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 Imagine  um condomínio fechado que, em nome da segurança, é equipado, a cada dia, com  mais câmeras de segurança, cercas elétricas, guardas e guaritas, grades e muros  cada vez mais altos. Com o passar do tempo, esse condomínio vai ficando tão,  mas tão seguro, que acaba se assemelhando a um presídio de segurança máxima:  seus condôminos perdem a liberdade e só podem ver a rua através das grades  instaladas nas janelas de suas próprias casas. 
 Essa  situação fictícia, imaginada pelo escritor Luís Fernando Veríssimo no conto  “Segurança”, não está, entretanto, muito longe da atual realidade nas grandes  cidades brasileiras. É o que aponta e analisa a tese intitulada “Securização urbana – da  psicoesfera do medo à tecnoesfera da segurança”, de Lucas Melgaço,  geógrafo com doutorado em parceria entre a Universidade de São Paulo e a  Universidade de Paris I e membro da Rede Latino-Americana de Estudos Sobre  Vigilância, Tecnologia e Sociedade (Lavits). 
 Resumidamente,  o trabalho de Melgaço busca entender as mudanças que ocorrem nas cidades em  virtude da violência e, sobretudo, do medo que ela causa. Dentre as principais  mudanças está o que o pesquisador chamou de “informatização do cotidiano para  fins de segurança”, processo que permitiria um maior controle e monitoramento  de ações da vida diária dos habitantes urbanos e no qual as tecnologias de vigilância  por câmeras de vídeo teriam um papel central. Segundo ele, quanto mais  informacional se torna a sociedade, mais propícia ela está a se tornar uma  sociedade da vigilância – ou seja, o simples fato de uma ação antes analógica  se tornar digital faz com que ela seja mais facilmente monitorada. 
 Entretanto,  o geógrafo, que terminou recentemente um pós-doutorado em sociologia no Centro  de Estudos sobre Vigilância na Queen's University, do Canadá, e atualmente faz outro  pós-doutorado em criminologia na Vrije Universiteit Brussel, na Bélgica,  destaca que o conceito de vigilância eletrônica é bastante amplo. “Ele envolve  ações tão diversas quanto enviar um e-mail, realizar uma busca na internet,  fazer uma compra com o cartão de crédito, pegar um avião e cruzar uma  fronteira, fazer compras no supermercado ou simplesmente dar uma volta a pé  pela cidade”, diz. Em relação ao último caso, Melgaço lembra que é praticamente  impossível, numa grande cidade brasileira, uma pessoa não ser filmada por uma  câmera de vigilância pelo menos uma vez durante um dia normal, já que elas  estão em toda parte, tanto nos espaços públicos quanto privados. 
 Câmeras  praticamente onipresentes não são, obviamente, exclusividade do Brasil. Em  Roterdã, segunda maior cidade da Holanda, por exemplo, câmeras de monitoramento  estão sendo utilizadas pela polícia para vigiar e punir comportamentos  classificados como “antissociais” nas ruas da cidade – beber ou estar bêbado em  público, se envolver em brigas ou urinar na rua. Fatos como esses, divulgados  pela ComCiência em notícia publicada  em maio de 2012, são bons exemplos de como o Estado pode utilizar a vídeo-vigilância  para controlar comportamentos de cidadãos. 
 Entretanto,  como afirma Melgaço, a vídeo-vigilância é um assunto controverso e extremismos  devem ser evitados. “As câmeras não são nem panaceia, nem frutos de teorias da  conspiração. Para cada caso há várias informações a serem analisadas: onde a  câmera foi instalada, por quem, para quais finalidades, quem tem acesso às  gravações, por quanto tempo essas gravações ficarão armazenadas, quais são as  expectativas de privacidade das pessoas sendo filmadas e qual é a ciência delas  do fato de que estão sendo monitoradas”, pondera. 
  
“Aviso aos  passageiros: “por motivos de segurança, os táxis 
em Londres podem estar  equipados com câmeras de vigilância”. Foto:  Lucas Melgaço.
  
