A  avaliação das publicações científicas se traduz em um componente  da política científica e tecnológica orientado para medir se o  esforço destinado à pesquisa e à produção científica traz os  resultados esperados, pois, do contrário, esse esforço é visto  como redundante e sem utilidade significativa, como apontam Escóbar  (2009) e Spinak (2001). Este artigo1 busca, a partir de uma pesquisa etnográfica em um periódico  acadêmico da área de educação, refletir de forma crítica sobre  como se constroem parâmetros de qualidade para publicações através  do Qualis, e como esses parâmetros, mais do que mensurar,  constituem-se em políticas ativas que orientam a pesquisa no país.
 No  Brasil, a avaliação das publicações científicas2 é realizada por meio do Qualis, um indicador implantado em 1998 pela  Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior  (Capes). O Qualis surgiu como parte integrante do processo de  avaliação dos cursos de pós-graduação no país, tendo como  principal finalidade a indicação de veículos de maior relevância  para cada área do conhecimento.
 As  classificações do Qualis são publicadas trienalmente, a partir de  critérios definidos pelos comitês de áreas da Capes3,  constituídos por membros da comunidade científica. Cada área  possui os seus critérios na definição dos estratos dos periódicos  que podem ser A1 (nível mais alto), A2, B1, B2, B3, B4, B5 e C (com  peso zero).
 Desde  sua primeira versão até hoje, o Qualis vem passando por constantes  revisões, o que se mostra um excelente material de pesquisa para  compreender a partir de quais critérios se constitui a ideia de  “qualidade” enquanto parâmetro de política de C&T. A  evolução dos critérios do Qualis desde a sua criação demonstra  uma valorização crescente da normatização e padronização dos  periódicos científicos. Além disso, premia cada vez mais a  internacionalização desses periódicos, uma vez que esses critérios  priorizam sobremaneira a cooperação científica (de autores,  pareceristas e corpo editorial) e a abrangência das publicações  (no que diz respeito às indexações e à divulgação do  periódico).
 Na  área de educação, foco da pesquisa aqui retratada, periódicos  científicos de qualidade são aqueles que mantêm periodicidade  regular, contam com a participação de pesquisadores de diversos  centros e países diferentes, estão indexados em bases de dados  importantes como o SciELO4 e disponibilizam seu conteúdo de forma gratuita (por meio do acesso  aberto).
 De  acordo com Silva (2009, p.119), “quanto melhor situado na  hierarquia do Qualis, maior o poder de atração e maiores as chances  de influenciar na captação de financiamentos”. Com isso, o Qualis  vem se consolidando como um indicador cada vez mais presente em  periódicos avaliados como de prestígio e qualidade, atuando também  como filtro daqueles considerados de baixa qualidade. Mais do que  isso, através das avaliações da qualidade de programas de  pós-graduação pela Capes5,  usando, entre outros elementos, as publicações “de qualidade”,  o Qualis é um elemento cada vez mais importante na avaliação da  pesquisa científica como um todo.
 A  pesquisa que fundamenta este artigo (Frigeri, 2012) usou a  metodologia etnográfica para investigar como o Qualis participa das  práticas e rotinas de publicação de um periódico científico. A  escolha pela etnografia se deu pela particularidade dessa abordagem,  que possibilitou uma imersão na rotina do periódico a fim  familiarizar-se com o trabalho editorial (Malinowski, 1976), buscando  não apenas narrar essas práticas, mas compreender a lógica própria  que orienta o trabalho dos editores (Durham, 1986). O estudo foi  realizado ao longo de sete meses em um periódico científico da área  de educação, incluindo ainda entrevistas com outros editores de  periódicos da mesma área, e a participação em diversos eventos  sobre avaliação e sobre edição de revistas.
 
