser encarado com uma pitada de sal, sob o  risco de produzir mistificações da própria ciência, o que é  pouco interessante a uma democracia plena. 
 Embora  Sagan também tome por ciência algo muito amplo, sua obra  compreensivelmente privilegia as ciências naturais, especialmente a  física, como modelo de pensamento científico. Ele certamente  encoraja um estilo de pensamento que pode ser imprecisamente chamado  de ciência, mas que poderia ser mais do que isso.
  Méritos  e limitações 
 Há  menos de um mês, nas manifestações e protestos do dia 15 de março  nas ruas das principais cidades do país, testemunhamos a presença  de vozes suficientemente numerosas e estridentes, mas provavelmente  minoritárias, pedindo pelo rompimento do processo democrático via  intervenção das forças armadas. Que tal clamor autoritário tenha  aparecido vinculado a vagas justificativas de defesa do sistema  democrático contra uma suposta “ameaça vermelha” soa tão  irônico quanto anacrônico. Nós, latino-americanos, já vimos esse  filme, ainda quando o pano de fundo da Guerra Fria podia fornecer-lhe  algum tênue sentido. Basta uma pequena dose de ceticismo e  pensamento crítico para percebermos, ainda mais facilmente hoje, que  se trata de uma ameaça fantasma: não existe, mas pode ser bem  explorada por eventuais líderes autoritários.  
 A  liberdade de manifestação das vozes autoritárias é corretamente  interpretada como um indicativo da saúde da democracia brasileira,  mas para notarmos que sua pulsação ainda é bastante débil basta  lembrar o tratamento policial-militar truculento que o Estado  brasileiro continua frequentemente dispensando a manifestações  populares por reformas estruturais na organização social, econômica  ou política, sejam elas mais ou menos espontâneas ou organizadas  por movimentos sociais. Quando o assunto é pressão popular por  mudanças significativas, o autoritarismo arraigado em nossa cultura  política mostra os dentes e os valores democráticos esmaecem. 
 E  quanto à longa tradição democrática estadunidense, que Sagan  tentava diretamente influenciar? Um estudo publicado recentemente por  pesquisadores da Universidade de Princeton (Gilens e Page, 2012)  justifica em detalhe aquilo que dissidentes já apontavam há um bom  tempo: enquanto o cidadão americano médio tem influência  negligenciável, a elite econômica domina a política, numa  distribuição de poder que mais se assemelha a uma plutocracia. 
 É  perfeitamente plausível que parte daqueles que pediram a volta  do regime militar, embora tenham o direito democrático de fazê-lo,  sequer compreendam minimamente o que significa, na prática, uma  ditadura. Provavelmente não compreendem como e por que a corrupção  ocorre, ou que uma das causas de sua endemia é um sistema político  que dá sinais de esgotamento, o presidencialismo de coalizão. Ou  que dentre as soluções estão reformas institucionais e políticas  profundas, como a revisão dos financiamentos de campanha. Isso não  quer dizer que não existam aqueles que sabem o que estão pedindo,  embora uma dose cavalar de cinismo seja necessária para tanto. Quer  dizer que boa parte está comprando gato por lebre. Em meio a isso,  demagogos costumam nadar de braçada: “aqueles que desejam  influenciar a opinião pública, aqueles que estão no poder, diria  um cético, têm um interesse pessoal em desencorajar o ceticismo”  (Sagan, 2006, p. 100). De maneira similar, quem acredita que a  política estadunidense vem sendo plenamente democrática, que as  decisões se dão de acordo com os interesses da maioria dos  cidadãos, provavelmente está deixando de exercer seu ceticismo. E,  indiretamente, fortalecendo os interesses daqueles que desempenham  real influência na política.  
 As  obras de divulgação científica de Sagan, carregadas de humanismo e  valores democráticos, são excelentes produtores de anticorpos para  ideologias antidemocráticas e autoritárias. Por outro lado, o  chamado pensamento científico, mesmo com todas as suas qualidades,  nunca pode ser visto como panaceia. Numa crítica a O  mundo assombrado pelos demônios,  Richard Lewontin aponta que Sagan tem uma concepção de “luta  entre a ignorância e o conhecimento” e “luta para levar o  conhecimento científico para as massas” (Lewontin, 1997). O  diagnóstico do geneticista é que no lugar do conflito entre trevas  e luzes há um embate entre tradições populares e alta cultura, e  esta usa a ciência frequentemente como arma retórica, como  instrumento de imposição de uma visão de mundo. Nesse ponto, ele  está coberto de razão. 
 Tão  importante para a democracia quanto esforços de divulgadores e  educadores excepcionalmente talentosos em compartilhar conhecimento,  como Sagan, está a luta contra a distribuição profundamente  desigual de riquezas. Correlacionada à desigualdade de poder de fogo  intelectual, a desigualdade econômica decide, mais do que qualquer  outro fator, quais setores da sociedade controlará e fará parte da  produção de conhecimento, e quais estarão excluídos dela. Uma  democracia plena depende tanto do cultivo do pensamento crítico (ou  “científico”) quanto de condições materiais menos desiguais.  Sagan estava bem consciente disso.
  Danilo  Albergaria é professor, jornalista de ciência, mestre em divulgação  científica pelo Laboratório de Estudos Avançados em Jornalismo da  Unicamp e doutorando em filosofia pelo Instituto de Filosofia e  Ciências Humanas da Unicamp. E-mail: daonap@terra.com.br
  Referências 
 Albergaria,  D. “A visão de ciência propagada por Carl Sagan”. Dissertação  de mestrado. IEL/Labjor, Unicamp, 2013. 
 Feyerabend,  P. Against  Method.  Verso, 2010. 
 Gilens,  M.; Page, B. “Testing theories of american politics: elites,  interest groups, and average citizens”. In: Perspectives  on Politics:  September 2014 | Vol. 12/No. 3. 
 Jewett,  A. Science,  democracy, and the american university: from the civil war to the  cold war. Cambridge University Press, 2012. 
 Kuhn,  T. S. The  structure of scientific revolutions.  The University of Chicago, 1970. 
 Lewontin,  R. ”Billions and billions of demons”. The  New York Review of Books, 
 janeiro  de 1997.  http://www.nybooks.com/articles/archives/1997/jan/09/billions-and- 
 billions-of-demons/?pagination=false 
 Sagan,  C. O  Mundo assombrado pelos demônios: a ciência vista como uma vela no  escuro. São Paulo: Cia. das Letras, 2006. 
   
 
  
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