Todos  vigiam todos: o fim do big brother de George Orwell 
  A  União Internacional de Telecomunicações (ITU, em inglês), agência da  Organização das Nações Unidas especializada em tecnologias de informação e  comunicação (as chamadas TICs) divulgou em seu site,  em fevereiro, que no início de 2014 haverá mais de 7 bilhões de telefones  celulares em uso no planeta, muitos dos quais equipados com câmeras de vídeo.  “Esse dado é ainda mais significativo”, analisa Bruno Cardoso, coordenador de  pesquisa do Núcleo de Estudos da Cidadania, Conflito e Violência Urbana (Necvu) da Universidade Federal do Rio de Janeiro  (UFRJ). 
 Para  Cardoso, que também pertence à Rede Lavits, o fato de que os celulares são  móveis e podem se conectar instantaneamente à internet nos colocaria diante de  um quadro completamente novo quando se analisa a vídeo-vigilância. “É um fato  que muitos não veem, mas isso acaba nos afastando significativamente do  pesadelo do ‘big brother’, retratado no livro de George Orwell, no qual um (o Estado) vigia muitos (os cidadãos). Atualmente, são bilhões de  pessoas podendo captar imagens de diversos tipos de acontecimentos da vida  cotidiana, de maneira bastante discreta e frequentemente sem nenhuma  preocupação ética ou regulação de conduta. Esse fator é a grande inovação no  campo da produção de imagens, que são potencialmente de vigilância, assim como  podem ser de denúncia, de lazer, de família, de reuniões sociais ou mesmo de  nada”, revela o pesquisador da UFRJ. 
 O  Estado, portanto, não tem mais o privilégio de ser o único capaz de vigiar – se  ele utiliza câmeras para monitorar os cidadãos, esses poderiam também, e em um  grau muito maior, utilizar suas câmeras para se proteger ou denunciar  arbitrariedades do Estado. Cardoso cita casos em que pessoas usam câmeras como  forma de se proteger da violência e da arbitrariedade da polícia, assim como de  outras formas do poder estatal, ou mesmo como instrumento de denúncia de  extorsão, de esquemas de corrupção pública, cobrança de propinas etc. “Na  vídeo-vigilância policial, que estudei no Rio de Janeiro, deve-se admitir que  houve uma coibição de cobrança de propinas e de atos violentos dos policiais em  áreas filmadas. Não saberia dizer se os casos de pessoas que sentiram sua  liberdade cerceada pela vigilância eletrônica seriam mais numerosos que os dos  policiais que tiveram cerceada sua liberdade de agir acima da lei, ameaçando  inclusive a liberdade dos outros”, aponta. 
 Outro  aspecto a ser considerado é que as câmeras filmam imagens mudas  initerruptamente, sendo que a maioria dessas imagens permanece nunca vista e  elas são apagadas depois de certo tempo. A escolha da nomenclatura em relação  às câmeras (de segurança, vigilância ou monitoramento) depende, como sempre, de  quem está falando – como a indústria de segurança tem um papel central na  disseminação tanto do medo quanto desse que é um de seus principais produtos, o  termo “segurança” acabou sendo o mais utilizado e aceito. 
 O  mais usual, afirma o pesquisador da UFRJ, é que as imagens dessas câmeras sejam  analisadas caso algo anormal tenha acontecido. “Isso não quer dizer que não  exista invasão de privacidade associada às câmeras de vigilância, mas sim que,  por questões práticas (especialmente financeiras e operacionais), câmeras de  vigilância não significam vigilância. Câmeras não vigiam ninguém. Pessoas,  sim”, diz. Cardoso lembra ainda que a maior parte dos casos recentes  classificados como invasão de privacidade, ligados à publicização de imagens  pessoais, teve relação com câmeras amadoras ou telefones celulares – “aquilo  que chamo em meu trabalho de ‘videovoyeurismos’” –, e não com câmeras de  vigilância. 
 Instrumentos  de contrarracionalidade 
   A  reutilização das mesmas tecnologias usadas pela racionalidade dominante de  forma subversiva foi o que o geógrafo Milton Santos chamou de contrarracionalidade.  A tese de Melgaço ensina que esse conceito pode ser observado no trabalho de  vários artistas críticos ao excesso de vigilância existente atualmente na sociedade. 
  
“Cartaz de  divulgação do documentário 365 Jours à Clichy Montfermeil”. 
Foto de  Tiago Macambira publicada na tese de Lucas Melgaço.
  
Um  deles, o cineasta Ladj Ly, fez um documentário sobre as rebeliões que  aconteceram na periferia de Paris em 2005, durante a qual os moradores do bairro  Clichy-Montfermeil atearam fogo em vários veículos em protesto contra a  situação econômica em que viviam. Como aponta Melgaço em sua tese, sendo o  cineasta também morador do mesmo bairro, ele pôde filmar a rebelião de um ponto  de vista contrário ao da grande mídia e, portanto, explicar as causas do  inconformismo daqueles moradores e denunciar a violência da polícia francesa.  Melgaço também chama a atenção para artistas como Manu Luksh e David Valentine.  “Eles produziram curtas-metragens através do uso de imagens de câmeras de  vigilância. Através da mesma câmera normalmente utilizada para o controle eles  foram capazes de produzir arte”. 
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