 Dessa  maneira, foi possível observar de forma detalhada como o Qualis  permeia as práticas editoriais dos periódicos, tornando-se, assim,  uma referência central na produção das revistas, na avaliação  dos artigos a serem publicados e na formatação final de cada  fascículo. O Qualis está presente tanto no processo editorial  quanto fora dele – no tocante ao financiamento de pesquisas e nas  avaliações dos programas de pós-graduação, como mencionado  anteriormente. 
 No  periódico estudado, há uma preocupação evidente da equipe  editorial em cumprir todas as exigências do Qualis, o que orienta de  forma ampla as práticas observadas e condiciona a forma como o  conhecimento é avaliado e publicado nesse periódico. Durante o  estudo, foi possível acompanhar algumas atividades, tratadas nessa  pesquisa como “ajustes ao Sistema Qualis”, que acabaram  condicionando o trabalho editorial de forma específica. 
 Um  exemplo importante disso foi observado quando houve, na edição de  um dossiê da revista, a repetição de nomes de autores em um mesmo  fascículo. Ou seja, o fascículo iria ser publicado com mais de um  artigo de um mesmo autor, o que poderia contrariar normas do Qualis.  Preocupado com a endogenia da publicação e em cumprir com o  critério do Qualis que solicita 75% dos artigos vinculados a no  mínimo cinco instituições diferentes6,  o editor negociou com o coordenador do dossiê para que o nome do  autor fosse retirado de algum artigo. Nesse caso, o autor (com nome  repetido) era um professor que participou de mais de um manuscrito,  mas acabou sendo autor de somente um deles nesse dossiê. 
 Critérios  de padronização, tão valorizados pelo Qualis, oferecem material  importante para análise, especialmente quando se torna patente a  dificuldade em cumpri-los. A periodicidade regular é uma das  principais dificuldades destacadas pelos editores entrevistados, pois  não é somente um problema financeiro: esse problema envolve outros  atores na esfera editorial, como os pareceristas e os próprios  autores. Vários editores relatam dificuldades relativas aos prazos  de entrega de parecer por parte dos avaliadores e de versões  corrigidas dos artigos por parte dos autores. O atraso desses prazos  pode acarretar no atraso da publicação do periódico, o que  prejudica a avaliação da revista no sistema Qualis. No contexto da  ciência brasileira, onde revistas funcionam, em geral, sem uma  estrutura profissionalizada e sem muitos recursos, atingir a  padronização pode ser um desafio. 
 Outra  dificuldade bastante relatada, principalmente por dois dos editores  entrevistados, é que os periódicos com baixos estratos do Qualis  têm grandes problemas em conseguir financiamento para o  desenvolvimento do trabalho editorial. As agências financiadoras,  especialmente o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e  Tecnológico (CNPq), auxiliam financeiramente periódicos que estejam  enquadrados com Qualis B2 ou em classificação superior. Ou seja,  fica clara, aqui, a forma como o indicador de qualidade condiciona os  fluxos da ciência, ao interferir também nas dinâmicas de  financiamento das revistas. 
 De  acordo com as observações acerca da prática editorial diante do  Qualis, pode-se concluir que o Qualis trouxe à tona uma discussão  sobre qualidade das publicações científicas, e vem constituindo-se  como indicador cada vez mais central. Sendo assim, é possível  afirmar que o Qualis traz a questão da qualidade à tona e a torna  parte integrante do processo editorial. O Qualis é tido como um  sistema de avaliação que classifica os periódicos e também os  pesquisadores brasileiros criando demandas de competitividade e  padrões de comportamento com pretensão de disputar/manter posições  nesse cenário. 
 Como  consequência, o Qualis vem sendo utilizado como um indicador que  auxilia na concessão de financiamentos, na inclusão de títulos em  bibliotecas e indexadores, na orientação de pesquisadores e  leitores durante a escolha de títulos, na submissão de trabalhos e  na pesquisa de material bibliográfico, além de estimular os  editores a elevar o padrão de qualidade dos seus periódicos a  partir da adequação aos critérios da Capes. Há uma busca por  criar estruturas que permitam a padronização dos periódicos, além  da crescente indexação em bases internacionais. Muitos periódicos  buscam atrair autores estrangeiros, a partir da pressão crescente  para internacionalizar o conhecimento científico brasileiro. 
 Dessa  forma, o Qualis não se apresenta somente como um indicador  científico, mas também como uma política ativa capaz de  influenciar os rumos das pesquisas científicas, ainda que exista uma  ressalva da Capes a esse respeito, quando a instituição esclarece  que não se pretende, com essa classificação, definir o que é  qualidade de periódicos de forma absoluta. Além disso, nas próprias  práticas editoriais, fica evidenciado que o Qualis reorienta a forma  como os periódicos atuam, seja na padronização de práticas, seja  na busca por maior indexação e menor endogenia (forma e conteúdo).  Para o senso comum, o Qualis já é visto como a classificação da  qualidade dos periódicos científicos. Apesar de a Capes não  definir de forma explícita o que significa qualidade de periódicos  científicos, esse estudo mostra que essa definição emerge a partir  das práticas editoriais, condicionadas por indicadores como o  Qualis. 
 O  estudo empírico aqui apresentado demonstrou que o Qualis, mais do  que indicar a ciência publicada com qualidade, acaba por se  materializar numa política científica específica, ao ser  incorporado nas práticas rotineiras dos periódicos, orientando,  assim, a forma como o conhecimento chega a ser publicado. 
 Mônica  Frigeri é mestre em política científica e tecnológica pela Unicamp,  secretária executiva da Revista  Brasileira de Inovação e professora na Pontifícia Universidade Católica de Campinas.  Email: monicaf1986@gmail.com 
 Marko  Monteiro é  mestre em antropologia social, doutor em ciências sociais e  professor do Departamento de Política Científica e Tecnológica do  Instituto de Geociências da Unicamp. Email: markosy@uol.com.br 
 Referências 
 Capes. Tabelas  de áreas de conhecimento/avaliação.  2015. Disponível em:  .  Acesso em 24/02/2015. 
 Durham,  E. R. (org.). Bronislaw  Malinowski – Antropologia.  São Paulo: Editora Ática, 1986. 
 Escóbar,  S. C. P. “Qualidade e visibilidade em duas revistas científicas  bolivianas”. 189f. Tese (doutorado). Departamento de Política  Científica e Tecnológica, Instituto de Geociências, Universidade  Estadual de Campinas, Campinas, 2009. 
 Frigeri,  M. “Entendendo o Qualis: um estudo sobre a avaliação dos  periódicos científicos brasileiros”. 149 f. Dissertação  (mestrado). Departamento de Política Científica e Tecnológica,  Instituto de Geociências,Universidade Estadual de Campinas,  Campinas, 2012. 
 Frigeri,  M.; Monteiro, M. “Qualis periódicos: indicador da política  científica no Brasil?” Estudos  de Sociologia,  vol.19, n.37, 2014, p.299-315. 
 Malinowski,  B. Argonautas  do Pacífico Ocidental: um relato do empreendimento e da aventura dos  nativos nos arquipélagos da Nova Guiné Melanésia.  São Paulo: Abril S.A. Cultural e Industrial, 1976. 
 Spinak,  E. Indicadores cientométricos. ACIMED,  vol.9, 2001. 
 Silva,  A. O. da. “A sua revista tem Qualis?”. Mediações,  vol.14, n.1, 2009, p. 117-124. 
 
 
 
 
 
 
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